Sobre o Carnaval II: o pecado e a penitência

Como dissemos anteriormente, estes textos se destinam àqueles que já têm consciência da absoluta necessidade de se empenhar no cultivo da própria vida espiritual. Eles não se propõem, de nenhuma maneira, a oferecerem uma válvula de escape às radicais exigências do Evangelho ou postularem uma diabólica condescendência às más inclinações humanas – nem que seja “só um pouquinho” durante estes três ou quatro dias. Não há exceções à imperiosa necessidade de oferecer quotidianamente ao Deus Altíssimo o sacrifício de uma vida moral reta. Os que ainda não aprenderam isso, repetimos, precisam voltar ao bê-a-bá do Catolicismo antes de lerem estas páginas.

O que defendemos aqui é a possibilidade de encarar este tempo carnavalesco sob uma ótica sobrenatural, com muito fruto para a vida cristã. Mais ainda: defendemos que sem compreender a alegria carnavalesca é muitíssimo difícil compreender bem (e, por conseguinte, viver bem) a própria Quaresma. Creio já ter dito em algum lugar que não foi a Igreja quem “inventou” o Carnaval; não obstante, ao menos em nosso mundo ocidental foi a Igreja quem lhe impôs os limites e lhe determinou o sentido. O Carnaval só tem sentido à luz da Quarta-Feira de Cinzas: é somente em referência à Quaresma que está às portas que se desenrola todo o drama desses dias de festa que, infelizmente, são tão mal-aproveitados nos nossos tempos. Se é verdade que o Carnaval tem raízes pagãs, não é menos verdade que nos dias de hoje Momo pede humildemente licença à Esposa de Cristo para saber em que dias ele pode reinar.

E se é verdade que todos os deuses dos pagãos são demônios, é também verdade “que não existem realmente ídolos no mundo e que não há outro Deus, senão um só” (ICor 8, 4). Se é verdade que os primeiros carnavais foram as saturnálias pagãs, disto não decorre – absolutamente! – que somos obrigados a deixar estes dias entregues ao paganismo desenfreado. Foi por uma razão que a Igreja “confinou” o Carnaval aos poucos dias anteriores à Quaresma: foi como se Ela quisesse dizer que os prazeres pagãos deveriam dar lugar à genuína alegria cristã. Escutamos com freqüência que o Carnaval é um tempo de pecados: ora, e como ele poderá um dia ser diferente se nós não exortarmos as pessoas a brincarem-no sem pecar? O Carnaval não vai acabar. Se a Igreja quisesse acabar com o Carnaval, Ela historicamente o teria feito. O que devemos fazer é arrastar o Carnaval para os pés de Cristo. O que não podemos é permitir que os derrotados deuses pagãos recuperem este importante território que faz fronteira com o Tempo Santo da Quaresma.

Corro o risco de ser repetitivo, mas não posso deixar de enfatizar: o Carnaval não é um tempo de “pecados liberados” que serão perdoados na Quarta-Feira de Cinzas! Nada mais estranho a este – chamemo-lo assim – espírito cristão do Carnaval. Não se trata, repitamos, de fazer vista grossa a – por vezes graves! – falhas morais para, depois, preocuparmo-nos em nos emendar e em seguir os caminhos de Cristo. Não é aproveitar para cometer no Carnaval os pecados pelos quais faremos penitência na Quaresma. Esta é exatamente a falsa dicotomia que rejeitamos: a de que só existem por um lado o pecado e, pelo outro, a penitência; e isto de tal modo que tudo o que não é um passa a ser, necessariamente, o outro. Contra esta visão maniqueísta nós queremos apresentar uma “terceira via”: o Carnaval visto não como uma Quaresma antecipada e nem muito menos como o último pecado cometido antes da conversão, mas sim como uma expressão genuína da verdadeira alegria cristã. Só assim é possível descobrir o “espírito cristão do Carnaval”, só assim é possível entender o porquê da Igreja ter – de certo modo – “preservado” esta festa pagã.

Porque, afinal de contas, a Igreja preservou sim o Carnaval. Sejamos honestos: Cristo venceu maravilhosamente os deuses pagãos, e esta vitória foi tão absoluta que os únicos “resquícios de paganismo” que restaram foram os que aprouve à Igreja que restassem. Acabaram-se os sacrifícios humanos, acabou-se a prostituição religiosa, acabou-se a divinização do Imperador, acabaram-se as feras do Circus Maximus. O que havia de ser destruído foi destruído: o que sobreviveu – sejamos claros – foi o que a Igreja deixou que sobrevivesse.

E todos os “costumes pagãos” que foram preservados foram também ressignificados: dizer que o Carnaval “sobreviveu” a 2000 anos de Cristianismo mantendo-se não obstante perfeitamente pagão e anti-cristão chega às raias da blasfêmia. Equivale a afirmar a incompetência da Igreja em expurgar do mundo esta influência nefasta do Seu grande inimigo: o paganismo, cuja derrota fragorosa é historicamente incontestável.

Se sobreviveu o Carnaval, certamente ele não sobreviveu aos moldes pagãos do prazer sensível erigido como fim último da festividade. Se sobreviveu o Carnaval é porque ele foi apresentado ao mundo à luz do Evangelho de Cristo: é porque o seu sentido apenas se deve encontrar enquanto celebração da alegria cristã nos dias que antecedem o grande deserto quaresmal – os 40 dias que precedem a Semana Santa. Se sobreviveu o Carnaval é porque ele possui – ou deve possuir – um espírito cristão: e este espírito cristão do Carnaval insere-se no Ano Litúrgico da Igreja como sendo a despedida – ordenada e regrada, por certo – dos prazeres lícitos antes da Grande Quaresma por meio da qual nos prepararemos para a Paixão do Senhor.

É importante perceber o Carnaval enquanto despedida dos prazeres lícitos em atenção ao tempo de penitência da Quaresma que se avizinha. Se nós não o fizermos – e se aceitarmos a falsa dicotomia já anteriormente criticada que só enxerga o pecado e a penitência – todo o Ano Litúrgico perde o sentido: ou se confundem o Tempo Comum e a Quaresma (e aí nós já fazemos no Tempo Comum a penitência que faremos na Quaresma, ou então continuamos vivendo na Quaresma da mesma maneira que vivíamos no Tempo Comum) ou transformamos o final do Tempo Comum em um blasfemo e diabólico “tempo de pecados” (e vemos o Carnaval como uma espécie de imoral “despedida de solteiro”, como um salvo-conduto para fazer o mal – mal, aliás, muitas vezes encarado como condição mesma para a penitência quaresmal). Quando, na verdade, é a algo totalmente diverso disso que nos chama a Igreja: nem devemos uniformizar o Ano Litúrgico e nem muito menos “encaixar” nele um tempo propício para o pecado.

Não nos podemos esquecer de que, para além do pecado e da penitência, existe uma infinitude de atitudes lícitas que não pecamos em praticar mas das quais, na Quaresma, somos chamados a nos abster: fugir do pecado é obrigação! Só há mérito na abstinência porque ela se dirige a uma coisa que é em si boa. É exatamente dessas coisas que nós devemos nos despedir no Carnaval. Durante a Quaresma vamos gastar menos tempo em conversas fúteis com nossos amigos? Aproveitemos os dias anteriores à Quarta-Feira de Cinzas para conversar demoradamente assuntos triviais com as pessoas que nos são caras! Durante a Quaresma vamos nos abster de todas as bebidas alcóolicas? Esvaziemos sem escrúpulos uma boa garrafa de vinho durante o Carnaval, junto com pessoas que nos são agradáveis! Dedicaremos à oração o tempo do nosso dia-a-dia que era normalmente reservado à recreação? Cantemos e dancemos durante estes dias, porque em breve não mais poderemos dançar nem cantar! Em suma, que o Carnaval seja uma preparação para a Quaresma: que nele tomemos forte consciência das coisas das quais nos vamos abster muito em breve. A penitência não é jamais mera rejeição ao pecado: ela só faz sentido se for abster-se do que é lícito. E, para fortalecer tal consciência, um Carnaval bem vivido pode ser bastante útil. Um Carnaval bem vivido pode possibilitar uma Quaresma repleta de frutos. Um Carnaval bem vivido pode até mesmo ser fundamental para uma Quaresma frutuosa.

Marchinhas de Carnaval [2007]

[Publicação original: 17 de setembro de 2007]

Marchinhas de Carnaval

“A nossa vida é um carnaval,
a gente brinca, escondendo a dor;
e a fantasia do meu ideal
é você, meu amor!”

Isso é uma música de carnaval. Eis uma festa que sempre exerceu em mim um fascínio espetacular! Ela sempre me pareceu ter algo de bastante paradoxal. De fato, se existe um tema recorrente nas marchinhas de carnaval é essa dicotomia entre a felicidade e a tristeza, entre o sonho bom e a dura realidade. O carnaval é uma festa que subsiste na tensão entre o Sábado de Zé Pereira e a Quarta-Feira de Cinzas; entre a felicidade sem limites momentânea que ele oferece, e a dura consciência de que o tempo caminha, inexorável, rumo às cinzas da quarta-feira. A sua alegria é meticulosamente delimitada no tempo.

A euforia do carnaval é permeada pela tristeza da quarta-feira de cinzas! Isso está presente nas músicas que são características desse período; quando não há referência explícita ao fim do Carnaval (“É de fazer chorar / Quando o dia amanhece / e obriga o frevo a parar… / Oh, Quarta-Feira ingrata, / chega tão depressa / só pra contrariar!”), há as histórias dos amores impossíveis de Colombinas e Arlequins (“Quanto riso, ah, quanta alegria / – mais de mil palhaços no salão! / Arlequim está chorando pelo amor da Colombina / no meio da multidão…”), ou ainda de paixões passageiras (“Mas é carnaval, / não me diga mais quem é você… / Amanhã tudo volta ao normal!”)… não importa. As marchinhas de Carnaval, para serem boas, precisam ser tristes, porque o carnaval tem, intrinsecamente, a tristeza de ser passageiro.

E é precisamente este paradoxo do carnaval – a tristeza na alegria – que sempre me encantou. Os prazeres do mundo são tentadores, bem o sabemos; mas vejam que espécie estranha de tentação! Um prazer que se diz expressamente passageiro… uma alegria que carrega, em si, a tristeza da própria efemeridade. Quem é que vai se enganar, tomando como absoluto um prazer que se define, repetidamente, como limitado?

Mas, se olharmos um pouco melhor, veremos aí a malícia da tentação! Pois, note-se bem: uma coisa é escolher algo mau, mas que está “revestido” de uma roupagem boa, capaz de enganar. E outra coisa, bem diferente e bem pior, é gostar do algo mau sabendo ser ele mau, despido daquilo que pode enganar um incauto. Coisa lamentável é entregar-se a um bem menor sem avaliar corretamente as suas (reduzidas) dimensões; coisa muito mais lamentável é entregar-se a este bem menor conhecendo exatamente o seu parco tamanho! Ah, o carnaval pode parecer bem pouco enganoso, para quem gosta de escutar marchinhas… mas como é pior o abismo que ele abre, como é tão mais desgraçado quem nele cai, precisamente por causa da falta de engano… precisamente pela verdade revelada nua e crua!

E esta visão de mundo carnavalesca é o extremo oposto da visão de mundo cristã. Os católicos vivem num “vale de lágrimas”, num mundo de sofrimentos, sabendo todavia que esta vida é curta e que, sofrendo bem neste mundo, poderemos gozar um dia da Bem-Aventurança celeste que não tem fim. O carnaval é um “vale de prazeres”, onde se deve aproveitar bem a festa que é curta, porque depois voltará a tristeza do quotidiano…

A festa curta do carnaval, que deve ser aproveitada, porque o futuro é só tristeza… As lágrimas do dia-a-dia enquanto caminhamos nesta curta vida, que devem ser choradas, porque o futuro é a Glória da Vida Eterna! Uma perfeita correspondência antitética! Eis aí a tentação de Momo!

“Vê, Colombinas azuis a sorrir, lá-láiá…
Vê, serpentinas na luz reluzir…
Vê os confetes do pranto no olhar
desses palhaços dançando no ar!

Vê, multidão colorida a gritar, lá-laiá…
Vê, turbilhão desta vida passar…
Vê os delírios dos gritos de amor
nesta orgia de sol e de dor!”

Se nos for permitido tomar catequese do carnaval, que peguemos (como um exemplar da sua filosofia) esta música, e a entendamos do jeito certo: não gastemos os nossos dias vendo o turbilhão desta vida passar! Sim, a vida passa depressa, como um turbilhão – como nos ensina a Doutrina da Igreja – e importa que cuidemos com zelo do pouco tempo que nos é dado, a fim de não o vermos simplesmente passar! Como nos diz o finalzinho daquele soneto de Frei Antônio das Chagas:

“Ó vós, que tendes tempo sem ter conta,
não gasteis vosso tempo em passatempo!
Cuidai, enquanto é tempo, em vossa conta.

Pois aqueles que, sem conta, gastam o tempo,
quando o tempo chegar de prestar conta,
chorarão, como eu, o não ter tempo.”

Permita-nos Deus cuidar bem do nosso tempo; para que não aconteça de, arrastados pelo turbilhão da vida, chorarmos depois o ter ela passado tão depressa!