Sobre a inadmissibilidade da pena de morte

Um leitor do blog me envia o seguinte comentário/pergunta:

O papa disse que a pena de morte é inadmissível. Isto que é interpretar corretamente o NÃO MATARÁS!!!

Respondamos com calma. A notícia à qual faz referência o meu interlocutor é esta que diz que o «Papa Francisco considera inaceitável para um cristão apoiar a pena de morte». Manchete, permita-se o comentário, reducionista e sensacionalista; data venia, o discurso de Sua Santidade «à Delegação da Associação Internacional de Direito Penal» – que pode ser encontrado na íntegra, em português, no site do Vaticano – é um pouco mais amplo do que isso.

Não teve lá muita repercussão porque, sinceramente, trata-se de um texto bastante genérico e protocolar, falando de maneira superficial sobre os lugares-comuns da doutrina penal contemporânea. Basicamente, o Papa Francisco apresenta alguns elementos em favor do Princípio da Legalidade – defende ele uma «concepção do direito penal como ultima ratio (…) limitado aos factos mais graves contra os interesses individuais e colectivos mais dignos de protecção» – e passa a elencar algumas medidas concretas que devem servir de limites à “face violenta do Estado”.

Não vejo possibilidade de discordância alguma, nem política e nem doutrinária, no que concerne às exposições de princípios. É evidente que o Direito Penal é e deve ser a ultima ratio; é incontestável que, historicamente, a pena estatal revestiu-se de requintes de crueldades hoje completamente extemporâneos e anacrônicos; é inegável que o já referido princípio da legalidade é uma conquista e uma proteção ao ser humano frente ao poder do Leviatã – de cujas arbitrariedades mesmo a história contemporânea nos dá, a cada dia, exemplos tristemente eloquentes.

Já quanto às incursões papais no terreno dos detalhes mais específicos, explique-se-lhes o sentido em que devem ser lidas com um exemplo paradigmático. Sobre a pena de morte, por cuja abolição – segundo o Papa – «todos os cristãos e homens de boa vontade estão chamados hoje a lutar», diga-se quanto segue.

algum material no Deus lo Vult! sobre o assunto; para não me alongar em demasia, respondo que a Doutrina Moral católica é feita de princípios imutáveis que devem ser aplicados em situações de fato, contingentes; e que, embora os princípios não mudem, as situações mudam, sim, e com incômoda freqüência, de modo que é perfeitamente possível que o mesmo princípio implique em duas respostas completamente diferentes, se completamente diferentes forem as duas situações nas quais ele é aplicado.

Praticamente nenhum dos pronunciamentos eclesiásticos das últimas décadas a respeito da pena de morte tem caráter principiológico, porque neste campo a situação já está mais do que resolvida há séculos: é prego batido e ponta virada. Na formulação do recente Catecismo, a «doutrina tradicional da Igreja, desde que não haja a mínima dúvida acerca da identidade e da responsabilidade do culpado, não exclui o recurso à pena de morte, se for esta a única solução possível para defender eficazmente vidas humanas de um injusto agressor» (CCE §2267). Isso, absolutamente, não está em discussão. O que se discute é, exatamente, a situação contingente atual: será que as atuais circunstâncias são tais que, nelas, o recurso à pena de morte é a única solução para a eficaz defesa da sociedade contra um injusto agressor?

Perceba-se que se trata aqui de um juízo de fato e, por isso mesmo, i) nem as manifestações nesta seara obrigam à Fé num nível mesmo análogo às promulgações dogmáticas; e ii) nem elas se revestem do caráter de irrevogabilidade que é próprio de matéria doutrinária. Em uma palavra, é simplesmente nonsense afirmar que a Igreja tenha revisto a Sua posição a respeito da pena capital, porque exposição racional de princípios e aplicação de princípios a situações concretas são duas esferas que de maneira alguma se confundem entre si. Na primeira delas, é legítimo, em abstrato, ao poder temporal punir os criminosos inclusive com a morte; na segunda, é perfeitamente possível que, nos Estados modernamente constituídos e com a sensibilidade contemporânea, não haja espaço para a aplicação daquela pena máxima. Como diz o poeta, mudaram as estações; nada mudou.

Todas as demais intervenções pontifícias no referido discurso – sobre questões de maioridade penal, de situações dos presídios, de punições a pessoas vulneráveis (v.g. idosos, doentes, mulheres grávidas) etc. – resolvem-se do mesmíssimo modo. Todas elas são juízos prudenciais a respeito de como se devem aplicar os princípios da Teologia Moral às questões contemporâneas, da maneira como elas concretamente se apresentam ao homem moderno – e, claro, como o Vigário de Cristo as percebe. Não são exposições de princípios  morais (e nem muito menos apresentações de novos princípios morais contrários aos anteriormente vigentes), e sim, no sentido mais clássico, casuísticas. Servem para auxiliar a razão prática, não engessá-la.

A Igreja é infalível em Fé e em Moral, sem dúvidas. Mas são bem raras as coisas que sempre são legítimas independente de qualquer coisa, ou que nunca são permitidas de nenhuma maneira (como, v.g., matar diretamente um inocente, que nunca é lícito); a maior parte delas envolve a consideração de princípios imutáveis vis-à-vis situações contingentes. E uma lista exaustiva de todas as possíveis situações de fato é obviamente irrealizável; não é a isto que se propõe a Igreja de Cristo! A Doutrina Católica é um facho de luz que devemos usar para iluminar os nossos passos, e não um sucedâneo do caminhar humano.

Sobre as “provas” (!) da inexistência de Deus

A existência de Deus, como ensina a Doutrina Católica, é alcançável pela razão humana: «Deus, princípio e fim de todas as coisas, pode ser conhecido com certeza pela luz natural da razão humana, por meio das coisas criadas» (Concílio Vaticano I, Seção III, Cap. II). Assim, os que dizem que Deus não existe são, nas Escrituras Sagradas, chamados de estultos, i.e., insensatos, tolos, ignorantes. A expressão na Vulgata Latina é ainda mais clara: dixit insipiens in corde suo non est Deus (Ps. XIII, 1). “Insipiente” (descobri-o agora) é inclusive dicionarizado em português (ao menos em Portugal): aquele “que nada sabe”, em oposição a “sapiente”.

Neste sentido, gostaria de tecer alguns comentários sobre este texto que se propõe a provar a inexistência de Deus (!). Ele foi apresentado aqui. As tais absurdas “provas” podem ser sistematizadas no seguinte:

1. «Há uma óbvia contradição entre ser “onisciente, onipotente, onipresente” e “imaterial, atemporal” simultaneamente».

Só na cabeça do estulto arrogante. A justificativa apresentada, de um materialismo tão absurdamente grosseiro, chega a ser pueril: «Conquanto informação no universo é, necessariamente, energia, particularmente energia eletromagnética, qualquer entidade que se supõe onisciente deve, imperiosamente, ser capaz de ler as informações que são transmitidas por estas ondas energéticas. Tem de haver pelo menos um receptor sensível, vale dizer material, para todas as informações, capaz de detectá-las e permitir o efeito da onisciência. (…) Seriam necessários infinitos receptores para que o atributo da onisciência fosse verdadeiro, o que implica que em todos os lugares do universo haveria receptores presentes – a onipresença material».

O que dizer? Nego, óbvia e simplesmente, a necessidade (imperativa, segundo o filósofo!) de um “receptor sensível” (!) para “ler” a “informação” do Universo. O insipiente autor destas alegadas provas está, na verdade, aplicando um reducionismo grosseiro ao problema – no caso, reduzindo a existência à matéria e pressupondo a necessidade de um sensor material para se conhecer a matéria. Isto não é, absolutamente, uma prova, e sim uma petição de princípio: que não exista uma Inteligência imaterial está já contido na premissa adoptada pelo estulto de que é necessário haver receptores sensíveis para que haja possibilidade de conhecimento do Universo. Naturalmente, os crentes negam esta premissa estapafúrdia.

É talvez com relação à Onipresença que o argumento pode impressionar um pouco, mas ele padece do mesmo vício acima apontado. Diz o ignorante: «Nenhuma presença que não pode ser traduzida, experimentada, efetivada em algum tipo de matéria, que não assuma uma corporalidade material, que não ocupe algum lugar no espaço – ainda mais supostamente presente em todo o espaço – pode ser detectada e interagir neste universo».

Percebam o salto lógico: de “não pode ser detectada” (coisa com a qual naturalmente concordamos, se “detectada” estiver no sentido de “detectada por meio de instrumentos de medição”), o ateu passa imediatamente para “não existe”! Isto, sim, é um primor de lógica. De novo a petição de princípio: prove primeiro o estulto ateu que não existe o que não pode ser detectado, para só depois vir falar em “provas” sobre o que quer que seja.

Na verdade, Deus é Onipresente não de presença material (óbvio, posto que senão cairíamos no panteísmo), mas de presença enquanto causa do ser das coisas que existem, “como o agente está presente no que faz” (Summa Ia, q. 8 – o ignorante ateu faria bem em ler ao menos esta questão da Summa antes de vir falar em onipresença “física”!). Deus não apenas cria o Universo como também o mantém na existência – e é neste sentido que Deus é Onipresente. Aliás, com um materialismo destes, espanta (positivamente!) que o autor do texto em análise não tenha “refutado” a Onipotência Divina com o exemplo do terrível embate entre as meias Vivarina e as facas Ginsu

2. «Porque (sic) um deus “onisciente, onipotente, onipresente, transcendental, imaterial, atemporal, pessoal e necessário” não é, afinal, auto-evidente?»

O que o ateu entende por “auto-evidente”? Parece ser “aquilo sobre o qual ninguém discorda”, o que é uma definição evidentemente errônea, visto que (principalmente nos dias de hoje!) não existe rigorosamente nada com o qual todo o mundo concorde.

Ademais, o Doutor Angélico também explica por que é que a existência de Deus não é evidente por si mesma (Summa Ia, q.2). E a resposta é, simplesmente, porque nós não conhecemos Deus – “não sabemos em quê consiste Deus [e portanto] para nós [a Sua existência] não é evidente”. É por isso que nós precisamos ensiná-la e demonstrá-la; uma vez que entendamos que Deus é o Ser Necessário e que o Ser Necessário existe necessariamente, a existência de Deus passará a ser evidente também para nós.

Note-se ainda que a queixa do estulto ateu é totalmente descabida. Não existe nada que «[t]odas as crianças do mundo, no nascimento ou quando se auto-descobrissem, sem qualquer outra influência» descubram por si sós. Até mesmo os princípios básicos como “o todo é maior do que as partes” precisam ser ensinados antes que sejam reconhecidos como evidentes, uma vez que as pessoas não nascem sabendo o que seja “todo” e o que seja “parte”. Por qual motivo, então, Deus não deveria ser ensinado?

3. «Ninguém seria insano de negar a existência do que necessita para viver».

Mas é óbvio que seria, uma vez que o número dos estultos é infinito – stultorum infinitus est numerus (Ecclesiastes I, 15): aí estão os ateus para o demonstrar! Por que não? Do fato de Deus – como explicado acima – ser a causa da existência dos seres não segue que todos os seres reconheçam imediatamente esta necessidade causal. Do fato de haver «muitos humanos que simplesmente continuam a viver sem saber sequer da existência deste debate, quanto mais deste deus» não segue que estes seres humanos vivam sem que Deus os mantenha na existência. Desde quando “saber” a respeito de alguma coisa é necessário para que esta coisa exista?

Para usar uma analogia bem rudimentar e materialista (como parece ser necessário para alguns adeptos radicais do materialismo cego), durante muito tempo as pessoas não souberam da existência das bactérias que vivem no intestino humano e regulam o equilíbrio do organismo. E a flora intestinal continuou existindo, a despeito de haver muitos humanos que simplesmente continuavam a viver sem saber sequer da existência de uma coisa chamada “bactéria”. No quê isto é minimamente um argumento contra a existência da flora intestinal? No quê a ignorância dos ateus é um argumento contra a existência de Deus?

É esta, enfim, a miséria intelectual de quem pretende “provar” que Deus não existe. As palavras das Escrituras Sagradas chegam a ser brandas: chamar “insipiente” uma pessoa dessas é até um tratamento honroso que lhe é dispensado. Mas a arrogância dos ignorantes parece não ter limites. Na contramão de qualquer metafísica minimamente séria, o que dizer de um sujeito que tem a coragem de afirmar que «o universo é a prova da não-existência de deus»? O autor de tal texto deveria envergonhar-se dele, se lhe resta ao menos um mínimo de amor-próprio para compensar a falta de entendimento das coisas mais básicas – sobre as quais, não obstante, ele insiste em discorrer. Mas a caravana passa enquanto os cães ladram. E, enquanto isso – diz outro salmo -, “Aquele, porém, que mora nos céus, se ri, o Senhor os reduz ao ridículo” (Sl 2, 4).