Devem as pessoas ser protegidas?

Diversas vezes me deparei com pessoas que me confrontaram e tentaram se desvencilhar dizendo coisas do tipo: “Bem, você teve sorte!”. Pode ter certeza de que minha sobrevivência não tem nada a ver com sorte. O fato de eu estar viva hoje tem a ver com as escolhas feitas pela nossa sociedade: pessoas que lutaram para que o aborto fosse ilegal em Michigan naquela época — mesmo em casos de estupro —, pessoas que lutaram para proteger a minha vida e pessoas que votaram a favor da vida. Eu não tive sorte. Fui protegida. E vocês realmente acham que nossos irmãos e irmãs que estão sendo abortados todos os dias simplesmente são “azarados”?

Esta é a história de uma garota chamada Rebecca Kiessling, uma americana que foi concebida em um estupro e cuja mãe não pôde abortá-la. Ela tem um site pró-vida na internet, em inglês; o trecho da sua história em epígrafe (os grifos são meus) foi obtido no blog do Julio Severo, e vale muito a leitura completa.

“Eu não tive sorte. Fui protegida” – que força têm estas palavras! Nos dias de hoje – em que as pessoas têm sérias dificuldades em fazer abstrações – é muitíssimo eloqüente que um “exemplo vivo” daquilo sobre o qual estamos falando venha a público para dar o seu testemunho. O pai desta garota é um estuprador serial que violentou a sua mãe: ela é fruto de um estupro. Acaso não seria digna de viver por causa disso?

É tremendamente desumano acreditar que a vida ou a morte das pessoas dependam simplesmente de “sorte”, e que nós não devemos fazer nada para protegê-las. “É escolha da mulher”… então, a vida de um ser humano está ao arbítrio da mulher? No fundo, a pergunta fundamental a ser respondida nas discussões sobre a descriminalização do aborto não têm nada a ver com os direitos das mulheres, nem com os direitos ao próprio corpo, nem com os direitos sexuais e reprodutivos, mas sim com esta questão capital: as pessoas devem ser protegidas ou não? É o direito à vida que está em jogo! Tergiversar para longe desta questão é falsear o que se está discutindo e procurar “vencer pelo cansaço”, afogando as questões relevantes num oceano de sofismas e futilidades.

Quando se defende a inviolabilidade da vida humana, quando se afirma insofismavelmente que crianças inocentes não podem ser assassinadas – independente da situação -, então podemos ter a nossa consciência tranqüila, na certeza de que o nosso discurso é coerente. Mas, quando nós começamos a abrir exceções, e dizemos que, em certos casos, certas vidas não merecem proteção… então, onde vamos parar? Se uma vida pode ser descartada, então por que outra também não poderia ser? Se alguns inocentes podem ser assassinados, por que outros não o poderiam? Ora, se a vida não é defendida em sua integridade, então ela não é defendida. A diferença entre uma clínica de abortos onde se matam crianças e um campo de concentração onde se matam judeus não é de essência e sim de grau. Não dá para, racionalmente, condenar o segundo e defender a primeira: tal aberração lógica, mais dia menos dia, vai fatalmente ruir.