A Igreja Católica e a «reforma política»

É verdadeiramente oportuna – profética até – esta entrevista de D. Murilo Krieger, arcebispo primaz do Brasil, publicada recentemente em Zenit. Nela Sua Excelência afirma, aos quatro ventos e com todas as letras, para quem quiser ouvir, que, no que concerne à “reforma política” atualmente em análise em uma comissão da Câmara dos Deputados criada especificamente para este fim, «algumas das propostas não correspondem ao que nós bispos defendemos ou, ao menos, o que muitos bispos pensam; nem algumas propostas que julgamos importantes estão ali».

Veja-se bem, “reforma política” é uma expressão muito vaga, dentro da qual “cabe” praticamente qualquer coisa. E se é muito fácil conseguir um enorme consenso em torno de bandeiras genéricas – quem, em sã consciência, vai negar que existe algo de muito podre no sistema político do Brasil atual? -, ajuntam-se cada vez menos devotos sob os estandartes à medida que eles se vão especificando e detalhando. Isso é bastante evidente, e não tem como ser de outra forma. No entanto, pretender que o projeto detalhado sirva indistintamente a todos os que manifestaram concordância com o ideal genérico, aí já é um salto que não se pode fazer sem critério. Mais ainda: fazer acreditar que ao específico projeto de reforma política que se está delineando em uma comissão do Congresso Nacional irão acorrer entusiasmados todos os que estão insatisfeitos com os rumos do nosso governo, assim, sem mais, é mais do que erro metodológico: é falha de caráter, é falta de honestidade, contra a qual é necessário se precaver.

Que o nosso sistema político necessite de uma reforma é um lugar comum. Qual seja especificamente a reforma da qual ele precisa, aí já é assunto para dividir as opiniões e acirrar os ânimos. Afinal, o que é “reforma política”? É voto majoritário, proporcional ou distrital? É exigir fidelidade partidária ou permitir que os candidatos concorram a cargos políticos sem pertencer a partido algum? É acabar com as legendas pequenas ou facilitar o processo de criação de partidos? É fortalecer ou banir as coligações? É financiamento público ou privado de campanha? As dúvidas, em suma, são muitíssimas: e se é verdade que todo mundo quer “mudanças” no cenário político nacional, disso não segue necessariamente que todos queiram mudar cada um dos pontos passíveis de mudança, e nem muito menos que os desejem modificar para o modelo proposto pelo colegiado do Congresso.

E é aqui que a porca começa a torcer o rabo, que a Conferência dos Bispos começa a meter os pés pelas mãos e que a intervenção do Primaz do Brasil se faz necessária. Há algumas semanas, a CNBB apresentou solenemente o “Manifesto em Defesa da Democracia” «para a mobilização em torno do Projeto de Lei de Iniciativa Popular e da defesa do Projeto de Lei (PL) 6316/2013, em tramitação na Câmara dos Deputados». Nem vou olhar para o PL agora. Ater-me-ei, primeiramente, ao texto do manifesto. Nele é dito que «[u]rge, portanto, para restaurar o prestígio de tais instituições [da Democracia Representativa], que se proceda, entre outras inadiáveis mudanças, à proibição de financiamento empresarial nos certames eleitorais, causa dos principais e reincidentes escândalos que têm abalado a Nação».

Ora, em primeiro lugar, não é o “financiamento empresarial” o que expõe as instituições democráticas ao descrédito, e sim a corrupção do governo. O cerne do enojamento popular é o fato mesmo do desvio de recursos para fins escusos, e não a autoria “empresarial” de tal desvio. O mesmíssimo asco se verificaria, a propósito, se fossem agentes públicos a desviar verba pública para a compra de apoio político.

Em segundo lugar: ao não fazer nenhuma alusão – nem mesmo remota… – a quais seriam essas «outras inadiáveis mudanças» que o restabelecimento do prestígio das instituições democráticas exige, o documento assume os ares de um cheque em branco. Não se sabe ao certo o quê os seus signatários estão demandando. É o problema a que se fez referência acima.

Em terceiro lugar, por fim, e muito mais importante aqui: ainda concedendo que a «proibição de financiamento empresarial nos certames eleitorais» fosse uma medida que gozasse da aceitação pacífica da sociedade brasileira, não caberia à Conferência dos Bispos tomar partido em tema tão materialisticamente contingente. A Igreja é Católica porque congrega em Si toda a diversidade legítima de posições temporais: n’Ela cabem (ressalvados, lógico, os aspectos das correntes políticas que são incompatíveis com o ensino da Igreja, e os quais existem em menor ou maior grau ao longo do espectro político historicamente apresentado) o monarquista e o republicano, o democrata e o liberal, o parlamentarista e o presidencialista, o defensor e o opositor do financiamento privado de campanha.

Não existe, portanto, nenhuma “posição católica” a respeito de reforma política alguma a não ser aquela que consiste nos princípios da Doutrina Social da Igreja – e, destes, não decorre nenhum regime político específico, nenhuma norma sobre financiamento de campanhas políticas, nenhum tipo concreto de sistema eleitoral. A Igreja não desce a essas miudezas. Não se queira, assim, sequestrar o apoio eclesiástico para iniciativa legislativa alguma dessa jaez. Pelo contrário aliás: talvez o engodo seja um indício de que os católicos, hic et nunc, devamos nos posicionar de modo contrário, e não favorável, ao movimento que se está urdindo.