Sobre a posição do Pe. Paulo Ricardo a respeito da Reforma Litúrgica

Muitas pessoas questionaram os recentes programas de internet em que o pe. Paulo Ricardo tratou do Missal de Paulo VI; eu, ao contrário, gostei muitíssimo que ele o tivesse feito, e achei inclusive que foi providencial. Afinal de contas, é uma coisa muito boa que assuntos como este não sejam somente característicos de grupos restauracionistas radicais que perderam o passo da Igreja. Como comentei então junto a alguns amigos, as pessoas que começam a se interessar pela Liturgia da Igreja vão, mais cedo ou mais tarde, se deparar com a história da Reforma Litúrgica. Ora, é melhor que elas tomem contato com o assunto dentro do ambiente equilibrado das aulas do pe. Paulo, e não em sites da FSSPX e quetais.

Os dois programas do Padre Paulo onde o assunto foi abordado são os seguintes:

  1. O missal de Paulo VI e a reforma da reforma litúrgica de Bento XVI
  2. O Missal de Paulo VI e a hermenêutica da continuidade

A maior parte dos meus leitores já teve ter ouvido as duas aulas acima. Sobre elas muito já disse, inclusive coisas que não correspondem à verdade: principalmente da primeira aula, foram retiradas de contexto diversas passagens da fala do padre, fazendo com que ele parecesse um fanático rad-trad vomitando impropérios contra o Novus Ordo Missae, em nada distinguível de um Lefebvre raivoso dizendo que «a maioria destas Missas são sacrílegas e (…) diminuem a fé, pervertendo-a». Ora, Lefebvre estava errado, como é capaz de o perceber qualquer pessoa que, por exemplo, tenha a Auctorem Fidei diante dos olhos. Na conhecida Bula, o Santo Padre Pio VI diz o seguinte:

LXXVIII. (…) In quanto per la generalità delle parole comprenda e assoggetti all’esame prescritto anche la disciplina costituita e approvata dalla Chiesa, quasi che la Chiesa, la quale è retta dallo spirito di Dio, potesse stabilire una disciplina non solamente inutile e più gravosa di quello che comporti la libertà cristiana, ma addirittura pericolosa, nociva, inducente nella superstizione e nel materialismo;

FALSA, TEMERARIA, SCANDALOSA, PERNICIOSA, OFFENSIVA DELLE PIE ORECCHIE, INGIURIOSA ALLA CHIESA E ALLO SPIRITO DI DIO, DAL QUALE LA CHIESA STESSA È REGOLATA; PER LO MENO ERRONEA.

Traduzo o que é mais relevante: “(…) como se a Igreja, que é regida pelo Espírito de Deus, pudesse estabelecer uma disciplina não somente inútil e danosa à liberdade cristã, mas ainda perigosa, nociva, que conduzisse à superstição e ao materialismo: [tal proposição é] FALSA, TEMERÁRIA, ESCANDALOSA, OFENSIVA AOS OUVIDOS PIOS, INJURIOSA À IGREJA E AO ESPÍRITO [SANTO] DE DEUS, PELO QUAL A IGREJA É CONDUZIDA; [E] PELO MENOS ERRÔNEA”.

A tese, portanto, segundo a qual a Igreja pudesse estabelecer uma disciplina – por exemplo, um Rito para a celebração do Santo Sacrifício da Missa – que fosse nociva à Fé é condenada pelo Magistério, é «falsa» e «escandalosa», é «injuriosa à Igreja» e «pelo menos errônea». Não há o que discutir aqui. A esta mesmíssima conclusão chegaram inclusive pessoas que, convencidas da nocividade da Reforma Litúrgica, usam-na como argumento em favor do sedevacantismo. Os que acreditamos que o Papa Francisco é – de fato e de direito – o Sumo Pontífice gloriosamente reinante (e que igualmente o foram Paulo VI, João Paulo I, João Paulo II e Bento XVI) precisamos, portanto, sustentar ao mesmo tempo que o Rito com o qual a Igreja virtualmente inteira oferece nos dias de hoje ao Deus Altíssimo o Sacrifício da Missa é vere et proprie um Rito Católico, santo e santificante.

Santo, porque é um rito católico, que expressa a Fé Católica, como não poderia deixar de ser diferente: afinal de contas, lex orandi, lex credendi, e a Igreja obviamente reza de acordo com aquilo em que Ela crê. Santificante, porque capaz de produzir nas almas a Graça própria dos Sacramentos e alimentar a Fé dos que dele participam piedosamente. O Pe. Paulo Ricardo tem absoluta consciência disso. A análise dele situa-se em outro nível.

Qual é então o «problema» com o Missal de Paulo VI? Ora, um «rito» é um conjunto de palavras, gestos e símbolos que expressam alguma coisa: no caso, que expressam a Fé Católica. O Rito dos Sacramentos – qualquer Rito dos Sacramentos, não somente o de Paulo VI – em um certo sentido está para os Sacramentos em si assim como o significante está para o significado: é um conjunto de signos que expressam uma realidade. Além disso, no caso dos Ritos Católicos, eles não somente expressam a Fé Católica como também realizam os Sacramentos: «Ego te baptizo in nomine Patris, et Filii, et Spiritus Sancti» não somente se refere ao Batismo Católico como de fato confecciona o Santo Batismo, realiza-o. Há, portanto, logo de cara, duas coisas:

  1. a capacidade intrínseca do Rito de confeccionar os Sacramentos que ele realiza; e
  2. a sua expressividade das realidades invisíveis que ele traz à existência.

Quanto à primeira, qualquer Rito católico existente ou possível, por definição, se rito católico é, é perfeito e tem o exato mesmo valor. Aqui não há nuances possíveis: ou o Sacramento é válido ou é inválido, ou a forma é suficiente para confeccionar o sacramento e, portanto, ele existe; ou é insuficiente e não o realiza. Aqui não há matizes e não há graus: ou a fórmula sacramental produz o Sacramento ou não o produz, et tertium non datur.

Já quanto à segunda, nenhum Rito católico que exista, tenha existido ou possa um dia existir está perfeito no sentido de que não possa ser jamais melhorado, e isso também por definição. As realidades sobrenaturais que trazemos à existência por meio da Liturgia Católica transcendem totalmente a capacidade de expressão daquelas palavras, gestos e símbolos de que se compõem os ritos católicos. Podemos sem dúvidas expressá-las, mas jamais esgotá-las, e se elas nunca se esgotam então isso significa que sempre é possível exprimi-las mais e melhor.

É dentro dos limites deste segundo aspecto dos ritos que o padre Paulo Ricardo tece as suas considerações. A capacidade do Missal de Paulo VI de confeccionar os Sacramentos que ele se propõe a confeccionar está totalmente fora de discussão: é claro que ele realiza os Sacramentos, e o próprio fato do pe. Paulo continuar a celebrá-lo é por si só evidência mais do que suficiente de que ele sabe muito bem disso. No entanto – este é o ponto do sacerdote – houve um inegável empobrecimento da expressividade do Rito Romano com a Reforma de 1969, e é essa a história que o padre se propõe a contar.

Dado isso, o que pode ser feito? Como o próprio sacerdote disse de modo explícito, não se trata simplesmente de voltar à celebração da Missa com as rubricas de 1962 e nem muito menos de confeccionar novos livros litúrgicos, coisa que aliás o pe. Paulo sabe perfeitamente não ter competência para fazer. Trata-se, em primeiríssimo lugar, de conhecer um assunto que, infelizmente, durante muito tempo foi “propriedade” (de modo totalmente ilegítimo) de grupos tradicionalistas em guerra contra a Igreja de Roma. E é neste sentido, antes de qualquer coisa, que eu disse ter ficado contente com as considerações do padre Paulo: o próprio fato do assunto ganhar cidadania católica fora dos guetos dos que são contrários ao Concílio Vaticano II é por si só razão mais do que suficiente para se aplaudir a iniciativa do sacerdote de Cuiabá. Afinal de contas, citando o então Card. Ratzinger (que o padre Paulo citou no seu segundo programa):

Mas que se possa ter a impressão de que nada neste Missal [de Paulo VI] possa jamais ser alterado, como se qualquer reflexão sobre possíveis reformas ulteriores fosse necessariamente um ataque ao Concílio [Vaticano II] – semelhante idéia eu só posso chamar de absurda.

[But that the impression should arise as a consequence that nothing in this missal must ever be changed, as if any reflection on possible later reforms were necessarily an attack on the Council – such an idea I can only call absurd.]

RATZINGER, Joseph,
«The Spirit of the Liturgy or Fidelity to the Council: Response to Father Gy»,
Antiphon 11.1 (2007): 98-102.

Em segundo lugar, o conhecimento das riquezas da Liturgia Católica ajuda muitíssimo a melhor celebrar e a participar de modo mais frutuoso da Santa Missa, mesmo das celebradas segundo os livros litúrgicos atualmente em vigor. Afinal, entender a importância de certos aspectos litúrgicos próprios do catolicismo e que, não obstante serem pouco utilizados ou estarem obscurecidos pela praxis quotidiana, permanecem integralmente válidos dentro do Novus Ordo – coisas como a língua, a música, os paramentos, a posição do sacerdote, o significado da Missa como um todo e de diversas orações que dela fazem parte, a forma de se receber a comunhão, etc. – ajuda-nos a valorizá-los quando os encontramos e a promovê-los quando eles estão ausentes. Era isso, aliás, o que fazia o Papa Bento XVI, que não celebrou jamais enquanto Papa a Missa Tridentina mas soube se utilizar dos elementos previstos no Missal de Paulo VI para impulsionar a sacralidade litúrgica – esta, sim, que não pode jamais faltar, seja qual for o rito em que se celebre.

Por fim, em terceiro lugar, isso fomenta a – por que não? – sadia discussão sobre o assunto. É preciso abandonar a histeria que se construiu em torno da Reforma Litúrgica, é preciso combater com coragem esta idéia – que o Card. Ratzinger chamava “absurda” – de que quaisquer reflexões sobre possíveis reformas no Missal de Paulo VI sejam por si sós um ataque ao Concílio. É portanto justo e conveniente que a pessoas equilibradas, em perfeita sintonia com a Igreja, seja concedido o direito de estudar o Missal de Paulo VI e inclusive propôr alterações a ele, sem que lhes seja lançada à face a pecha de tradicionalistas cismáticos inimigos da Igreja. O padre Paulo, corajosamente, reivindicou de modo perfeitamente legítimo o exercício desse direito: que o sigam os que se julgam capazes de colaborar nesta seara! Ao contrário, transformá-lo em um revoltoso desobediente em nada distinguível dos mais radicais tradicionalistas é, além de uma inverdade e uma injustiça, um enorme desserviço que se presta tanto à Igreja Católica quanto à Sua Sagrada Liturgia.