Desmascarando um discurso de ódio: contra os que são contra a dita “bolsa-estupro”

De ontem para hoje, por conta da sua aprovação na CFT da Câmara dos Deputados, multiplicaram-se internet afora as críticas ao Estatuto do Nascituro. A maior parte delas está francamente empenhada em lhe conferir um rótulo odioso por meio do recurso exaustivo à expressão “bolsa-estupro”, atribuída pejorativamente ao projeto de lei.

Um rótulo odioso, como nos ensina Schopenhauer, é um estratagema de falsa retórica que pretende desqualificar um argumento por meio de sua (indevida) vinculação a uma «categoria geralmente detestada». Ou seja, torna-se desnecessário entrar no mérito do argumento: basta lançar-lhe alguma pecha detestável, que a repulsa àquela categoria transmite-se naturalmente para o objeto rotulado. Aplicando a falácia ao caso em prática, temos o seguinte: o estupro é socialmente detestável, e com razão. Então, se associamos o PL 478/2007 ao estupro, a repulsa ao crime transfere-se automaticamente para o Projeto de Lei e não temos necessidade de fazer mais nada contra ele porque já o tornamos socialmente rejeitado. Não por ele ter sido refutado na esfera dos argumentos, mas somente porque se tornou odiado no âmbito das impressões subjetivas.

Vê-se, desde logo, que se trata de expediente típico de quem não tem argumentos. Mas como se defender dessa canalhice? A primeira e mais urgente coisa a ser feita é negar o apodo: não existe nenhuma «bolsa-estupro». A segunda, é demonstrar a má-fé da construção da alcunha: o texto ora em trâmite do PL 478/2007 (que é um substitutivo) tem 14 artigos, dos quais somente um trata da violência sexual; de sorte que a expressão «bolsa-estupro» é de um reducionismo oportunista grosseiro. A terceira é esclarecer o que o Estatuto do Nascituro realmente dispõe: não se trata de revogar artigo algum do Código Penal e nem muito menos de obrigar a mulher a sustentar o filho do estuprador, mas tão-somente de, caso ela o deseje, ajudá-la a criar o próprio filho.

E com duas ligeiras considerações desmascaremos este rasgar de vestes hipócrita. Primeira: sob qual absurdo pretexto alguém pode ser contra o custeio pelo Estado de uma criança cuja mãe não tem condições de a sustentar? Então a pobre da mulher, além de sofrer violência sexual, se não quiser assassinar o próprio filho tem que ser obrigada a cuidar dele sem nenhum tipo de ajuda dos Poderes Públicos? Veja-se o tamanho da monstruosidade que a ideologia abortista leva as pessoas a defenderem!

Segunda: os defensores do aborto são os primeiros a se dizerem a favor da “escolha” da mulher [pro-choice] e pela sua liberdade de fazer o que bem entender com o próprio corpo. Deveriam, portanto, por coerência, apoiar com entusiasmo o Art. 13 do Estatuto do Nascituro, que, dispondo sobre o auxílio psicológico e financeiro à mulher vítima de estupro que opte pela não-interrupção da gravidez, dá as condições necessárias para o efetivo exercício da sua liberdade. Afinal de contas, liberdade só existe quando se pode escolher entre dois caminhos possíveis. A mulher que não tem condições de criar um filho, assim, é na verdade constrangida ao aborto pelas circunstâncias em que se encontra. Dizer que uma vítima de estupro pobre e assustada está sendo «livre» quando opta pelo aborto é uma piada de muito mau gosto: se ela não tem condições financeiras ou psicológicas de ter aquela criança, é óbvio que não cabe falar em escolha alguma aqui. O PL 478/2007, prevendo o «acompanhamento psicológico da mãe» e os «meios econômicos suficientes para cuidar da vida, da saúde do desenvolvimento e da educação da criança», está assim restabelecendo a autonomia da mulher e garantindo-lhe o legítimo direito de decidir. Afinal, há de se convir que não se exerce «direito de escolha» algum quando se opta por uma coisa porque não se tem condições de fazer a outra.

Não se enganem os leitores: este levante orquestrado contra o Estatuto do Nascituro não é fruto de humanismo ou de compaixão pelas mulheres. Não se baseia em nobres ideais de progresso e liberdade e não está nem um pouco preocupado com as vidas daquelas que ele diz defender. Muito pelo contrário, é o debater-se de uma ideologia assassina que, sob o pretexto de defender a liberdade, condena as mulheres à solução fácil do aborto e não tolera nada que venha dar opções verdadeiras às vítimas de violência sexual. É disso que se trata. Não dêem ouvidos a esta hipocrisia.

Um perfeito exemplo de retórica vazia: Veja, Contraditorium e Gays

A respeito deste texto recente do Cardoso, eu só gostaria de fazer três ligeiros comentários (mesmo sem ter lido o texto da Veja que ele critica, cuja defesa não me interessa fazer aqui).

Primeiro, para mim é novidade esta história de «faz MUITO tempo que não existe mais “grupo de risco”». Se não houver mais (coisa de que eu sinceramente duvido, mas vá lá), é de quatro anos para cá e eles sumiram sem fazer alarde, porque eu me lembro desta discussão. Nos princípios do Deus lo Vult! (aqui e aqui) eu publiquei alguns artigos sobre o tema; para ficar só na referência da grande mídia nacional, a manchete d’O Globo Ciência ostentava então em letras garrafais que risco de contrair HIV ainda é mais alto em gays. Ainda está no ar, cliquem e vejam.

Segundo, não vale confundir uma histeria moderna (*) com um princípio sempre válido. Se não é permitido no Brasil fazer uma festa particular dizendo que “crioulo não entra”, isto é por conta de certos desdobramentos históricos e sociais específicos; jamais porque – como insinua o Cardoso – é sempre injustamente discriminatória a proibição de algo que não seja um direito constitucional. Ora bolas, do lado da minha casa aqui em Recife havia uma academia “só para mulheres”, e eu me lembro de que em certos bares da Boulevard St. Michel em Paris não era permitida a entrada de homens; e nada disso é misandria.

Terceiro, o ad hominem do final do texto (e a quem lhe é devido o título) é descabido. Do fato (por ridículo e irresponsável que seja) dos caras não terem checado no Google a história do Teflon e do Projeto Apollo, não segue que eles estejam rotundamente errados quando falam «sobre estilo de vida, orientação sexual, convenções sociais e discriminação em geral». Um comentário en passant desses pode até ser tolerado como uma figura de estilo a coroar com um aspecto retórico e lúdico um texto bem escrito e bem argumentado (o que claramente não é o caso), mas não pode ser adotado como coluna vertebral de um artigo a ponto de lhe dar o título, é óbvio. A despeito do seu estilo debochado e superior, o texto do Contraditorium é um perfeito exemplo de retórica vazia.

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(*) Exemplo da histeria moderna à qual me referi acima: a versão original de Piston de Gafieira canta, muito tranqüilamente, que «o Doca, um crioulo comportado / ficou tarado quando viu a Dagmar». A música foi regravada depois pelo Zeca Pagodinho e eis porém que, de repente, o crioulo desaparece e o pobre do Doca vira um genérico e politicamente correto «sujeito comportado». Ora, isto não é respeito a direitos humanos nem combate ao racismo nem nada. É simplesmente uma babaquice estúpida que não se transmuta em sensatez a despeito da sua assustadora proliferação na sociedade brasileira contemporânea.