A religiosidade e a hipocrisia

A moda agora parece ser publicar imagens de pessoas que passam sua vida destratando as demais e, depois, vão à igreja como se tudo estivesse muito bem. Em uma palavra, de pessoas hipócritas. Eu não sei se o objetivo é promover uma generalização estúpida e obviamente falsa ou se, ao contrário, o objetivo é pôr em dúvida a capacidade da religião de tornar as pessoas melhores. Somente hoje vi dois quadrinhos diferentes. O que segue abaixo foi tirado daqui (só depois notei a malícia gayzista do quarto quadrinho; vou ignorar por completo esta alusão descabida à homossexualidade e me focar no binômio “pecado” x “religião”).

Eu nem vou falar sobre o risco (ou – pior ainda – o intento) de generalização, uma vez que considero a falsidade desta associação entre fervor religioso e descaso com o próximo evidente para qualquer pessoa que tenha contato real com o mundo. Dita de maneira geral, seria tão-somente uma calúnia grosseira, desmentida à exaustão pela infinitude de pessoas que se esforçam sinceramente por espalhar no mundo o Doce Odor de Cristo, e que se deixaram de tal maneira moldar pela Caridade que a sua vida é, para todos os que com elas convivem, uma doce leitura das mais suaves páginas do Evangelho. Não vou me deter na generalização caluniosa. Ao contrário, acho que vale a pena falar sobre a religião e a sua capacidade de tornar melhores as pessoas.

Há uma história clássica de um navio governado por um capitão cruel que tratava muito mal os seus subordinados. Gritava com eles, humilhava-os, chicoteava-os, era grosseiro e exigente em demasia, sempre disposto a castigar com a máxima severidade as menores faltas dos seus homens. Não obstante, era católico praticante e todos os dias, no navio, mandava celebrar Missa. E todos os dias comungava devotamente. Certa feita, um dos seus subordinados comentou que era um absurdo um homem cruel assim comungar todos os dias, o que foi ouvido pelo capitão. E este comentou: “se eu sou cruel assim comungando todos os dias, imagine como eu não seria se não comungasse!”.

A anedota, claro, é exagerada, uma vez que tal excesso de maus tratos – e de cores tão tetricamente carregadas! – configuraria muito provavelmente um pecado mortal e, portanto, impediria a comunhão eucarística ao nosso mal-amado capitão. No entanto, serve para ilustrar os princípios gerais, que podem ser resumidos no seguinte: se alguém é uma má pessoa tendo uma vida religiosa, provavelmente seria muito pior se não a tivesse. À exceção de algum distúrbio patológico profundamente afim com a psicopatia, o fato é que um religioso hipócrita seria ainda pior se os seus vícios não tivessem nem ao menos que se preocupar em prestar essa “homenagem à virtude” que é a essência de toda hipocrisia. Naturalmente, do ponto de vista subjetivo, esconder a iniqüidade sob um verniz de virtude provavelmente fará com que quem assim procede tenha contas mais graves a acertar com o Justo Juiz n’Aquele Dia; do ponto de vista do mal causado, no entanto, e abstraindo-se do mau exemplo e do escândalo, é fato que a energia gasta em esconder o mal causado poderia perfeitamente ser empregada em causar ainda mais mal, se não houvesse nem ao menos a preocupação de escondê-lo. Para ilustrar, em se tratando da tirinha acima, o último quadrinho poderia perfeitamente conter outra má ação igual a todos os demais se não houvesse uma necessidade (“hipócrita”) de parecer uma boa pessoa.

Isto fica ainda mais claro quando se percebe que a maior parte das pessoas não é “exclusivamente hipócrita”; digo, não utiliza a hipocrisia como um ideal de vida a ser mantido. Para a maior parte das pessoas, a vida é feita de quedas e soerguimentos, de pecado e de conversão: a menina da tirinha (volto a ela!) pode perfeitamente – e, aliás, para ela ser verossímil, é exatamente assim que ela vai agir – lembrar-se, na igreja, de todas as suas más atitudes e começar a ter o desejo de abandoná-las ou, ao menos, praticá-las com menor freqüência. Assim, poderia reclamar menos com a empregada no dia seguinte, e na semana seguinte dar alguma esmola para o mendigo; no mês seguinte ela estaria falando menos mal das outras pessoas, até que um dia ela teria progredido tanto que seria necessário desenhar uma outra tirinha com outras falhas de caráter se ainda se quisesse ridicularizá-la. Mais importante até: se ela não fizesse tal progresso moral, seria por falta de religiosidade e não por excesso dela. A religião, como todo mundo sabe (ou ao menos tinha o dever moral de saber), conclama as pessoas a serem melhores. Não existe uma única prática religiosa que funcione – como a tirinha induz a pensar – na base da teoria machadiana do abre-e-fecha de janelas para arejar a consciência, do “tudo bem” fazer o mal aqui se a gente fizer o bem ali para “compensar”.

Muito pelo contrário, aliás. É completamente impossível – de novo, salvo casos patológicos raros – manter por muito tempo uma prática religiosa que contradiga o estilo de vida que se leva. Mais cedo ou mais tarde, ou se vai abandonar a prática religiosa ou se vai mudar de estilo de vida. Exemplos disso existem aos borbotões no dia-a-dia mesmo dos nossos círculos de amizades. No caso então da garota hipócrita da supracitada tirinha caluniosa, deixem-na ir à igreja ou, melhor ainda, incentivem-na a ir ainda mais à igreja! Mais cedo ou mais tarde alguma coisa vai acontecer e alguma das duas coisas contraditórias ela vai ter que abandonar. E é melhor contribuir para que ela largue a má vida do que para torná-la mais assídua às más ações censuráveis dos primeiros quadrinhos.