Orientações sobre práticas penitenciais

Esses dias alguém me perguntou sobre se devia manter ou não a penitência quaresmal durante os Domingos da Quaresma. A pergunta revela um sadio interesse sobre os tempos litúrgicos da Igreja e oferece ensejo para esclarecer alguns termos que costumam aparecer juntos e, por isso, provocam às vezes confusões.

Em um apêndice (o X) ao Código de Direito Canônico disponível no site da Santa Sé encontram-se as «Normas de observância penitencial para as dioceses portuguesas». Vale a pena conhecê-las, mesmo em se tratando de um documento de uma Igreja Local, uma vez que as definições e as práticas lá mencionadas são tradicionais em toda a Igreja.

O jejum é «a forma de penitência que consiste na privação de alimentos» (Normas, 3.). A abstinência, a «escolha de uma alimentação simples e pobre» (Normas, 4.), definição que permite compreendê-la melhor do que falar simplesmente em «abstenção de carne». Todo católico está obrigado a deixar de comer carne nas sextas (no Brasil há indulto da Conferência que permite trocar essa abstenção por outra forma de penitência à escolha do fiel, mas isso é outra história); mas simplesmente trocar a carne por um farto rodízio de Sushi talvez não o permita vivenciar com igual fruto o significado da abstinência das sextas-feiras. Isso vale uma reflexão.

Jejuar é privar-se de alimentos. Certo, mas de que maneira? Nesses tempos penitenciais costumam aparecer explicações bem didáticas sobre como se pode jejuar. Não sei de onde saem os diferentes tipos de jejum, e imagino que isso seja de piedade pessoal ou costume local. Sei que o jejum (digamos) “canônico” é o que consiste em fazer somente uma refeição completa no dia, reduzindo-se as demais. Salvo melhor juízo, costumes locais (digamos, jejum absoluto até a hora do almoço e alimentação comedida a partir de então) cumprem o preceito da Quarta-Feira de Cinzas e da Sexta-Feira da Paixão (os dois dias do ano em que os católicos estão obrigados a jejuar).

Penitência é gênero do qual jejum e abstinência são espécies. É qualquer ato humano orientado à conversão; ou, como a conceituou João Paulo II,

penitência significa, no vocabulário cristão teológico e espiritual, a ascese, isto é, o esforço concreto e quotidiano do homem, amparado pela graça de Deus, por perder a própria vida, por Cristo, como único modo de a ganhar: esforço por se despojar do homem velho e revestir-se do novo; por superar em si mesmo o que é carnal, para que prevaleça o que é espiritual; e esforço por se elevar continuamente das coisas de cá de baixo para as lá do alto, onde está Cristo (Reconciliatio et Paenitentia, 4).

Em resumo, fazer penitência é mortificar-se, e mortificação é qualquer exercício que tenha por objetivo domar a vontade. Assim são penitenciais o jejum e a abstinência (sacrificando o prazer da alimentação), a esmola (enfraquecendo o nosso apego aos bens materiais em prol das necessidades dos outros), a própria oração etc. E é também penitência, em suma, qualquer sacrifício de prazer legítimo que se faça durante a Quaresma: «por exemplo, privar-se de fumar, de algum espectáculo, etc» (Normas, 9.).

Todos os cristãos estão sempre obrigados à penitência no sentido latu (cf. CIC 1249), e devem fazê-la a vida inteira. Certos tempos têm um caráter penitencial mais acentuado (como a Quaresma) e, portanto, devem neles os fiéis empregarem maior diligência em se penitenciar. À abstinência estão obrigados os fiéis maiores de 14 anos em todas as sextas-feiras do ano que não coincidam com solenidades (cf. CIC 1252) e, ao jejum, os cristãos entre 18 e 60 anos (cf. id. ibid.) na Quarta de Cinzas e na Sexta da Paixão.

Não se faz jejum aos Domingos, nem mesmo nos da Quaresma. Mas faz-se penitência na Quaresma, inclusive aos Domingos. Este é o espírito. Como o viver concretamente é matéria de piedade particular, a ser decidida pelo fiel em conjunto com seu confessor ou diretor espiritual. O que é realmente importante é distinguir os tempos: é viver a penitência do tempo comum de modo mais brando do que a penitência quaresmal, e a alegria de um Domingo da Quaresma de uma forma mais contida do que em outro Domingo mais festivo. Esta é a vida cristã, cuja essência não desconhece nem a dor do pecado nem a alegria do perdão: é por meio daquela que chegamos a esta. Aqui não há verdadeira oposição entre penitência e alegria. Entendê-lo é fundamental para viver com fruto este e todos os tempos litúrgicos.

[OFF] Eu, com câncer (VIII): #MeditandoComJuelho

No último sábado, fui convidado a fazer uma meditação no Retiro Mensal dos Membros do Movimento Regnum Christi, cujo tema era: Porque amo a Cristo, abraço a minha cruz. Agradeço imensamente a oportunidade e a confiança em mim depositada; alegra-me bastante poder ser útil de alguma maneira, mesmo com essas minhas limitações circunstanciais que hoje se somam às que já me são próprias por vida.

meditandocomjuelho

A palestra foi gravada, sem edições e sem revisão. Disponibilizo-a aqui, em formato .mp3 e em vídeo do Youtube, na esperança de que possa servir àquelas pessoas que não tiveram a oportunidade de presenciá-la neste final de semana. Que Deus nos ajude a amá-Lo mais. Amá-Lo sempre e cada vez mais.

Youtube:

Áudio:

[podcast]https://www.deuslovult.org//wp-content/uploads/podcast/TamoJuntoJuelho.mp3[/podcast]

Missa de início do Pontificado do Papa Francisco

Li ontem na Folha de São Paulo que o Papa faria uma «cerimônia mais curta e sem latim» na Missa de início do Ministério Petrino do Bispo de Roma Francisco hoje celebrada. A menina da CBN, aliás, foi ainda mais longe e soltou que o latim era uma «língua morta que o seu predecessor, o Papa Emérito Bento XVI, tentara restaurar» – as aspas não são literais porque cito de memória o que ouvi no carro, mas a oposição entre as celebrações litúrgicas do Papa Bento XVI e esta Missa inicial do Papa Francisco era rigorosamente a que exponho aqui.

Estou neste momento assistindo à Solenidade de São José, Esposo da Bem-Aventurada Virgem Maria transmitida pelo site do Vaticano. Neste exato momento está sendo cantado o Per ipsum, et cum ipso et in ipso que conclui a Oração Eucarística – foi aliás usado o Cânon Romano, todo ele em latim. E ninguém precisava esperar o dia de hoje para o descobrir, porque o .pdf do livrete da celebração já estava ao menos desde ontem disponível para download no site do Vaticano e, nele, era possível ver que, à exceção das leituras e da oração da assembléia, a Missa seria toda em latim. Como o foi.

Na verdade, houve uma única ausência do latim nesta celebração. O Evangelho foi lido em grego e por um diácono grego; isto simboliza a jurisdição universal do Romano Pontífice, que abarca tanto o Ocidente quanto o Oriente. Segundo o costume, haveria uma sua repetição em latim logo em seguida, e esta não foi feita. Foi o suficiente para que a mídia tupiniquim inteira soltasse aos quatro ventos que o Papa iria celebrar uma missa “sem latim”, na patética ânsia de aproveitar qualquer oportunidade – verdadeira ou falsa – para semear na opinião pública um sentimento de oposição entre o Papa Francisco e o Papa Bento XVI. Como se fosse possível à Igreja opôr-se à própria Igreja, ou como se Cristo pudesse estar contra Cristo. Na verdade, a imprensa dá – mais uma vez! – mostras de que não entendeu nada do discurso do Papa aos representantes dos meios de comunicação social que comentei aqui ontem: ela teima em fazer coberturas religiosas excluindo a perspectiva da Fé e, por conta disso, apresenta ao mundo uma visão distorcida da Igreja Católica. Por isso, não deixa de quebrar a cara e de passar vergonha quando os fatos desmentem impiedosamente as suas falsas previsões e notícias sem sentido.

Como  acaba de acontecer. Acabou de ser celebrada em latim a Missa que todo mundo (à exceção da Folha de São Paulo, da CBN e dos outros órgãos brasileiros de imprensa que colocam a sua agenda ideológica acima da busca desapaixonada da verdade dos fatos) sabia que seria celebrada em latim. Com incenso, arranjo beneditino sobre o altar, coral gregoriano e polifônico, paramentos dignos, comunhão de joelhos, Mons. Marini de cerimoniário pontifício, férula papal (a de Bento XVI) nas mãos do Papa Francisco, Te Deum na procissão de saída. Perfeitamente adequada ao dia de hoje: Quaresma, Dia de São José (Patrono Universal da Igreja) e início do Ministério Petrino do Papa Francisco.

A homilia que o Papa proferiu nesta manhã já se encontra em português no site do Vaticano. Dela, destaco:

Hoje, juntamente com a festa de São José, celebramos o início do ministério do novo Bispo de Roma, Sucessor de Pedro, que inclui também um poder. É certo que Jesus Cristo deu um poder a Pedro, mas de que poder se trata? À tríplice pergunta de Jesus a Pedro sobre o amor, segue-se o tríplice convite: apascenta os meus cordeiros, apascenta as minhas ovelhas. Não esqueçamos jamais que o verdadeiro poder é o serviço, e que o próprio Papa, para exercer o poder, deve entrar sempre mais naquele serviço que tem o seu vértice luminoso na Cruz.

E o Papa Francisco encerrou a sua homilia com um pedido: «e, a todos vós, digo: rezai por mim! Amen». Sim, Santo Padre, rezaremos. Para que o Espírito Santo Paráclito possa culminar-lhe de todas as abundantes graças necessárias para o santo desempenho do múnus de Vigário de Cristo e Pastor da Igreja Universal. Para que São José, Patrono da Igreja, conceda-lhe a força necessária para guiá-La em meio às tribulações dos dias de hoje. E para que a Virgem SSma., Mãe de Deus, tome a Seu encargo todos os milagres necessários para que este Pontificado dê os extraordinários frutos de santidade dos quais o nosso mundo tanto precisa. Amen!

“Vale mais a alma de cada um de nós que todo um mundo” – pe. António Vieira

[Ah, o pe. António Vieira, sempre extraordinário! Ontem, após ouvir a Missa do Primeiro Domingo da Quaresma, encontrei-me por acaso numa livraria e topei com uma edição dos sermões do nosso conhecido orador. Aproveitando o ensejo, reli o sermão de ontem, de cuja leitura guardava boas recordações. Pois, para minha alegria, o prazer da releitura sobrepujou – em muito! – a lembrança guardada! Aqui, um pequeno excerto, para que aprendamos a dar valor à nossa alma. É Quaresma, uma Quaresma histórica, que pode muito bem ser a última de nossa vida. Vivamo-la bem!]

Vem cá, demônio, outra vez. Tu sábio? Tu astuto? Tu tentador? Vai-te daí, que não sabes tentar. Se tu querias que Cristo se ajoelhasse diante de ti, e souberas negociar, tu o renderas.

Vais-lhe oferecer a Cristo mundos? Oh! que ignorância! Se quando lhe davas um mundo, lhe tiraras uma alma, logo o tinhas de joelhos a teus pés. Assim aconteceu. Quando Judas estava na Ceia, já o diabo estava em Judas: Cum jam diabolus misisset in cor ut traderet eum Judas. – Vendo Cristo que o demônio lhe levava aquela alma, põe-se de joelhos aos pés de Judas, para lhos lavar, e para o converter. Tá, Senhor meu, reparai no que fazeis: não vedes que o demônio está assentado no coração de Judas? Não vedes que em Judas está revestido o demônio, e vós mesmo o dissestes: Unus ex vobis diabolus est? – Pois, será bem que Cristo esteja ajoelhado aos pés do demônio? Cristo ajoelhado aos pés de Judas, assombro é, pasmo é; mas Cristo ajoelhado, Cristo de joelhos diante do diabo? Sim. Quando lhe oferecia o mundo, não o pôde conseguir; tanto que lhe quis levar uma alma, logo o teve a seus pés. Para que acabemos de entender os homens cegos, que vale mais a alma de cada um de nós que todo um mundo.

As coisas estimam-se e avaliam-se pelo que custam. Que lhe custou a Cristo uma alma, e que lhe custou o mundo? O mundo custou-lhe uma palavra: Ipse dixit, et facta sunt – uma alma custou-lhe a vida, e o sangue todo. Pois, se o mundo custa uma só palavra de Deus, e a alma custa todo o sangue de Deus, julgai se vale mais uma alma que todo o mundo. Assim o julga Cristo, e assim o não pode deixar de confessar o mesmo demônio. E só nós somos tão baixos estimadores de nossas almas, que lhas vendemos pelo preço que vós sabeis.

Pe. António Vieira,
Sermão da Primeira Dominga da Quaresma – 1653

A Jerusalém Celeste para além do Vale de Lágrimas

Decididamente não nos assenta bem a boa saúde, o estado provisório qui n’annonce rien de bon, a caricatura da paz e de bem-estar que durante tantos milênios de planeta ainda não aprendemos a usar. [Gustavo Corção, “Na Casa de Saúde”]

Leiam na íntegra esta bonita crônica do Corção, que me foi mostrada por um amigo e da qual foi retirada a frase em epígrafe. É um excelente material de meditação para a Campanha da Fraternidade deste ano; ou melhor, para nos indicar os caminhos errados pelos quais nos pode conduzir a Campanha da Fraternidade durante este precioso tempo quaresmal que estamos vivendo.

Eu já devo ter repetido diversas vezes o quanto eu gosto da oração da Salve Rainha e, mais especificamente, o quanto me apraz a parte em que suspiramos à Santíssima Virgem entre gemidos e choros “in hac lacrimarum valle”, neste Vale de Lágrimas. Porque uma parte importante do Cristianismo é a consciência do Pecado Original, esta percepção de que existe algo de intrinsecamente errado no mundo que nos rodeia: só assim nós podemos aspirar às coisas mais elevadas. O Paraíso foi perdido e, junto com esta perda, foi-nos estabelecida a radical impossibilidade de construirmos por nós próprios um novo Paraíso Terrestre. A esperança cristã é a de Novos Céus e Novas Terras. É nisto que devemos ter os olhos fitos: na Jerusalém Celeste que (só!) se encontra para além do Vale de Lágrimas!

A terra “maldita” por causa do pecado é um excelente elemento da pedagogia divina. Afinal de contas, se vivêssemos em um mundo perfeito ser-nos-ia muito fácil deixar esmorecer o nosso desejo por um outro mundo melhor. Após o Pecado, foi a Misericórdia de Deus que fez a terra produzir espinhos e abrolhos. Se fosse dado livre curso a Satanás, ele com certeza faria, após a Queda, um mundo que fosse composto exclusivamente por palácios de ouro e do qual não desejássemos jamais sair. Querer um mundo perfeito é uma utopia, é uma quimera que nos desvia daquilo que é realmente importante. O afã de construir um mundo perfeito é pernicioso porque nos distrai da nossa peregrinação rumo à Pátria Celeste – em última instância, a única que interessa.

E esta parece ser precisamente a tônica das Campanhas da Fraternidade. Temos o “que a saúde se difunda sobre a terra” do ano corrente e, olhando o histórico disponível na página da Conferência dos Bispos, temos muitas outras cantigas se utilizando desta mesma nota. Temos um “Levanta-te, vem para o meio!” em 2006, um incrível “Por uma terra sem males” em 2002, um “Novo Milênio sem Exclusões” em 2000. A idéia subjacente (às vez mais explícita, às vezes menos) é sempre a mesma: deseja-se um mundo perfeito. Um mundo onde o homem e a natureza vivam na mais perfeita harmonia romântica (“Fraternidade e Vida no Planeta”, 2011), ou onde não exista mais avareza entre as pessoas e todas socorram generosamente às necessidades de seus semelhantes (“Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro”, 2010), ou onde não haja mais violência entre os seres humanos (“Fraternidade e Segurança Pública”, 2009), etc. É sempre a mesma coisa: sempre uma cenoura na frente do burro, sempre uma utopia inalcançável e inútil apresentada como importante meta a ser buscada, sempre uma distração daquilo que é verdadeiramente importante no tempo da Quaresma.

Porque nós, cristãos, somos chamados a coisas muito mais sublimes e infinitamente mais elevadas do que um novo milênio sem exclusões ou uma terra sem males: ainda que estas coisas fossem possíveis (o que é óbvio que não são), seriam infinitamente menores do que as coisas que Deus nos reservou – que, como nos diz São Paulo, são aquilo que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram e o coração humano sequer imaginou. Durante a Quaresma nós somos chamados a perseguir o Reino de Deus, e não quimeras; que mal causam aos fiéis brasileiros estas campanhas diabólicas que levam os homens a correrem atrás de utopias!

Contra esta insídia que desgraçadamente já há tanto tempo assola o nosso tempo quaresmal, que primor está o texto do Gustavo Corção! Leiam-no, volto a recomendar. A melhor forma de tratar o tema “saúde” na Quaresma é, precisamente, sob a ótica da falta dela. Não meramente através de um (obviamente legítimo) desejo de cura, mas algo mais: como um indicativo permanente da miséria humana, como um espinho na carne a não nos deixar esquecer o Vale de Lágrimas no qual estamos exilados.

Porque, afinal de contas, o verdadeiro anseio cristão é pela Jerusalém Celeste, o anelo legítimo dos que estamos exilados é o retorno à Pátria Celeste. Nosso Senhor veio ao mundo para nos tornar cidadãos do Céu; o nosso dever é sair do Vale de Lágrimas, e não transformá-lo em um lugar perfeito até nos esquecermos de que Algo maior nos espera para além das montanhas.

Gosto do Salmo 136, que fala do exílio. “À margem dos rios da Babilônia nós sentamos e choramos, com saudades de Sião”. E penso que esta temática é recorrente na história de Israel; p.ex., quando os judeus no deserto passaram a sentir falta “das cebolas do Egito” [cf. Nm 11, 5]. Acho que isto não é sem motivo. Há a tentação permanente de “nos esquecermos” da nossa dignidade e da – imerecida, mas real! – glória a que somos destinados; há a tentação permanente de querermos ficar “por aqui mesmo”. No referido salmo sobre o exílio há fortes maldições contra o esquecimento da Pátria: “Se eu me esquecer de ti, ó Jerusalém, que minha mão direita se paralise! Que minha língua se me apegue ao paladar, se eu não me lembrar de ti, se não puser Jerusalém acima de todas as minhas alegrias”. Isto é uma coisa séria que merece toda a nossa preocupação. E, levando os fiéis católicos a se esquecerem da Jerusalém Celeste à qual pertencem, tudo o que a Campanha da Fraternidade consegue é se transformar no alvo destas imprecações bíblicas. Ai daqueles que, promovendo-a, afastam de Deus o Seu povo.

“A saúde vai muito além de um simples bem estar corporal” – Bento XVI

Para os cristãos, de modo particular, o lema bíblico é uma lembrança de que a saúde vai muito além de um simples bem estar corporal. No episódio da cura de um paralítico (cf. Mt 9, 2-8), Jesus, antes de fazer com que esse voltasse a andar, perdoa-lhe os pecados, ensinando que a cura perfeita é o perdão dos pecados, e a saúde por excelência é a da alma, pois «que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro, mas perder a sua alma?» (Mt 16, 26). Com efeito, as palavras saúde e salvação têm origem no mesmo termo latino salus e não por outra razão, nos Evangelhos, vemos a ação do Salvador da humanidade associada a diversas curas: «Jesus andava por toda a Galiléia, ensinando em suas sinagogas, pregando o Evangelho do Reino e curando todo o tipo de doença e enfermidades do povo» (Mt 4, 23).

Bento XVI
Mensagem por ocasião da Campanha da Fraternidade 2012

Esta cuaresma…

[Eu já havia visto o vídeo do menino e da árvore em outro contexto; mas achei este pequeno “vídeo promocional da Quaresma” bastante simpático. Não se trata de menosprezar (é óbvio) o valor das penitências, mas sim de colocá-las em perspectiva: não é penitenciar-se por penitenciar-se, mas sim fazê-lo por amor a Deus, para mais Lhe agradar e mais aproximar-se d’Ele. As penitências não são “um fim em si mesmas”, e todas as práticas religiosas existem para nos levar a Deus. Convém lembrar isto logo no início destes 40 dias, a fim de que possamos vivê-los frutuosamente. Uma santa Quaresma a todos!]

Sobre o Carnaval II: o pecado e a penitência

Como dissemos anteriormente, estes textos se destinam àqueles que já têm consciência da absoluta necessidade de se empenhar no cultivo da própria vida espiritual. Eles não se propõem, de nenhuma maneira, a oferecerem uma válvula de escape às radicais exigências do Evangelho ou postularem uma diabólica condescendência às más inclinações humanas – nem que seja “só um pouquinho” durante estes três ou quatro dias. Não há exceções à imperiosa necessidade de oferecer quotidianamente ao Deus Altíssimo o sacrifício de uma vida moral reta. Os que ainda não aprenderam isso, repetimos, precisam voltar ao bê-a-bá do Catolicismo antes de lerem estas páginas.

O que defendemos aqui é a possibilidade de encarar este tempo carnavalesco sob uma ótica sobrenatural, com muito fruto para a vida cristã. Mais ainda: defendemos que sem compreender a alegria carnavalesca é muitíssimo difícil compreender bem (e, por conseguinte, viver bem) a própria Quaresma. Creio já ter dito em algum lugar que não foi a Igreja quem “inventou” o Carnaval; não obstante, ao menos em nosso mundo ocidental foi a Igreja quem lhe impôs os limites e lhe determinou o sentido. O Carnaval só tem sentido à luz da Quarta-Feira de Cinzas: é somente em referência à Quaresma que está às portas que se desenrola todo o drama desses dias de festa que, infelizmente, são tão mal-aproveitados nos nossos tempos. Se é verdade que o Carnaval tem raízes pagãs, não é menos verdade que nos dias de hoje Momo pede humildemente licença à Esposa de Cristo para saber em que dias ele pode reinar.

E se é verdade que todos os deuses dos pagãos são demônios, é também verdade “que não existem realmente ídolos no mundo e que não há outro Deus, senão um só” (ICor 8, 4). Se é verdade que os primeiros carnavais foram as saturnálias pagãs, disto não decorre – absolutamente! – que somos obrigados a deixar estes dias entregues ao paganismo desenfreado. Foi por uma razão que a Igreja “confinou” o Carnaval aos poucos dias anteriores à Quaresma: foi como se Ela quisesse dizer que os prazeres pagãos deveriam dar lugar à genuína alegria cristã. Escutamos com freqüência que o Carnaval é um tempo de pecados: ora, e como ele poderá um dia ser diferente se nós não exortarmos as pessoas a brincarem-no sem pecar? O Carnaval não vai acabar. Se a Igreja quisesse acabar com o Carnaval, Ela historicamente o teria feito. O que devemos fazer é arrastar o Carnaval para os pés de Cristo. O que não podemos é permitir que os derrotados deuses pagãos recuperem este importante território que faz fronteira com o Tempo Santo da Quaresma.

Corro o risco de ser repetitivo, mas não posso deixar de enfatizar: o Carnaval não é um tempo de “pecados liberados” que serão perdoados na Quarta-Feira de Cinzas! Nada mais estranho a este – chamemo-lo assim – espírito cristão do Carnaval. Não se trata, repitamos, de fazer vista grossa a – por vezes graves! – falhas morais para, depois, preocuparmo-nos em nos emendar e em seguir os caminhos de Cristo. Não é aproveitar para cometer no Carnaval os pecados pelos quais faremos penitência na Quaresma. Esta é exatamente a falsa dicotomia que rejeitamos: a de que só existem por um lado o pecado e, pelo outro, a penitência; e isto de tal modo que tudo o que não é um passa a ser, necessariamente, o outro. Contra esta visão maniqueísta nós queremos apresentar uma “terceira via”: o Carnaval visto não como uma Quaresma antecipada e nem muito menos como o último pecado cometido antes da conversão, mas sim como uma expressão genuína da verdadeira alegria cristã. Só assim é possível descobrir o “espírito cristão do Carnaval”, só assim é possível entender o porquê da Igreja ter – de certo modo – “preservado” esta festa pagã.

Porque, afinal de contas, a Igreja preservou sim o Carnaval. Sejamos honestos: Cristo venceu maravilhosamente os deuses pagãos, e esta vitória foi tão absoluta que os únicos “resquícios de paganismo” que restaram foram os que aprouve à Igreja que restassem. Acabaram-se os sacrifícios humanos, acabou-se a prostituição religiosa, acabou-se a divinização do Imperador, acabaram-se as feras do Circus Maximus. O que havia de ser destruído foi destruído: o que sobreviveu – sejamos claros – foi o que a Igreja deixou que sobrevivesse.

E todos os “costumes pagãos” que foram preservados foram também ressignificados: dizer que o Carnaval “sobreviveu” a 2000 anos de Cristianismo mantendo-se não obstante perfeitamente pagão e anti-cristão chega às raias da blasfêmia. Equivale a afirmar a incompetência da Igreja em expurgar do mundo esta influência nefasta do Seu grande inimigo: o paganismo, cuja derrota fragorosa é historicamente incontestável.

Se sobreviveu o Carnaval, certamente ele não sobreviveu aos moldes pagãos do prazer sensível erigido como fim último da festividade. Se sobreviveu o Carnaval é porque ele foi apresentado ao mundo à luz do Evangelho de Cristo: é porque o seu sentido apenas se deve encontrar enquanto celebração da alegria cristã nos dias que antecedem o grande deserto quaresmal – os 40 dias que precedem a Semana Santa. Se sobreviveu o Carnaval é porque ele possui – ou deve possuir – um espírito cristão: e este espírito cristão do Carnaval insere-se no Ano Litúrgico da Igreja como sendo a despedida – ordenada e regrada, por certo – dos prazeres lícitos antes da Grande Quaresma por meio da qual nos prepararemos para a Paixão do Senhor.

É importante perceber o Carnaval enquanto despedida dos prazeres lícitos em atenção ao tempo de penitência da Quaresma que se avizinha. Se nós não o fizermos – e se aceitarmos a falsa dicotomia já anteriormente criticada que só enxerga o pecado e a penitência – todo o Ano Litúrgico perde o sentido: ou se confundem o Tempo Comum e a Quaresma (e aí nós já fazemos no Tempo Comum a penitência que faremos na Quaresma, ou então continuamos vivendo na Quaresma da mesma maneira que vivíamos no Tempo Comum) ou transformamos o final do Tempo Comum em um blasfemo e diabólico “tempo de pecados” (e vemos o Carnaval como uma espécie de imoral “despedida de solteiro”, como um salvo-conduto para fazer o mal – mal, aliás, muitas vezes encarado como condição mesma para a penitência quaresmal). Quando, na verdade, é a algo totalmente diverso disso que nos chama a Igreja: nem devemos uniformizar o Ano Litúrgico e nem muito menos “encaixar” nele um tempo propício para o pecado.

Não nos podemos esquecer de que, para além do pecado e da penitência, existe uma infinitude de atitudes lícitas que não pecamos em praticar mas das quais, na Quaresma, somos chamados a nos abster: fugir do pecado é obrigação! Só há mérito na abstinência porque ela se dirige a uma coisa que é em si boa. É exatamente dessas coisas que nós devemos nos despedir no Carnaval. Durante a Quaresma vamos gastar menos tempo em conversas fúteis com nossos amigos? Aproveitemos os dias anteriores à Quarta-Feira de Cinzas para conversar demoradamente assuntos triviais com as pessoas que nos são caras! Durante a Quaresma vamos nos abster de todas as bebidas alcóolicas? Esvaziemos sem escrúpulos uma boa garrafa de vinho durante o Carnaval, junto com pessoas que nos são agradáveis! Dedicaremos à oração o tempo do nosso dia-a-dia que era normalmente reservado à recreação? Cantemos e dancemos durante estes dias, porque em breve não mais poderemos dançar nem cantar! Em suma, que o Carnaval seja uma preparação para a Quaresma: que nele tomemos forte consciência das coisas das quais nos vamos abster muito em breve. A penitência não é jamais mera rejeição ao pecado: ela só faz sentido se for abster-se do que é lícito. E, para fortalecer tal consciência, um Carnaval bem vivido pode ser bastante útil. Um Carnaval bem vivido pode possibilitar uma Quaresma repleta de frutos. Um Carnaval bem vivido pode até mesmo ser fundamental para uma Quaresma frutuosa.

Mais petróleo do que oração na CF-2011

O próximo domingo já é o Domingo de Ramos e, até o presente momento, a CNBB não disponibilizou no seu site o texto-base da Campanha da Fraternidade 2011. Procurando na internet, encontrei-o aqui; 63 páginas que, pelo que vi, contêm a íntegra do documento. Caso alguém identifique algum problema na integridade do texto, gentileza me informar.

Como fiz nos anos passados (2010 e 2009), trago aqui mais uma vez algumas simples estatísticas mostrando os temas que, na visão dos responsáveis pela produção do referido documento, são mais dignos de menção e meditação durante este tempo quaresmal. Mais uma vez, trago-os divididos em dois grupos: o que se poderia esperar de uma sadia espiritualidade quaresmal primeiro e, em seguida, os vocábulos mais empregados ao longo das páginas do texto base da Campanha da Fraternidade. Como no ano passado, a metodologia foi a mais simples possível: uma pesquisa simples (ctrl + shift + f) no arquivo .pdf, que pode ser facilmente reproduzida por qualquer um que tenha curiosidade sobre o assunto. Na lista abaixo, o termo simples, entre aspas, foi pesquisado da maneira como se encontra; quando aparece “e derivados”, é porque a busca foi feita pelo radical (p.ex., “penit”, que incluiria tanto “penitência” quanto o verbo “penitenciar-se”, o adjetivo “penitente”, etc.).

Termos que indicam visão sobrenatural:

  • “Deus”: 155 ocorrências.
  • “Eucaristia”: 16 ocorrências.
  • “Jesus”: 14 ocorrências.
  • “Pecado” (e derivados): 11 ocorrências.
  • “Papa”: 8 ocorrências.
  • “Santificação” (e derivados): 7 ocorrências.
  • “Católica” (e derivados): 6 ocorrências.
  • “Bíblia”: 6 ocorrências [mais duas no título de duas citações, à página 32].
  • “Salvação” (e derivados): 5 ocorrências.
  • “Nosso Senhor”: 5 ocorrências.
  • “Oração”: 4 ocorrências [sendo três nas primeiras páginas e uma referência à oração de São Francisco em louvor pelas criaturas].
  • “Conversão” (e derivados): 4 ocorrências [além de mais 3 ocorrências, às páginas 14 e 37, que falam em conversão de energia cinética do vento (!) e no mundo que corre o “risco de converter-se em fábricas que poluem” (!!); há aínda, à página 43, uma referência a “conversão ecológica”].
  • “Jejum”: 2 ocorrências.
  • “Diabo”: 2 ocorrências.
  • “Caridade”: 2 ocorrências.
  • “Maria”: 1 ocorrência [“Virgem Maria”, nenhuma, e nem “Nossa Senhora”].
  • “Penitência” (e derivados): 1 ocorrência.
  • “Cruz”: 1 ocorrência.
  • “Sacerdote”: 1 ocorrência.
  • “Sacramento”: 1 ocorrência.
  • “Missa”: 1 ocorrência [esta, no título da citação de um ensaio de Teilhard de Chardin (!)].
  • “Arrependimento” (e derivados), esmola, Magistério, confissão (e derivados), inferno, purgatório: nenhuma ocorrência.

Termos que indicam visão materialista rasteira:

  • “Produção” (e derivados): 98 ocorrências.
  • “Desenvolvimento” (e derivados): 74 ocorrências.
  • “Energia”: 69 ocorrências.
  • “Terra”: 69 ocorrências.
  • “Água”: 59 ocorrências.
  • “Ambiente”: 59 ocorrências.
  • “Efeito estufa”: 58 ocorrências.
  • “Aquecimento”: 51 ocorrências [“aquecimento global”, 42].
  • “Consumo” (e derivados): 50 ocorrências.
  • “Ecologia” (e derivados): 37 ocorrências.
  • “Carbono” (e derivados): 36 ocorrências.
  • “Governo” (e derivados): 32 ocorrências.
  • “Economia” (e derivados): 32 ocorrências.
  • “Alimento” (e derivados): 29 ocorrências.
  • “Pobre” (e derivados): 20 ocorrências.
  • “Temperatura”: 23 ocorrências.
  • “Lucro”: 15 ocorrências.
  • “Petróleo”: 10 ocorrências.
  • “Exploração” (e derivados): 10 ocorrências.

Os números falam por si sós. Em comparação com o ano passado algumas coisas parecem ter melhorado. Palavras como “Cruz”, “Sacerdote” e “Penitência” finalmente ganham direito a figurarem em um documento da CNBB para a Quaresma. E, embora eu tenha tentado, não consegui encontrar nenhum termo que aparecesse no texto mais vezes do que “Deus”. Deo Gratias! É também digna de menção a sucessiva redução do tamanho destes textos bases; em 2009 ele tinha 176 páginas e, em 2010, 80. Perto destes monstros, um documento com 63 páginas é uma bênção de Deus.

Entretanto, o resultado final ainda é muito, muito ruim. É óbvio que não dá para se viver corretamente o tempo da Quaresma descuidando da vida sobrenatural para perder tempo com coisas como consumo, energia elétrica, água potável e desenvolvimento – temas que têm lá a sua importância, mas que absolutamente não cabem como guia de vivência do tempo quaresmal. Um texto que trate tanto destes temas poderia encaixar-se muito bem como fruto de um estudo do Governo, de uma ONG, de uma dissertação de mestrado em ciências ambientais, do Greenpeace, de qualquer coisa: mas não cabe, absolutamente, como um texto – e da Quaresma! – da Igreja cujo papel é levar as almas para Deus. Quando uma Conferência Episcopal fala, na Quaresma, mais de petróleo do que de oração, alguma coisa está muito errada. Que os senhores bispos possam perceber este gravíssimo engano (que não é de hoje!) o quanto antes. E que Deus nos ajude a termos uma santa Quaresma – apesar da Campanha da Fraternidade da CNBB.

Salve, Salvador!

Cheguei hoje à noite à cidade de São Salvador da Bahia de Todos os Santos. Viagem ligeira, só até o domingo; rever alguns amigos e, principalmente, (tentar) participar da posse do novo arcebispo primaz do Brasil, Dom Murilo Krieger, que se dará amanhã (festa da Anunciação) à noite.

O vôo é curto. Lá de cima, no entanto, olhando pela janela, contemplando o meu Recife do alto, lembrei-me de uma excelente metáfora que ouvi de um piedoso sacerdote na missa do último final de semana. Falava ele sobre a importância de se elevar a alma por meio da oração. E exemplificava dizendo que, num vôo que fizera recentemente, pudera ver – do alto – o horizonte muito mais amplo, o céu e o mar, de uma maneira muito mais clara do que via quando estava no chão. E, assim como se pode ver melhor o horizonte físico quando o avião está no ar, analogamente a alma consegue enxergar melhor os horizontes sobrenaturais quando se eleva por meio da oração. Elevar a alma é enxergar mais. E mais distante. E de modo mais amplo.

É Quaresma, e é tempo de oração. Rezemos mais, e ampliemos assim os nossos horizontes. Que o Altíssimo Se compadeça de nós. Que bons ventos – verdadeiramente do Espírito Santo – possam soprar sobre esta Arquidiocese Primaz. Que a Virgem Santíssima, Nossa Senhora Aparecida, interceda pelo Brasil.