“É como num parto”

É como num parto. Tem parto que é rapidinho, tem parto que é mais demorado…

Passou no Fantástico ontem. São 19m43s de vídeo (aqui), que reproduzo abaixo: flagrantes, flagrantes e mais flagrantes de clínicas de aborto funcionando à luz do dia, literalmente sob os narizes das autoridades – inclusive a segurança de uma das clínicas mostrada pela reportagem é feita por policiais militares (!) -, sem que ninguém pareça se importar.

Vergonha e impunidade: a vida humana, tratada como se não fosse nada, em um mercado altamente lucrativo (o preço de um único aborto realizado em menores de idade custa a bagatela de R$ 1.500,00) e para o qual não faltam clientes. O procedimento abortivo, como disse um médico, pode chegar a demorar “uns dez, no máximo quinze minutos”. Façam-se as contas e imaginem a quantidade de dinheiro que esta indústria movimenta. Dinheiro para agir à margem da lei e contra a Moral. Dinheiro sujo do sangue de crianças inocentes. Dinheiro que se ganha matando crianças, ceifando vidas.

Mas o pior foi a comparação que uma “enfermeira” fez: o aborto é “como um parto”! Alguns demoram mais, outros demoram menos… ou seja, ninguém está preocupado com a lei que está sendo infringida ou – pior ainda! – com a criança que está sendo brutalmente assassinada. As pessoas preocupam-se é com o tempo que vão “perder” para resolver este “problema”, ou com o risco que porventura podem correr. Em nenhum momento, ninguém fala na criança. A carnificina segue, motivada de um lado pelas mulheres que querem “se livrar” deste “problema” e, do outro, pelo tilintar das moedas que enchem os bolsos dos aborteiros. O hedonismo encontra-se com a ganância, deixando para trás um rastro de sangue e bebês descartados como “lixo hospitalar”.

“Como um parto”! É aviltante. Um parto, o acontecimento por meio do qual as crianças vêm à vida: um aborto, o cruel assassinato de uma vida humana indefesa. Dois destinos opostos para o feto: nascer ou morrer. O berçário ou a lata de lixo. O amor ou o desprezo. Uma mãe ou uma assassina. Um médico ou um carrasco. Como assim, “é como num parto”?! Só pode ser zombaria. Poucas coisas podem ser tão diferentes e tão opostas.

A reportagem nos mostra, enfim, que há uma gigantesca impunidade no Brasil no que se refere à indústria do assassinato de crianças indefesas. Urge que as autoridades façam alguma coisa.

Leitura correlata [em espanhol]: presidente da Pontifícia Academia para a Vida fala (entre outras coisas) sobre a síndrome pós-aborto.

A promoção de Fisichella

Via Fratres in Unum. Destaco:

O novo dicastério [Pontifício Conselho para a Nova Evangelização] representa, até este momento, a novidade mais consistente do pontificado de Bento XVI. Com este importante encargo, expressamente pensado e querido pelo Pontífice, Fisichella está destinado a aumentar o seu peso na Cúria Romana.

O texto original é de Andrea Tornielli. A parte do “Fisichella è destinato ad aumentare il suo peso nella Curia romana” está lá. Sou no entanto da opinião que vai ser o contrário: esta promoção é a “saída honrosa” encontrada pelo papa para tirar Dom Rino da presidência da Pontifícia Academia para a Vida, e deixá-lo ocupado com toda a organização necessária ao funcionamento do novo dicastério…

Convite URGENTE e importante

Quando eu anunciei aqui a III Caminhada Arquidiocesana em Defesa da Vida, não sabia da importância de um outro evento, que constava no cartaz de divulgação então cá publicado: o Fórum em Defesa da Vida.

Trata-se de nada menos do que uma palestra – entrada franca – com o Mons. Michel Schooyans, membro da Pontifícia Academia Para a Vida e praticamente voz solitária a se levantar, de dentro da própria PAV, contra o tristemente célebre artigo de Dom Rino Fisichella e também contra a própria nota da Congregação para a Doutrina da Fé que esclarecia o assunto. Simplesmente imperdível.

Não deixem de comparecer!

O QUÊ: Fórum em Defesa da Vida

QUANDO: Sexta-Feira (HOJE), 02 de outubro, 19:30

ONDE: Auditório da Fafire (Conde da Boa Vista)

Entrada Franca

Os limites de um esclarecimento – Mons. Michel Schooyans

[Publico artigo do Mons. Michel Schooyans, membro da Pontifícia Academia para a Vida, já publicado no Exsurge, Domine! ontem, sobre a – aparentemente infindável – polêmica envolvendo o aborto dos gêmeos da menina de Alagoinha e o malfadado artigo do presidente da supracitada Academia, Dom Rino Fisichella, bem como o posterior esclarecimento da Congregação para a Doutrina da Fé. Não consegui encontrar o artigo original; esta tradução, no entanto, foi-me enviada por um sacerdote legionário, que conheço  pessoalmente, o qual sei que não seria leviano em assunto de tão grave importância.

Não sei a data original deste artigo. Há em LifeSiteNews.com o Complete Article on “The Recife Affair” by Political Philosophy Professor Monseigneur Michel Schooyans, publicado em junho p.p., mas anterior ao esclarecimento da Congregação para a Doutrina da Fé (que, a propósito, aqui só fiz citar en passant), posto que este é de julho p.p.; aqui não se trata, portanto, daquele artigo então escrito pelo Mons. Schooyans contra Dom Rino Fisichella, mas sim de um outro, posterior aos esclarecimentos da CDF.

Em todo caso, as questões colocadas pelo membro da Pontifícia Academia para a Vida são relevantes e merecem reflexão. Rezemos pela Igreja.]

OS LIMITES DE UM ESCLARECIMENTO

Mons. MICHEL SCHOOYANS

Professor Emérito da Universidade Católica de Louvain
Membro da Pontificia Academia para a Vida

O artigo da Congregação para a Doutrina da Fé foi em geral recebido com interesse, porém, foi objeto de várias reservas. Eis aqui algumas delas:

1.   O “Esclarecimento” teria se beneficiado em continuar a citação (cf. abaixo) desse mesmo número 89 da Encíclica “Evangelium vitae”: “O respeito absoluto por toda vida humana inocente exige também o exercício da objeção de consciência face ao aborto provocado e à eutanásia. ‘Fazer morrer’ não pode jamais ser considerado como cuidado médico, mesmo se a intenção fosse apenas atender um pedido do paciente: é ao contrário a negação das profissões de saúde, que se definem por um ‘sim’ apaixonado e tenaz à vida”.

2.   Se RF tinha proposto a doutrina da Igreja de maneira correta, por que a CDF teve que recordá-la extensamente?

3. O Esclarecimento sugere que o artigo de RF fora doutrinariamente fiel e que consequentemente, as críticas a seu respeito, eram desprovidas de fundamento e que só poderiam proceder de uma vontade de manipular o texto do arcebispo. Afirmar isso é no mínimo ofensivo aos numerosos bispos e militantes pró-vida que manifestaram seu espanto. A reação imediata dos militantes pró-aborto, entre os quais Frances Kissling, mostra que os militantes pró-vida, atuantes, logo perceberam o perigo de um artigo de tal ordem.

4. O esclarecimento deixa de dizer com clareza que RF se afasta da doutrina da Igreja e por causa disso que a CDF teve que relembrá-la. RF cita a doutrina da Igreja não para segui-la, mas ao contrário, para reforçar sua própria posição: em certos casos, a consciência individual “legítima” a transgressão do direito canônico que, nesse caso, reafirma a moral natural. Em outros termos, RF não cita a doutrina da Igreja senão para dizer que dela podemos nos afastar, desde que a consciência subjetiva assim o solicite. A intenção fundamental, subjetiva, prevalece sobre a lei moral.

5. Ao publicar seu “Esclarecimento” a CDF se colocou numa postura delicada. De um lado, ela se recusa em desacreditar RF. De outro, sabe que a RF executou uma missão patrocinada pela Secretaria de Estado. A esta a CDF não quis desagradar. Na medida em que assim procede, a CDF se coloca em uma situação no mínimo inquietante. Com efeito, ela se arrisca a dar a impressão de dar cobertura à posição de RF. O “Esclarecimento” é portanto portador de confusões e um pouco fora do assunto. Ela escapa do ponto focal da posição de RF: “Os médicos devem sempre seguir a sua consciência”. Essa falha do “Esclarecimento” sem dúvida não escapará àqueles que militam pelo aborto. Podemos esperar para que Frances Kissling e os movimentos pró-aborto tirem proveito da insuficiência dessa resposta para fazer avançar sua agenda.

6. Em resumo, o interesse do “Esclarecimento” é um tanto quanto limitado, na medida em que este não aborda o problema a fundo. O problema, é aquele da autonomia absoluta da consciência individual que não se deve referir a uma lei superior, natural e cristã [1]. Em última análise, o artigo de RF coloca problemas dogmáticos e mais precisamente eclesiológicos. Face à consciência subjetiva, a moral cristã deve ceder lugar. Assim, em nome da liberdade de consciência do médico e da liberdade de escolha das mulheres, é corroído o direito da criança não nascida.

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[1] O ensino do Vaticano sobre a consciência é exposto notadamente em “Gaudium et spes”, 16; 19, 3; 50, 2; 87; 3; em “Dignitatis humanae”, 3; em “Apostolicam actuositatem”, 5; etc. Cf. também o “Catecismo da Igreja Católica”, em particular os n° 1776-1802 e em numerosas outras passagens.

Comentando o artigo de Dom Fisichella

Gostaria de acrescentar mais alguns ligeiros comentários ao artigo de Sua Excelência Reverendíssima Dom Rino Fisichella, publicado na edição de ontem de L’Osservatore Romano e aqui reproduzido. Em seu artigo, o presidente da Pontifícia Academia para a Vida fez alguns comentários sobre o caso do aborto em Recife e das declarações do Arcebispo local.

Antes de qualquer coisa é preciso deixar bem claro que ninguém – absolutamente ninguém – negou a existência do cân. 1398 do Código de Direito Canônico que diz que “[q]uem provoca aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latae sententiae”. Ora, este é o cerne das declarações do Arcebispo de Olinda e Recife; de onde se pode inferir que, no essencial, ninguém discorda de Dom José Cardoso e nem pode discordar, porque seria discordar do Código de Direito Canônico da Igreja. Todos os “católicos” que chiaram contra a pena nos últimos dias, que consideraram um absurdo medieval a existência da excomunhão, que lançaram ao Arcebispo a pecha infamante de “Inquisidor” e coisas parecidas, no final das contas era contra a Igreja – ainda que não o soubessem – que dirigiam a sua fúria descabida. Quanto a este ponto, não cabe discussão.

No entanto, há a possibilidade – e é aqui que se insere o artigo de Dom Fisichella – de se questionar não o cânon em si (o que seria impossível), mas a atitude do Arcebispo de Olinda e Recife de anunciar publicamente a sua existência em meio ao drama (o que, diga-se de passagem, é inoportuno e imprudente – mas, vá lá!). A quantidade de matizes que esta modalidade de crítica pode admitir é virtualmente infinita, indo desde o questionamento sobre a existência, no caso concreto, de atenunantes que poderiam livrar da excomunhão os envolvidos no aborto, até a afirmação peremptória de que foi inoportuna a declaração do Arcebispo. O artigo de Dom Fisichella consegue cobrir estes dois extremos.

Ele critica abertamente a postura de Dom José Cardoso, ao afirmar, por exemplo, que o assassinato das duas crianças inocentes [“É verdade, Carmen trazia dentro de si outras vidas inocentes como a sua, também frutos da violência, e foram suprimidas“; grifos meus] não é – pasmem! – motivo suficiente para se falar na excomunhão [“não basta para emitir um julgamento que pesa como um machado”; grifos meus novamente]! Oras, Excelência, data venia, se o assassinato de duas crianças inocentes, que V. Excia. admite existir, “não basta” para emitir o “julgamento que pesa como um machado”, então o que é que bastaria para emiti-lo? O que é que está faltando? Se a existência de fato de um delito não é suficiente para se falar na pena em que incorre quem comete este delito… então quando é que poderemos falar nesta pena? Nunca…?

Donde se vê que a argumentação simplesmente não procede. Diz Sua Excelência que a existência do aborto não é o bastante para falar na excomunhão, mas esquece-se de dizer o que seria o bastante. Caímos, neste caso, em um “raciocínio” semelhante ao encontrado nas declarações do Secretário Geral da CNBB: nunca poderíamos falar sobre o assunto. Os inimigos da Igreja certamente iriam gostar deste silêncio que raia à cumplicidade; no entanto, nós, católicos, temos sempre a obrigação de falar. Podemos sempre repetir com o Apóstolo: “ai de mim, se eu não anunciar o Evangelho” (1Cor 9,16)!

A outra parte da crítica de Dom Fisichella refere-se à existência da excomunhão em si, no caso concreto deste aborto ocorrido em Recife. Infere-se a sua simpatia pelos médicos em pelo menos dois trechos do seu artigo: quando ele fala que “não se pode consentir que se faça um juízo negativo, sem primeiro ter considerado o conflito que se criou em seu [do médico] íntimo”, e – pior ainda! – quando diz, dirigindo-se à menor, que “[s]ão outros que merecem a excomunhão e o nosso perdão, não os que te permitiram viver”. Aqui, peca Sua Excelência por desinformação: não houve “conflito” algum no “íntimo” dos médicos, porque são abortistas militantes. Em nenhum momento eles titubearam; não se tratou, sob nenhuma ótica, de uma decisão tomada sob a pressão de ter diante de si uma vida que se esvaía e pela qual era necessário urgentemente fazer alguma coisa, porque a menina não corria nenhum risco de vida imediato. Outrossim, o que significa a frase misteriosa do final do artigo? Não são os médicos carniceiros que merecem a excomunhão? Quem são os “outros” aos quais Sua Excelência se refere? Por que Dom Fisichella não expõe claramente as suas opiniões sobre o assunto, ao invés de ficar com estas sentenças soltas e frases genéricas que ninguém sabe ao certo o que significam?

O artigo do presidente da Pontifícia Academia para a Vida aborda aspectos corretos dos problema (e talvez isso explique a sua publicação no L’Osservatore), porque, afinal, é certamente necessário dar apoio humano à menor violentada e é obviamente necessário levar em consideração os aspectos subjetivos que, num caso concreto, delimitam as fronteiras entre o erro de boa fé (que exime da pena) e a malícia do ato (que faz nela incorrer); no entanto, ele é duplamente injusto. É injusto com Dom José Cardoso, retratado como um insensível, e é injusto com os médicos promotores do aborto, virtualmente apresentados como cristãos exemplares atravessando dramas de consciência. Uma completa inversão de papéis! É de se lamentar que – mais uma vez – um Sucessor dos Apóstolos venha a ser usado pelos inimigos da Igreja para atacá-La e humilhá-La. Não, Dom Fisichella, a Igreja – definitivamente – não precisava disso.

Dalla parte da bambina brasiliana

[Publico tradução (traditora…) do artigo de Dom Rino Fisichella, Arcebispo presidente da Pontifícia Academia para a Vida, publicado na edição de hoje do L’Osservatore Romano, ao qual se refere – entre outras – esta reportagem. Vale salientar que (a) trata-se de um artigo de um jornal, e não de um documento da Santa Sé; (b) trata-se da posição pessoal de um Arcebispo, e não de uma “crítica do Vaticano”; (c) data maxima venia, trata-se de uma excelente situação na qual Sua Excelência bem que poderia ter ficado calado…

A edição de hoje – Anno CXLIX n. 62 (45.105) domenica 15 marzo 2009 – de L’Osservatore Romano pode ser baixada aqui.]

Em defesa da menina brasileira

RINO FISICHELLA *

O debate sobre algumas questões é muitas vezes cerrado e as diferentes perspectivas nem sempre nos permitem considerar o quanto o que está em jogo é verdadeiramente grande. É este o momento no qual se deve guardar o essencial e, por um instante, deixar de lado aquilo que não toca diretamente ao problema. O caso, em sua dramaticidade, é simples. Existe uma menina de apenas nove anos – chamemo-la Carmen – em cujos olhos nós devemos olhar fixamente, sem desviarmos o olhar nem por um instante, para fazê-la entender o quanto nós lhe queremos bem. Carmen, de Recife, no Brasil, foi violentada repetidas vezes pelo jovem padrasto, ficou grávida de dois gêmeos e não terá mais uma vida fácil. A ferida é profunda porque a violência de todo gratuita a destruiu por dentro, o que dificilmente a permitirá no futuro olhar aos outros com amor.

Carmen representa uma história de violência quotidiana e ganhou as páginas dos jornais somente porque o arcebispo de Olinda e Recife apressou-se a declarar a excomunhão para os médicos que a ajudaram a interromper a gravidez. Uma história de violência que, portanto, teria passado despercebida, tanto se está habituado a sofrer todos os dias fatos de uma gravidade inigualável, se não fosse por causa do tumulto e das razões suscitadas pela intervenção do bispo. A violência contra uma mulher, já grave de per si, assume um valor ainda mais lamentável quando é uma menina a sofrê-la, com o agravante da pobreza e da degradação social na qual vive. Não existem palavras adequadas para condenar tais episódios, e os sentimentos que se seguem são com freqüência uma mistura de raiva e de rancor, que só sossegam [assopiscono] quando vêem a justiça realmente realizada, e a pena a ser infligida ao delinqüente, por sua vez, é certo que seja aplicada.

Carmen deveria ser em primeiro lugar defendida, abraçada, acariciada, com doçura para fazê-la sentir que estávamos todos com ela; todos, sem distinção alguma. Antes de pensar na excomunhão era necessário e urgente salvaguardar sua vida inocente e fazê-la retornar a um nível de humanidade do qual nós, homens de Igreja, devemos ser anunciadores e mestres especialistas [esperti]. Assim não foi feito e, portanto, sofre as conseqüências [ne risente] a credibilidade do nosso ensinamento, que aparece aos olhos de tantos como insensível, incompreensível e privado de misericórdia. É verdade, Carmen trazia dentro de si outras vidas inocentes como a sua, também frutos da violência, e foram suprimidas; isto, no entanto, não basta para emitir um julgamento que pesa como um machado.

No caso de Carmen, encontram-se a vida e a morte. Por causa de sua pouquíssima [giovanissima] idade e das condições de saúde precárias, a sua vida estava em sério risco por causa da gravidez. Como agir nestes casos? Decisão difícil para o médico e para a própria lei moral. Escolhas como esta, ainda se com uma casuística diferente, repetem-se todos os dias nas salas de reanimação, e a consciência do médico encontra-se sozinha com ela mesma no ato de ter que decidir o que é melhor a se fazer. Nenhum, entretanto, chega a uma decisão deste gênero com desenvoltura: é injusto e ofensivo até mesmo pensá-lo.

O respeito devido ao profissionalismo do médico é uma regra que deve envolver todos, e não se pode consentir que se faça um juízo negativo, sem primeiro ter considerado o conflito que se criou em seu íntimo. O médico traz consigo a sua história e sua experiência; uma escolha como aquela de precisar salvar uma vida, sabendo que põe em sério risco uma segunda, nunca é vivida com facilidade. Certo, alguns se habituam às situações para, assim, não experimentarem mais as emoções; nestes casos, porém, a escolha de ser médico degrada-se em apenas uma ocupação vivida sem entusiasmo e passivamente. Fazer de todas as plantas um feixe [Fare di tutta un’erba un fascio], no entanto, além de incorreto seria injusto.

Carmen nos propôs um caso moral entre os mais delicados; tratá-lo precipitadamente não redundaria em justiça, nem para com a sua frágil pessoa, nem para com tantos quanto estão envolvidos, de várias maneiras, na sua história. Como todos os casos singulares e concretos, no entanto, merece ser analisado em sua peculiaridade, sem generalizações. A moral católica tem princípios dos quais não pode prescindir, ainda que quisesse. A defesa da vida humana desde a sua concepção é um destes, e se justifica pela sacralidade da existência. Todos os seres humanos, de fato, desde o primeiro instante carregam impressa em si a imagem do Criador, e por isto estamos convencidos de que devemos reconhecer a diginidade e os direitos de todas as pessoas, antes de tudo aqueles da sua intocabilidade e inviolabilidade.

O aborto provocado é sempre condenado como um ato intrinsecamente mau e este ensinamento permanece inalterado em nossos dias, desde os primeiros da Igreja. O Concílio Vaticano II na Gaudium et Spes – documento de grande abertura e compreensão [accortezza] no  tocante ao mundo contemporâneo – usa de maneira inesperada palavras inequívocas e duríssimas contra o aborto direto. A própria colaboração formal constitui uma culpa grave que, quando realizada, traz automaticamente para fora da comunidade cristã [porta automaticamente al di fuori della comunità cristiana]. Tecnicamente, o Código de Direito Canônico usa a expressão latae sententiae para indicar que a excomunhão ocorre justamente no próprio momento no qual o fato acontece.

Não havia necessidade, repetimos, de tanta urgência e publicidade em declarar um fato que atua de maneira automática. Aqueles dos quais se sentem mais a necessidade neste momento são o sinal de um testemunho de proximidade com quem sofre, um ato de misericórdia que, mantendo firme o princípio, é capaz de olhar para além da esfera jurídica e alcançar aquilo que o direito mesmo estabelece como escopo de sua existência: o bem e a salvação de quantos acreditam no amor do Pai e de quantos acolhem o Evangelho de Cristo como as crianças, que Jesus chamava a Si e estreitava entre Seus braços, dizendo que o Reino dos Céus pertence a quem se lhes assemelha.

Carmen, estamos ao teu lado. Dividimos contigo o sofrimento que experimentaste, e gostaríamos de fazer de tudo para restituir-te a dignidade da qual foste privada e o amor do qual tens agora mais necessidade. São outros que merecem a excomunhão e o nosso perdão, não os que te permitiram viver e te ajudaram a recuperar a esperança e a confiança. Não obstante a presença do mal e a maldade de muitos.

* Arcebispo presidente da Pontifícia Academia para a vida.