Sobre imagens e símbolos, no funeral de D. Eugenio Sales

A foto abaixo foi compartilhada à exaustão ontem tanto no Facebook quanto na blogosfera católica. Pesquisando um pouco, cheguei à sua [mais provável] fonte original que é esta galeria de imagens da UOL, na qual podem inclusive ser vistas outras imagens da alva guardiã do féretro do Eminentíssimo cardeal brasileiro recém-falecido. Ontem, um jornal da Globo também falou sobre ela.

Como sempre, houve entre os críticos da religião quem se incomodasse com o fato de uma pomba branca ter passado tanto tempo ao lado do ataúde cardinalício. Depois das primeiras levianas acusações de montagem terem sido desmentidas pela profusão das fontes testemunhas primárias, passou-se rapidamente às buscas de causas naturais para o fenômeno, não raro chegando a acusações (igualmente levianas) de fraude deliberada. Isto como se nós, os religiosos, tivéssemos em algum momento insinuado que a pomba branca era uma demonstração cabal da existência de Deus ou coisa parecida, ou como se os inimigos de Deus tivessem perdido as aulas básicas de lógica elementar e acreditassem sinceramente, por algum irracional e nonsense ato de fé, que refutar uma demonstração é equivalente a demonstrar a falsidade da tese em análise.

E não é a primeira vez que isso acontece. Coisa idêntica foi feita diante, p.ex., da cruz em pé no meio dos escombros aos quais foi reduzida uma igreja no Haiti quando houve um terremoto, ou diante da pequena imagem de Nossa Senhora das Graças deixada em pé após as enchentes de Petrópolis no início do ano passado. Ou quando foi divulgada uma imagem de um batismo na Espanha na qual a água derramada pelo padre formava uma cruz. Eu aproveito a oportunidade da – belíssima! – imagem dos funerais de D. Eugenio Sales para repetir o que eu já falei algures sobre o assunto.

Em uma palavra, os (auto-intitulados) livres-pensadores têm uma absurda dificuldade em entender um símbolo (ou uma extraordinária má-vontade em aplicar este conceito a assuntos religiosos). É como se a única forma de uma imagem ser verdadeira seria se ela correspondesse perfeitamente à realidade empírica, e – pior! – contendo em si mesma todas as informações necessárias para explicitar sem margem de dúvida razoável a cadeia completa de causas materiais que a produziram. Pior ainda é quando atribuem uma falsa intenção a quem divulga a imagem e, não encontrando nela elementos suficientes para demonstrar aquela alegada intenção, classificam a imagem como falsa e quem a divulga como um enganador.

Por exemplo, a presente imagem da pomba acompanhando o esquife do cardeal. Foi dito – de maneira até inexplicavelmente agressiva – que é perfeitamente possível fazer uma pomba ficar num caixão sem que isto prove a existência de Deus. Oras, mas é claro que é possível, e de incontáveis maneiras: a pomba podia ser treinada, podia ser uma pomba de estimação do cardeal, podia haver algum vestígio de substância (p.ex., farelo de pão) sobre o caixão que a tivesse atraído, ou simplesmente a pomba pode ter ficado lá porque ela precisava ficar em algum lugar e calhou de ser em cima do caixão, etc. Na verdade, isto importa bem pouco, porque o ponto aqui é outro: é a força da imagem de uma pomba branca velando o corpo de um cardeal da Santa Igreja, e a mensagem aqui transmitida não perde o seu vigor dependendo da forma como a cena foi produzida.

Não existem somente as (na falta de expressão melhor) “verdades factuais”. Por exemplo – e este os ateus hão de entender -, quando alguém vê um conjunto de bolinhas e de linhas curvas em certa disposição, sabe que aquilo é um átomo. Pouco importa se o átomo “de verdade” não é exatamente assim (e as “bolinhas”, longe de serem indivisíveis, são formadas por diversas outras partículas sub-atômicas, e os elétrons não descrevem bem movimentos elípticos e são melhor representados por funções de probabilidade, etc.), aquilo é um átomo. Ainda por exemplo (os ateus façam uma forcinha para entenderem esta), aquele quadro que tem na igreja do Senhor do Bonfim em Salvador e que retrata a morte do ímpio não significa que os demoniozinhos são bípedes com caras de monstros e que ficam fisicamente puxando o moribundo para impedi-lo de [até mesmo involuntariamente] estender os braços em direção à cruz que lhe é oferecida. Um sujeito que dissesse que este quadro é “falso” ou “mentiroso” por conta disso não entendeu, absolutamente, qual é o propósito do quadro, e está preso em uma visão tosca de um emaranhado de elementos sensíveis com relação aos quais não tem, absolutamente, a menor visão de conjunto.

A majestosa ave ebúrnea posta como atalaia do corpo do eminentíssimo cardeal Eugenio Sales ao longo de todo o cortejo fúnebre não tem verdades metafísicas a comunicar com a autoridade de um emissário dos Céus. Aliás, até mesmo para os católicos, a sua presença não deve ser tomada como um sinal inequívoco de que o egrégio purpurado encontra-se já na Glória de Deus. Mas ela serve, sim, como um sinal de esperança na misericórdia divina; como uma homenagem – justíssima, por certo, independente de quem a tenha preparado – ao general que parte (sobre homenagens, aliás, vale ler o frei Rojão), convidando-nos a continuar aqui na terra o seu trabalho e a oferecer-lhe, como gratidão pelo bem realizado, o sufrágio de nossas orações. Que o Senhor lhe dê o descanso eterno, e a luz perpétua brilhe sobre ele. Descanse em paz, Dom Eugenio Sales.

Et Verbum caro factum est

O Cristianismo é a religião do Verbo Encarnado, do Logos e, por isso, trata-se sem dúvidas de uma religião eminentemente intelectual. De facto, em sendo a racionalidade uma característica própria do ser humano, e tão intimamente sua que o distingue de todo o resto da Criação, é de se esperar que a Religião Verdadeira possa elevar o homem também – e, aliás, principalmente – em sua capacidade racional. Seria completamente absurdo pretender que a Religião, que trata da relação do homem com o Sagrado, o seu Princípio verdadeiro e seu Fim último, fosse descuidar daquilo que é intrínseco e essencial à natureza humana: a sua capacidade intelectual.

A oposição entre Fé e Razão, entre religião e racionalidade, portanto, é não apenas falsa como também absolutamente vazia de sentido. Os que postulam tal incompatibilidade ignoram quer a natureza humana, quer a natureza da religião. Nunca existiu – e nunca nem poderia existir – uma religião que se apresentasse como “irracional”, que fosse estranha à razão humana, a ela oposta ou mesmo que com ela não se importasse. O problema de Deus, posto em seus termos filosóficos elementares, pode também ser exposto da seguinte maneira (que Gilson já apontava no seu “Deus e a Filosofia”, e que cito de memória): dado que existe racionalidade no mundo, como postular um Princípio que não seja, ele próprio, também racional?

Estas considerações prescindem, até o presente momento, de qualquer credo específico. Não raro encontram-se pessoas que, à vista das provas metafísicas da existência de Deus (como as Cinco Vias tomistas, por exemplo), e não lhes podendo negar a força, afirmam que, do Primeiro Motor Imóvel à Trindade Santa, vai uma distância muito grande que a razão humana “sozinha” não é capaz de atravessar. Isto, concedemos facilmente (até porque nunca foi segredo que a Fé ensina coisas que, embora não contrárias à razão humana, por esta sozinha não poderiam ser descobertas); o que não concedemos é que tal constatação (aliás, do óbvio) seja suficiente para impugnar a racionalidade quer da própria existência de Deus, quer da Doutrina Cristã.

Porque, vejamos: da mesma forma como é necessário que haja um Primeiro Motor que seja a origem do movimento no Universo, que haja um Ser Subsistente no qual esteja a origem do ser dos entes criados, é também necessário que haja uma Inteligência que seja a causa da natureza racional encontrada no mundo. O Primeiro Princípio, portanto, é necessariamente racional. A esta conclusão é capaz de chegar a teologia natural; e,  ao encontro dela, vem a Revelação Cristã dizer que in principio erat Verbum.

E, ainda: se o Primeiro Princípio é racional, então Ele é pessoa, porque pessoa – na definição de Boécio adotada por Santo Tomás de Aquino – é precisamente uma subsistência individual de natureza racional. Ora, o Primeiro Princípio é subsistente por definição. É necessário que Ele seja de natureza racional, para explicar a existência da racionalidade no mundo. Logo, o Primeiro Princípio é pessoa. Deus é pessoal, e não é (ainda) preciso que as luzes da Fé venham em auxílio à razão humana para que este conceito de Deus seja pelos homens atingido.

Se, portanto, Deus é Pessoa, Ele naturalmente pode relacionar-Se com os homens: segue-se daí, portanto, que a possibilidade de uma Revelação é perfeitamente coerente com a natureza humana e com a natureza divina conhecida a partir da razão humana. E então a Revelação judaico-cristã vem – mais uma vez – ao encontro deste anseio legitimamente humano, integralmente humano. Não se trata de uma “fuga” da realidade, de uma superstição irracional, mas ao contrário: da realização concreta de uma perfeita possibilidade racional. O homem investiga o Universo e conclui que há um Deus; investiga a si próprio e conclui que este Deus possui inteligência. E anseia por encontrar este Princípio racional, este Deus que é a causa da sua própria existência.

E Deus veio ao encontro do Homem. E uma Luz brilhou nas Trevas. E, a despeito das Trevas não A compreenderem, o Verbo – que no Princípio estava junto de Deus, e era Deus –  Se fez Carne, e habitou entre nós.

Provas da existência de Deus – prof. Orlando Fedeli

Com todas as desavenças que eu tenho para com a Associação Cultural Montfort, é uma questão de honestidade reconhecer a inacreditável capacidade didática do professor Orlando Fedeli. Não comungo – quem me lê sabe disso – da maior parte das posições da Montfort referentes à crise atual que atravessa a Igreja de Cristo; em consciência, não posso deixar de dar combate àquilo que considero deletério para a Igreja de Nosso Senhor e pernicioso para as almas católicas. No entanto, também em consciência, não posso deixar de reconhecer o valor do material produzido pelo professor Orlando em outros assuntos.

A série de vídeos a seguir, que falam sobre a existência de Deus, é um exemplo das coisas indubitavelmente boas legadas pela Montfort. O primeiro, segue abaixo:

E, quem tiver interesse em assistir aos demais, segue abaixo a lista que recebi por email. Que a Virgem Santíssima olhe para o bem realizado pelo professor Fedeli, e possa interceder para que a Associação Cultural Montfort não encaminhe as almas para longe da Barca de Pedro, fora da qual só existe confusão.

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Vídeo 1 de 9

INTRODUÇÃO

http://www.youtube.com/watch?v=N-WzHIEDC68

Vídeo 2 de 9

INTRODUÇÃO (continuação)

http://www.youtube.com/watch?v=-hgPO4BW-S0

Vídeo 3 de 9

PRIMEIRA PROVA – PROVA DO MOVIMENTO

http://www.youtube.com/watch?v=VKdkfMunW38

Vídeo 4 de 9

PRIMEIRA PROVA – PROVA DO MOVIMENTO (continuação)

http://www.youtube.com/watch?v=-6cIT-RsXcA

Vídeo 5 de 9

PRIMEIRA PROVA – PROVA DO MOVIMENTO (término –> 7:00 min)

SEGUNDA PROVA – PROVA DA CAUSALIDADE (início –> 7:01 min)

http://www.youtube.com/watch?v=1PuzqHgMpYY

Vídeo 6 de 9

SEGUNDA PROVA – PROVA DA CAUSALIDADE (continuação) (término –> 1:10 min)

TERCEIRA PROVA – PROVA DA CONTINGÊNCIA (início –> 1:11 min; término –> 6:23min)

QUARTA PROVA – PROVA DOS GRAUS DE PERFEIÇÃO DOS ENTES (início –> 6:24 min)

http://www.youtube.com/watch?v=h9HosG7Ie9Y

Vídeo 7 de 9

QUARTA PROVA – PROVA DOS GRAUS DE PERFEIÇÃO DOS ENTES (continuação)

http://www.youtube.com/watch?v=XYsvGHSVrNs

Vídeo 8 de 9

QUARTA PROVA – PROVA DOS GRAUS DE PERFEIÇÃO DOS ENTES (término –> 7:42 min)

QUINTA PROVA – PROVA DA FINALIDADE (início –> 7:43 min)

http://www.youtube.com/watch?v=nXsPomgy9IU

Vídeo 9 de 9

QUINTA PROVA – PROVA DA FINALIDADE (continuação e término)

http://www.youtube.com/watch?v=85jkhReRI0s

Ateísmo Irracional

[Texto anterior: O agnóstico ateu]

Ateísmo irracional

Chegamos portanto àquele que é, a meu ver, o principal motivo pelo qual o ateísmo não se difunde tão facilmente nos nossos dias quanto o Cristianismo se difundiu na Idade Média: não é de modo algum evidente que Deus com certeza não exista, e esta idéia só a muito custo penetra na mente das pessoas. É necessário um verdadeiro bombardeio de falsos argumentos, unido ao desejo interior e a priori de que Deus não exista, para que alguém “se convença” de tão anti-natural tese.

Façamos desde já uma ressalva muito importante. Não estou chamando de “irracional” o ateísmo porque ele seja oriundo de uma loucura qualquer, sem contar com nenhum elemento racional. Não é isso. É claro que os argumentos ateus fazem um certo sentido – caso contrário, o número dos seus adeptos seria consideravelmente menor do que é hoje. O problema é que eles – ao contrário do que muitas vezes pretendem – simplesmente não esgotam a questão.

Imagine um Deus Onipotente – pode dizer um ateu. Este Deus pode criar uma pedra tão pesada que nem Ele mesmo consiga carregar? A resposta a esta questão pueril é muito simples: não, não pode, porque tal pergunta (e qualquer variante dela: o machado que tudo destrói contra a porta indestrutível, a meia-calça indesfiável contra as Facas Ginsu, etc) pode ser resumida em sua formulação mais genérica que é “Deus pode não poder”? E é claro que Deus não pode não poder, e isto, ao invés de provar a inexistência da onipotência divina, está na própria definição de “Todo-Poderoso”. Lembro-me de um catecismo antigo que trazia uma pergunta parecida com “Deus pode pecar ou morrer?” – cito de memória e não ipsis litteris. E a resposta dada era: não, Deus não pode pecar e nem morrer, porque tais coisas são frutos de fraqueza e não de potência. A plenitude da potência – a Onipotência – exclui a fraqueza. Pretender “provar” a impossibilidade da Onipotência desrespeitando a sua própria definição não é honesto e não prova nada.

Tome então o paradoxo de Epicuro, pode acrescentar o nosso ateu. Em linhas gerais: se Deus conhece o mal e pode acabar com ele e não o faz, então não é bondoso; se é bondoso e pode acabar com o mal e não o faz, então é porque não o conhece [não é onisciente]; se sabe que o mal existe, é bondoso e não acaba com ele, então é porque não pode [não é onipotente]. Faltou a Epicuro, no entanto [provavelmente por ter vivido antes do Cristianismo], uma quarta possibilidade para o seu Deus: e se Ele é bondoso, conhece o mal, pode acabar com ele e não o faz de imediato porque tem planos melhores?

A resposta ao problema do mal, reconheçamos, não é fácil. Mas a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo erguida diante de nós ensaia-nos uma resposta: o sofrimento tem sentido. Ele não é um mal absoluto, porque pode produzir [e amiúde produz] o bem. É análogo a, suponhamos, um pai que castiga o seu filho para ensiná-lo: a criança pode não entender, ou entender mal, o castigo que sofre, mas o pai sabe o que está fazendo. Também nós podemos não entender, ou entender mal, o porquê de existir mal no mundo: mas Deus o sabe. Deus permite o mal no mundo, pois, para respeitar a liberdade humana e porque pode tirar deste mal um bem ainda maior: eis as linhas gerais da resposta cristã. Que – vale salientar, antes que comecem os protestos dos ateus que não a aceitem – não é de modo algum uma demonstração da existência de Deus, mas sim uma alternativa a Epicuro que se propõe a eliminar o paradoxo por ele introduzido na definição de Deus.

E se o mundo “sempre existiu” – pode perguntar, por último, o nosso ateu – e não precisar, portanto, de ter sido criado em um dado momento? E se a ciência demonstrar que a matéria, ao menos em suas partículas elementares, não pode ser destruída e, portanto, tudo indica que ela “sempre existiu” mesmo? Para a teologia, isso à primeira vista não apresenta nenhum problema, porque [p.ex.] o inferno “sempre existiu” e vai existir para sempre e, nem por isso, a gente prescinde de Deus para criá-lo. Portanto, em uma resposta sucinta: se as coisas criadas “sempre existiram” – coisa que julgo muitíssimo pouco provável e que nem sei se é ortodoxa, admitindo aqui apenas para argumentar com o nosso ateu imaginário -, mesmo assim, pelo simples fato de serem criadas, elas precisam de um Criador.

A menos que elas fossem “incriadas”, mas a falsidade disso é empiricamente constatável. As coisas visíveis estão em constante movimento, degeneram-se, mudam, transformam-se: percebe-se que falta algo a elas, algo de onde elas possam tirar o próprio ser, que nelas sempre se apresenta… mutável. Os teístas, ao contrário do que devem pensar os ateus, não multiplicam os elos da corrente sem necessidade: se, ao investigar a Causa das causas, nós não paramos no Universo e damos um passo além para chegarmos a Deus, é porque o Universo não atende aos requisitos necessários para ser Causa Não-Causada, e não porque queiramos “multiplicar os entes” sem motivos.

A Fé, portanto, pode trazer argumentos em sua própria defesa e, se não os consegue erigir em demonstração matemática, é porque a natureza do objeto estudado é diferente e não o permite. A descrença, via de regra, resume-se a caluniar a Igreja Católica, “refutar” inadequadamente os argumentos em favor da existência de Deus, e apresentar considerações que tampouco se apresentam com a clareza de uma demonstração matemática. Os ateus, portanto, não provam as suas próprias teses da maneira que exigem que os teístas provem as suas. Podem optar por elas? Poder, podem (embora seja imprudente: lembrem-se de Pascal…), mas precisam entender que não são o baluarte do racionalismo contra as trevas religiosas, dado que a sua descrença é também culturalmente influenciada e não existe demonstração definitiva alguma da veracidade de suas teses.