A pandemia e as igrejas fechadas

A Quaresma é um dos tempos mais ricos e mais marcantes da Liturgia da Igreja. A cada ano a Igreja reserva este tempo litúrgico para, primeiro, exercitarmos as virtudes cristãs ao longo das semanas seguintes ao fim do Carnaval; segundo, acompanharmos de maneira mais intensa as últimas horas de Cristo no Sagrado Tríduo Pascal; e, terceiro, celebrarmos jubilosos a Vigília do Sábado Santo, a fim de que cantemos com toda a Igreja a festa da Páscoa, a Ressurreição, que se pode muito bem dizer — parafraseando aquilo que S. João Paulo II disse da Eucaristia — que é a fonte e o ápice do ano litúrgico da Igreja.

Ora, a Quaresma é um tempo de graças espirituais cujo desabrochar depende do comprometimento do católico em buscar viver bem aquele tempo. Os tempos litúrgicos não são como as estações do ano, cujos efeitos se fazem sempre sentir independente do que as pessoas façam. O calor do verão decorre do só fato de estarmos no verão; e mesmo uma pessoa que nem saiba que é verão, ainda assim vai sentir o calor próprio da estação. Mas com a Quaresma não é assim: as graças espirituais abundantes deste tempo — que são os efeitos próprios deste tempo litúrgico — só se fazem sentir àquelas pessoas que, conscientes de estarem atravessando o tempo quaresmal, esforçarem-se para bem vivê-lo. Não basta estar exposto à Quaresma, é preciso viver a Quaresma.

Pois bem. Acontece que a Quaresma se vive, claro, por meio do esforço pessoal — do jejum, da oração e da esmola –, mas também, e principalmente, por meio da vivência eclesiástica: da frequência aos sacramentos e da participação ativa da vida litúrgica. E é uma coisa verdadeiramente deplorável, inaudita em dois mil anos de Cristianismo, ignominiosa, ultrajante, que clama aos céus vingança, é um acinte e um escárnio que os católicos estejam, por conta de um coronavírus, desde a metade da Quaresma privados de assistir as Missas e de receber os Sacramentos.

A atual pandemia da COVID-19 revelou as coisas mais podres, mais mesquinhas, mais mundanas das autoridades eclesiásticas. Como é possível que se tenha pacificamente aceitado fechar as portas dos templos — e isso no mundo todo! — sine die, de maneira radical, abrupta e a absoluta, privando o povo da participação litúrgica e do auxílio dos sacramentos? No meio da Quaresma! Estamos agora em pleno Tríduo Santo e as missas In Coena Domini foram celebradas sem o povo provavelmente pela primeira vez desde que foram codificadas! Amanhã à noite será a Vigília Pascal e os católicos, trancados em suas casas, não irão se congratular pela vitória de Cristo sobre a morte! A Páscoa será celebrada em privado. Como foi possível chegarmos a este ponto?

Nem se diga que iremos nos reunir à distância, valendo-nos dos meios de comunicação, fazendo orações domésticas e comunhão espiritual. Em primeiro lugar, todo católico já faz, ordinariamente, oração doméstica e comunhão espiritual: é claro que já rezamos nas atividades quotidianas — ao dormir e ao despertar, antes das refeições, dos estudos, do trabalho etc. –, já incluímos nos nossos dias espaços para a meditação, para o exame de consciência, para as leituras piedosas, já excitamos o desejo de nos unirmos espiritualmente a Nosso Senhor Sacramentado. Isso não é uma coisa surgida agora e que nos esteja sendo oferecida como sucedâneo da vida eclesial; isso é já parte integrante da vida espiritual católica e que, absolutamente, não supre a necessidade da participação litúrgica.

Em segundo lugar, uma coisa não tem nada a ver com outra: não existe oposição entre a oração particular e as cerimônias eclesiásticas públicas e estas não podem ser substituídas por aquelas, porque a publicidade é da essência do Catolicismo. A Igreja é visível! Faz parte da constituição substantiva da Igreja Católica os Seus elementos materiais, externos, sensíveis, e isto por determinação divina. Igreja é Ekklesia, é assembleia, é conjunto de pessoas reunidas em sua segunda casa — paróquia, paroikía, “casa” (oikia) “ao lado” (par) — para se auxiliarem mutuamente em seu caminho rumo à Pátria definitiva, à Jerusalém terrestre. Não existe uma “igreja espiritual” e nem é possível cogitar de uma eclesialidade composta de templos fechados e famílias isoladas, relacionando-se pelas redes sociais. Mas o que é isso? Passamos anos criticando o “catolicismo de internet” para, agora, começarmos a pregar cerimônias transmitidas pelo Instagram e pelo Youtube?

Finalmente, em terceiro e mais importante lugar, existem os Sacramentos! Os Sacramentos, que são sinais sensíveis e eficazes da graça de Deus, que nos são necessários à vida de graça e, em última análise, à nossa salvação, não podem ser conferidos senão pessoalmente! Bênção papal transmitida pela internet, posto que valiosíssima, não tem o condão de perdoar os pecados como só a confissão auricular pode fazer. A comunhão espiritual realizada diante de uma Missa que se assiste pelas redes sociais, conquanto piedosa e salutar, não produz os efeitos próprios da recepção da Eucaristia — como o aumento da graça santificante e o perdão dos pecados veniais. Com esta loucura de fechamento de igrejas e suspensão dos sacramentos, o que acontece é que as almas estão privadas dos canais ordinários de transmissão da graça de Deus. Ora, a Igreja possui, ao lado do poder-dever de ensinar e do poder-dever de governar, o poder-dever de santificar: o munus sanctificandi. E este múnus se exerce pela celebração da Liturgia, sim (que graças a Deus continua acontecendo, embora em privado), mas se exerce também pela administração dos sacramentos ao povo cristão. E com os católicos trancados em casa, com os sacerdotes isolados, com as cerimônias (somente as mais importantes, decerto) apenas transmitidas pela internet… como anda a administração dos sacramentos? As confissões, as comunhões, as unções dos enfermos…? Por quanto tempo mais as autoridades eclesiásticas vão insistir nesta anomalia diabólica e ultrajante?

É Sexta-Feira Santa e Nosso Senhor foi arrancado à convivência dos Seus discípulos, pelas mãos dos ímpios, para ser crucificado. E, hoje, paradoxalmente, Nosso Senhor Sacramentado também é arrancado às almas fiéis sequiosas por recebê-Lo — arrancado pelas próprias autoridades eclesiásticas que são as legítimas dispensadoras da graça de Deus. Amanhã será a Páscoa da Ressurreição e também não poderemos comer a Carne e beber o Sangue d’Aquele que ressuscitou dos mortos para nos dar a Vida Eterna. Até quando esta insensatez?

A má formação do clero e a validade dos Sacramentos

Uma leitora me perguntou por email se a falta de Fé dos sacerdotes poderia macular a eficácia dos sacramentos ministrados por eles. Por exemplo, se um sacerdote que não acredita na Transubstanciação poderia celebrar uma Missa válida (ou seja, uma Missa na qual a Hóstia Consagrada se tornasse, real e substancialmente, no Deus Vivo e Verdadeiro), ou se um bispo que descrê na Igreja Hierárquica poderia ordenar verdadeiros sacerdotes (ou seja, homens capazes de “confeccionar” os Sacramentos da Nova Aliança).

A resposta curta e direta para a pergunta é que os ministros celebram validamente os Sacramentos ainda que particularmente não tenham Fé. É o que consta nos manuais de teologia sacramental: “La validez y eficacia de los sacramentos no dependen de la ortodoxia ni del estado de gracia del ministro” (OTT, Manual de Teologia Dogmática, Livro IV, Parte III, Seção I, Cap. IV, §9., 1., b.). Quanto a este ponto não parece haver polêmica digna de nota, estando as posições donatistas já derrotadas há muitos séculos pela Igreja.

Mas há uma outra questão afim. É que todo Sacramento exige matéria, forma e ministro com intenção de fazer o que faz a Igreja. Sabe-se que a intenção suficiente para a validade dos sacramentos é a mera intenção virtual (Summa, IIIa, q.64, a.8, ad.3); no entanto, mesmo esta precisa ser minimamente qualificada. O próprio Aquinate, dois artigos depois, diz que se alguém quiser realizar não um sacramento, mas uma paródia, este anula o sacramento (id. ibid., a.10, Resp.). E o mesmo Ludwig Ott afirma poucos parágrafos depois (id. ibid., 2., b., c’.) o seguinte (tradução livre):

Segundo a opinião hoje quase geral dos teólogos, para a administração válida dos sacramentos requer-se [da parte do ministro] a intenção interna, isto é, uma intenção tal que não apenas tenha por objeto a realização externa da cerimônia sacramental, mas também o seu significado interno. É insuficiente a intenção meramente externa que foi considerada como suficiente por numerosos teólogos da escolástica primitiva (…) e muitos teólogos dos séculos XVII/XVIII.

Esta intenção meramente externa tem por objeto a realização da cerimônia religiosa com seriedade e nas circunstâncias devidas, porém deixando de lado o seu significado religioso interno. Como é natural, essa intenção não responde ao dever de fazer o que faz a Igreja, nem ao papel do ministro como servidor de Cristo, nem à finalidade do signo sacramental que em si é ambíguo e recebe sua determinação da intenção interna; nem tampouco está de acordo com as declarações do Magistério (cf. Dz 424, «fidelis intentio»).

A distinção é relevante. A lhe dar crédito, parece que é preciso matizar a resposta anteriormente dada. Parece, assim, que a mera falta de Fé do ministro não é suficiente para invalidar o Sacramento ministrado; no entanto, é possível cogitar de invalidade por defeito de intenção (não meramente “por falta de Fé”) se o ministro deliberada e conscientemente descrer da realidade sacramental.

Alguns exemplos. Certo padre nutre dúvidas sobre a realidade da transubstanciação; não consegue crer na Presença Real, mas sofre por conta disso, e celebra reta e zelosamente a Santa Missa. O Sacramento é válido; tal é, precisamente, a história do milagre de Lanciano. A intenção, neste caso, era reta, ainda que faltasse ao padre, em certa medida, a fé eucarística.

Outro exemplo. O sujeito rompe formalmente com a Igreja Católica. No entanto, incoerente mas honestamente, continua acreditando em Nosso Senhor Jesus Cristo. Batiza, respeitando a fórmula trinitária. O Sacramento é válido, sem dúvidas: esta é uma das definições doutrinárias mais antigas, da época do Cristianismo Primitivo.

Terceiro exemplo. O indivíduo é um simplório, tem uma profunda limitação intelectual, ou quem sabe pertence a uma cultura estranha (digamos, é um silvícola em seu primeiro contato com o europeu), mas se encantou com a pregação dos missionários, largou tudo o que tinha e se fez ordenar sacerdote. Não entende, absolutamente!, todos os detalhes da teologia sacramental católica, mas decorou os ritos da Santa Missa e, quando a celebra, entende estar praticando o culto dos católicos. Ainda neste caso o Sacramento é válido pela retidão do sacerdote.

Ou seja, o sacramento é válido, ainda que o ministro não acredite nele, se essa descrença for uma mera fraqueza; é válido, ainda que o ministro negue o dogma católico, se a negação do dogma versar sobre um ponto alheio ao Sacramento que se está ministrando; e é válido, ainda que o ministro não compreenda direito o que está fazendo, se essa incompreensão for fruto de uma formação insuficiente e não-culposa. Não há, nestes casos, defeito de intenção capaz de invalidar o Sacramento.

Caso diferente ocorre quando o padre conhece o ensino da Igreja sobre determinado sacramento e, conscientemente, com malícia, quer fazer algo diferente do que a Igreja entende com o sacramento. Por exemplo, se o padre sabe que a Igreja ensina ser a Missa a renovação incruenta do Sacrifício do Calvário, mas acha que a Igreja está errada, e quando ele “preside a Eucaristia” o que ele efetivamente quer celebrar é um banquete simbólico festivo, então neste caso o Sacramento é inválido. Não porque — atenção! — falte-lhe Fé, mas porque lhe falta a intenção de fazer o que faz a Igreja neste caso específico. No mesmo exemplo, se este mesmo padre acredita ter o poder de perdoar os pecados, e se ao ouvir confissão ele quer realmente absolver o penitente de suas faltas, então a sua confissão é válida mesmo que a sua Missa não o seja.

Pelo que vejo, eu acredito que o problema da má-formação dos sacerdotes, no geral, enquadra-se no exemplo da formação insuficiente que referi acima. São pessoas de reta intenção que podem até ter idéias bem equivocadas sobre o dogma católico; mas não o fazem com o animus específico de agir contra o que a Igreja ensina, o que faz toda a diferença. Na pior das hipóteses, têm a intenção de celebrar a cerimônia cristã que (acreditam que) a Igreja celebra, e isso é suficiente para garantir a intenção virtual capaz de conferir validade aos sacramentos. Com esses não é preciso se preocupar.

Ao contrário, é preciso se acautelar dos padres orgulhosos, rebeldes, que negam conscientemente o ensino sacramental da Igreja; e dos que celebram de maneira debochada, ou mecânica. Um e outro podem ministrar sacramentos inválidos por defeito de intenção. Não simplesmente por conta de má formação, mas de uma formação má. Porque para invalidar um sacramento não é suficiente ser ignorante, é preciso saber que está fazendo errado, é preciso querer fazer errado. Por mais que a situação do clero atual seja deplorável, não me parece que haja entre ele tanta perversidade a ponto de transformar a validade dos sacramentos em uma questão exageradamente preocupante.

A «ajuda dos Sacramentos» é para o quê?

Em novembro do ano passado eu comentei aqui sobre as dubia enviadas por alguns cardeais ao Papa Francisco a respeito de algumas interpretações da exortação Amoris Laetitia. Já então eu disse achar ter sido a divulgação bastante oportuna, uma vez que poderia ensejar um «debate franco, aberto e desapaixonado a respeito dessas questões». Estava e ainda estou convencido de que disso não pode advir senão o bem de toda a Igreja, uma vez que o Cristianismo é a religião do Logos de Deus — cuja doutrina é, portanto, racional e racionalizável, adequada ao homem. A polêmica é uma coisa boa porque fortalece as posições, sedimenta os entendimentos e dissipa as dúvidas; a própria Igreja é intrinsecamente polemista, e o único caso em que agora me recordo de ter a Igreja intervindo para silenciar uma polêmica foi na discussão entre jesuítas e dominicanos a respeito da predestinação — e isso só porque, à época, tal debate havia perdido as fundamentais características de «franco, aberto e desapaixonado».

Pouco tempo depois do lançamento da Amoris Laetitia, ainda em maio, discutindo sobre o assunto no espaço de comentários do blog, eu escrevi aqui o seguinte:

i. não é somente a loucura ou a ignorância material que são capazes de mitigar a responsabilidade pessoal dos atos humanos, mas qualquer circunstância capaz de tornar «o juízo prático obscurecido e a vontade enfraquecida» (DEL GRECO);

ii. a AL não trata de abrir sacramentos a adúlteros ou concubinários, mas sim de discernir as situações em que, «[p]or causa dos condicionalismos ou dos factores atenuantes» (AL 305) — e jamais sem eles –, haja a possibilidade de alguém se encontrar em uma situação de pecado objetiva sem culpa grave correspondente;

iii. não há nenhuma orientação específica da AL para estes casos; no entanto, o que quer que se vá fazer, deve ser feito sempre «evitando toda a ocasião de escândalo» (AL 299) e sem «nunca se pensar que se pretende diminuir as exigências do Evangelho» (AL 301).

De lá para cá muita água rolou por debaixo da ponte. Por exemplo, além da publicação das (agora famosas) dubia, eu tive a sorte de conhecer e ler o livro do pe. Iraburu (Comentarios sobre la Amoris Laetitia), o que me deu a oportunidade de burilar alguns pensamentos e precisar alguns conceitos. Entre outras coisas, agora me parece claro — mais claro do que então — que o primeiro dever da Igreja, diante de uma eventual circunstância atenuante (como por exemplo a ignorância axiológica, ou o condicionalismo social), é e não pode nunca deixar de ser o de libertar o pecador (ainda que só materialmente pecador) de sua limitação. Em outras palavras, não é possível institucionalizar uma pastoral da condescendência, que distribui sacramentos mantendo no entanto prostrados na lama os filhos de Deus chamados à perfeição.

Porque não pode haver a menor possibilidade de dúvida de que um divorciado recasado, ainda na hipótese de que o seu matrimônio seja sacramentalmente nulo, está prostrado na lama. Ainda que ele talvez possa, ontologicamente falando, não ser adúltero (no caso em que o seu primeiro matrimônio seja de fato nulo), torna-se ao menos fornicador na medida em que não é possível aos cristãos batizados casarem-se (= produzirem o vínculo sacramental fora do qual é defeso todo consórcio sexual) fora das condições que a Igreja estabelece para o Sacramento. Uma eventual inimputabilidade subjetiva não elide a natureza objetiva do ato praticado: este, em quaisquer hipóteses, é intrinsecamente desordenado e clama por sua reordenação.

A Amoris Laetitia, em sua famigerada nota 351, fala que há «casos» de pessoas vivendo em uma situação objetiva de pecado em que «poderia haver também a ajuda dos sacramentos». Tem-se gastado muito latim para perguntar quais seriam exatamente estes casos. No entanto, penso que se tem esquecido uma outra pergunta, muito mais fundamental, que exsurge imediatamente da leitura da nota de rodapé: é possível haver «a ajuda dos sacramentos» para quê?

Só pode ser para que a pessoa possa «crescer na vida de graça e de caridade» (AL 305), que é o período ao final do qual está posta a nota que fala da ajuda dos sacramentos. E crescer na graça santificante exige necessariamente, no limite, a superação daqueles «condicionalismos» ou «factores atenuantes» que podem tornar em certa medida inimputável alguém que viva em uma situação de pecado objetiva. Em outras palavras, a «ajuda dos sacramentos» em última instância é e não pode jamais deixar de ser para que a pessoa abandone a situação objetiva de pecado. Achar diferente disso é amesquinhar a graça de Deus.

O silogismo é bastante simples. Todos são chamados à perfeição; uma «união irregular» — concubinária ou adulterina — é evidentemente imperfeita; logo, ninguém é chamado a uma reunião irregular. Não é portanto possível estabelecer uma analogia entre a «união irregular» e o Sagrado Matrimônio: este necessariamente tende a se perpetuar e fortalecer aperfeiçoando-se cada vez mais, enquanto aquela, por sua própria natureza, exige a própria destruição. Outra leitura não é possível do parágrafo 303: mesmo nos casos em que alguém acredite em consciência estar realizando a vontade de Deus no pecado, ainda assim «deve permanecer sempre aberto para novas etapas de crescimento e novas decisões que permitam realizar o ideal de forma mais completa». E é para essa realização do ideal de forma mais completa que a Igreja deve sempre ajudar o fiel; sempre que não o faz está traindo a própria missão.

Notícias recentes nos dão conta de que os bispos alemães autorizaram fiéis divorciados a receberem os sacramentos; a notícia solta, assim, na mídia secular, não nos permite submeter as normas germânicas ao crivo que expúnhamos nas linhas acima. Parece, no entanto, que infelizmente a «pastoral» alemã é outra daquelas que conduz as almas ao Inferno, institucionalizando a condescendência e confirmando na imundície do pecado filhos de Deus chamados à santidade: também recentemente o prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, o Card. Müller, deu uma entrevista deplorando exatamente «que muchos obispos estén interpretando “Amoris laetitia” según su propio modo de entender la enseñanza del Papa». Não parece despropositado imaginar que o cardeal alemão esteja justamente respondendo aos seus conterrâneos.

Não faltou quem enxergasse, na entrevista do cardeal Müller, uma resposta tácita às dubia de setembro passado. Resposta oportuna: sim, existem atos intrinsecamente desordenados que não se podem jamais justificar à força de consciências mal-formadas ou circunstâncias atenuantes. Sim, os ensinamentos da Familiaris Consortio permanecem válidos e devem ser observados. Não, as interpretações confusas que existem no orbe católico não são provocadas pela Amoris Laetitia, senão pelos intérpretes confusos dela. Todas essas coisas precisam ser ditas com honestidade e clareza: porque é a céu aberto e a plenos pulmões que cumpre dissipar os equívocos urdidos a portas fechadas e disseminados por sussurros erráticos.

Receber a Liturgia, não reformá-la

Não li ainda o livro do Card. Sarah (grande cardeal!) que, segundo consta, chegou há poucos meses às livrarias do Brasil; mas hoje, no Facebook, tive acesso a uma peça publicitária do livro-entrevista que me chamou a atenção. Traduzo livremente:

Se nós fabricamos a liturgia por nossa própria conta ela se afasta do divino; ela se transforma em um ridículo, vulgar e maçante jogo teatral. Acabamos, assim, com liturgias que se parecem com programas de auditório, com uma festa dominical engraçada para relaxar após uma semana de trabalho cheia das mais variadas preocupações. Uma vez que isso acontece, os fiéis voltam para a casa após a celebração da Eucaristia sem haverem encontrado Deus pessoalmente — ou sem O terem ouvido no mais profundo dos seus corações.

Tenho para mim que esta questão é importante e, a ela, não se costuma dar a devida atenção fora dos ambientes (ditos) tradicionalistas. O cerne do argumento aqui desenhado é o seguinte: os homens vão à Igreja para se relacionar com Deus. Para tanto, é necessário que eles encontrem, na Igreja, algo maior do que eles próprios, algo que eles próprios não seriam capazes de confeccionar com suas próprias mãos. Mas, ora, tornar a Liturgia uma coisa que cada “comunidade” produz — ainda que seja uma “construção coletiva” — é fazer com que ela seja percebida não mais como algo que se recebe (de Deus, do passado ou de um determinado conjunto de pessoas santas), mas como algo que se constrói. E se eu construo a Liturgia, então eu não preciso ir à Igreja: é o corolário mas óbvio aqui, de cuja precisão o esvaziamento de nossas igrejas (mormente no pós-Concílio) dá a prova mais triste e incontestável.

Os homens já se relacionam consigo próprios o tempo inteiro — afinal de contas, a vida secular é exatamente isso. Não se vai à Igreja para fazer, lá, o que mesmo que já se faz no mundo; vai-se para a Igreja, ao contrário, para lá se abrir ao diferente. É aliás esta uma característica muito própria da Religião Cristã: nela se tem não a obra de um grande homem, não o resultado acumulado do progresso da humanidade, nem nada disso, mas o próprio Deus que vem ao encontro da humanidade que, sem esta Vinda, estaria para sempre condenada a nunca O encontrar. É por isso que se vai à Igreja: porque n’Ela Deus vem até nós. E imaginar que Deus poderia vir até nós mediante a virtude de qualquer coisa propriamente nossa não passa de uma superstição ímpia; achar que somos capazes de O invocar mediante determinado conjunto de palavras e gestos inventados por nós é ainda mais insano do que acreditar, por exemplo, que determinada dança é capaz de fazer chover. É bárbaro e primitivo.

A Liturgia só funciona (lembrando, Sacramento é um sinal sensível e eficaz da graça divina) porque Ela nos foi dada: não é obra nossa mas do próprio Cristo, através do Seu Corpo que é a Igreja. Essa verdade, fundamental para um relacionamento sadio com Deus, fica completamente obscurecida quando «nós fabricamos a Liturgia por nossa própria conta»: é o que o Card. Sarah está dizendo. Nós perdemos a capacidade de nos abrir a Deus (lembrando, os Sacramentos agem ex opere operato mas os seus efeitos só se percebem ex opere operantis) se não somos capazes de enxergar, nos gestos e palavras da Santa Missa, mais do que uma simples convenção arbitrariamente definida pelos católicos que nela tomam parte. No limite, como se disse, a Liturgia artificialmente produzida torna desnecessária a própria ida à Igreja.

Penso que o maior problema da questão litúrgica não se encontra na parte objetiva, mas sim na subjetiva; i.e., não na capacidade do rito de conferir a graça, mas sim na de tornar os fiéis propícios a recebê-la. Isto, penso, respeita a Doutrina Católica no que diz respeito à indefectibilidade da Igreja em matéria litúrgica; isso, igualmente, explica a situação de miséria espiritual em que se encontra o catolicismo com o Novus Ordo.

Com uma interessante vantagem. Se a questão é subjetiva e não objetiva, então ela depende das disposições interiores dos que se acercam dos Sagrados Mistérios — e, portanto, a possibilidade de correção orgânica é muito maior. Ora, uma Missa repleta de invencionices locais é sem dúvidas uma coisa muito artificial. Um rito produzido por uma comissão burocrática é artificial também; mas ele só o é dentro de um horizonte temporal muito restrito. Quanto mais se caminha no tempo, mas o Rito de Paulo VI deixa de ser uma novidade para se tornar algo que simplesmente é assim na Igreja — para as novas gerações a Missa simplesmente “sempre foi assim”, é a missa que os seus pais sempre assistiram, dentro de algumas poucas décadas se tornará a missa de que os seus pais e avós sempre participaram e assim sucessivamente. Em algumas gerações a aura da ancestralidade irá reluzir também sobre o Novus Ordo; é simplesmente questão de tempo para que os católicos encontrem, nele, algo que vem de um passado (cada vez mais) remoto da Igreja — e, portanto, algo que é recebido e não confeccionado. O problema apontado pelo Card. Sarah, assim, naturalmente deixa de existir.

É justamente para impedir essa correção orgânica que os assassinos da Liturgia precisam, o tempo inteiro, inventar coisas e mais coisas para atormentar os fiéis que assistem à Missa. Celebrar estritamente o N.O.M. não atende mais à sanha iconoclasta dos inimigos da Igreja, exatamente porque para as novas gerações o N.O.M. é a liturgia tradicional. É por isso que é preciso lhe acrescentar cada vez mais coisas, cada vez mais novidades: para mantê-lo indefinidamente como uma coisa fabricada, sempre construída pela comunidade, nunca recebida da Igreja. As posições do Card. Sarah, assim, não são uma nova intervenção Ottaviani: o alvo dele é a mentalidade de que a Liturgia deva (ou mesmo possa) ser continuamente fabricada, e não um rito específico. E este combate é prévio a qualquer discussão sobre forma ordinária ou extraordinária do Rito Romano. Sem esta concepção, qualquer apostolado litúrgico é vão. Para que qualquer “Reforma da Reforma” possa ser possível, é preciso antes entender — por paradoxal que pareça — que a Liturgia se recebe e não se reforma. Sem isso estaremos apenas recauchutando velhos erros.

Ainda os pecados e a comunhão sacramental

Na minha postagem anterior, demonstrei como era descabido ignorar a diferença entre a união com Deus alcançada pela alma em oração daquela proporcionada como efeito objetivo dos Sacramentos, em particular da comunhão eucarística. A oportunidade é propícia para um esclarecimento.

Alguém poderia observar que a graça dos Sacramentos é de fato objetiva, mas os seus efeitos em quem os recebe depende em grande medida das disposições interiores e subjetivas com as quais ele é recebido. Em linguagem teológica, importa não se esquecer de que os Sacramentos operam ex opere operato, mas só são aproveitados ex opere operantis. Os termos latinos são ruins de traduzir e fáceis de confundir, mas o sentido deles é bastante claro: por um lado, os Sacramentos validamente ministrados produzem, efetivamente, a Graça que lhes é própria, independente de quem os ministra ou quem os recebe (ex opere operato). Assim, a Santíssima Eucaristia é de fato o Corpo de Cristo, ainda que o padre seja um pecador degenerado ou que o povo duvide da realidade da transubstanciação. Por outro lado, as graças produzidas no fiel pela recepção da Santíssima Eucaristia (v.g. o perdão dos pecados veniais, o aumento da Graça Santificante, etc.) só se realizam na medida das boas disposições de sua alma (ex opere operantis), e destarte podem ser maiores ou menores dependendo de como se A recebe.

Para ilustrar essa verdade, imaginemos uma Missa celebrada por um padre impenitente e na qual comunga um fiel piedoso. Para ficar ainda mais claro, imaginemos que se trata de uma Missa à qual só estão presentes duas pessoas, o padre que a celebra e o fiel que a assiste. O padre pronuncia as palavras da Consagração sobre a hóstia: ali, a partir daquele instante, Cristo está real e substancialmente presente. Na hora da comunhão, a hóstia é partida em duas; uma parte recebe o padre, a outra recebe o fiel.

Uma só foi a Hóstia Consagrada, e cada um dos dois – padre e fiel – receberam o mesmíssimo Corpo de Cristo; que diferença, contudo, entre os efeitos que essa comunhão produz num e noutro! O fiel piedoso, que está em estado de graça e se aproxima devotamente da comunhão eucarística, aumenta a sua união com Cristo e recebe do Altíssimo maravilhosos frutos espirituais. O padre impenitente, em pecado não-confessado e sequer arrependido, comete um horrível sacrilégio e – nos dizeres de São Paulo – “come e bebe a própria condenação”. Esta tão grande diferença entre um e outro só é possível justamente por conta da realidade da presença substancial de Cristo sob as espécies consagradas. Os efeitos ex opere operantis dos Sacramentos dependem por completo da sua eficácia ex opere operato.

Voltando à comunhão espiritual, alguém pode dizer que um fiel pode alcançar com ela maiores graças do que outro obtém da comunhão eucarística. Ora, mas isso é óbvio e evidente. É claro que alguém pode receber maior fruto espiritual fazendo a comunhão de desejo do que comungando de fato o Santíssimo Corpo de Cristo, principalmente se estiver em pecado mortal. Nesse caso, aliás, muito ao invés de receber os frutos da comunhão eucarística, o fiel cometeria um gravíssimo pecado se ousasse se aproximar indignamente do Corpo de Deus. Claro que os doentes precisam de remédio, mas nem todos os Sacramentos são igualmente medicinais. Não é por outra razão que existe a tradicional diferença entre os Sacramentos de mortos (os que restituem a Graça Santificante perdida) e os de vivos (os que a pressupõem para que possam ser recebidos).

A diferença entre a comunhão espiritual e a sacramental não é simplesmente que esta dê “mais frutos” do que aquela. Reside no modo como esses frutos se dão. Existe uma Igreja visível com Sacramentos sensíveis porque o ser humano não é uma entidade desencarnada e, assim, a sua natureza exige elementos sensíveis no seu culto religioso: nada mais razoável do que a Religião do Deus Invisível que Se fez Carne por nós possuir também graças invisíveis que se nos fazem sensíveis – para que de certa maneira as vejamos e ouçamos, toquemos com nossas mãos – por meios dos Sacramentos. E nada mais lógico do que a recepção dos sacramentos visíveis exigir uma certa sintonia com a Igreja visível, em particular na coerência entre a vida que se leva e os ditames morais que Ela apregoa.

Ninguém está dispensado de rezar. A comunhão espiritual não é um consolo de segunda categoria para quem não pode receber a comunhão eucarística, não é sequer um seu substituto. É todo mundo que deve cultivar o desejo do Santíssimo Sacramento, e não somente os casais em segunda união (cf. Ecclesia de Eucharistia, nn. 35ss). Este santo desejo pede pela comunhão sacramental e em última instância tem o seu término nela, mas de modo algum legitima que ela seja tomada à força, violando-se a comunhão visível da Igreja que é dispensadora dos Sacramentos. Uma comunhão eucarística realizada à margem da comunhão eclesiástica é no fundo uma contradição em termos.

É no fundo uma coisa bastante irônica e curiosa que os que desejam subtrair-se à autoridade moral da Igreja, arrogando-se o direito de tratar os seus pecados como um assunto exclusivamente de foro interno – a ser resolvido somente entre eles próprios e Deus, sem intermediários humanos -, tenham essa tão desesperada necessidade da aprovação da Igreja visível, maximamente representada pela concessão litúrgica do Santíssimo Sacramento do altar.

O “problema” dos casais recasados I: comunhão espiritual e comunhão sacramental

Não existe nenhum problema com os ditos “casais em segunda união” serem privados da comunhão eucarística. Ou, olhando a questão por outro ângulo, há sim: o problema é a naturalidade com a qual, hoje em dia, encaram-se o adultério e a bigamia. Isso, sim, salta aos olhos e choca, isso é escandaloso, isso deveria provocar-nos repulsa e inspirar-nos lágrimas de reparação pela facilidade com que Nosso Senhor é ofendido. Que aos pecadores públicos sejam negados os sacramentos de vivos é a conseqüência mais óbvia da Doutrina Católica. Que a julguem “dura demais” e procurem por todos os meios desfigurá-la, este é o verdadeiro problema que merece toda a nossa atenção.

Em recente pronunciamento preparatório para o Sínodo dos Bispos que tratará sobre o tema da Família, diante do Papa e dos cardeais reunidos em consistório, o cardeal Kasper fez um discurso que ganhou grande repercussão na mídia. Li primeiro sobre ele aqui e trechos mais amplos da fala do cardeal podem ser encontrados aqui. Algumas conclusões a que parece conduzir o raciocínio do Kasper são tão escandalosas que merecem alguns contrapontos, os quais espero fazer firmes e claros.

Antes de qualquer coisa, é digno de nota que o cardeal, que começou a sua alocução afirmando não ter respostas e sim somente perguntas, tenha vindo com “soluções” tão concretas (e equivocadas, como veremos) para o “problema” dos casais recasados. Há diferenças entre um questionamento verdadeiro e uma pergunta retórica, que podem até confundir as massas mas não escapam aos ouvidos atentos. Por exemplo, o seguinte excerto não contém um questionamento sério, e sim uma pergunta retórica cuja resposta já se encontra implícita na própria formulação do período:

Efectivamente, quien recibe la comunión espiritual es una sola cosa con Jesucristo. […] ¿Por qué, entonces, no puede recibir también la comunión sacramental?

A resposta implícita – à qual o sofista experiente fatalmente conduz o ouvinte incauto – é óbvia: não há nenhuma razão para que uma pessoa que já é «uma só coisa com Jesus Cristo» não possa receber a Comunhão Sacramental. Existe, portanto, uma absurda contradição na praxis da Igreja que precisa ser corrigida o quanto antes. Afinal de contas, se alguém pode tornar-se um só com Cristo, que autoridade terrena poderia negar-lhe a Sagrada Eucaristia?

O sofisma grosseiro por detrás desse raciocínio é ocultar a enorme diferença existente entre a presença real e substancial de Nosso Senhor nas espécies eucarísticas e a Sua presença espiritual na qual o fiel se coloca por meio da oração. É eliminar por completo a diferença existente entre as orações individuais dos fiéis e os Sacramentos – sinais sensíveis e eficazes da Graça – instituídos por Cristo e ministrados por Sua Igreja. É colocar em pé de igualdade a subjetividade da alma que reza e a objetividade da Graça conferida ex opere operato pelos Sacramentos da Nova Aliança. É, em suma, subverter por completo toda a teologia sacramental católica.

É verdade que Deus também confere a Sua Graça por meios desconhecidos aos homens, e que Ele não está de nenhuma maneira preso aos Sete Sacramentos. Mas é igualmente verdade que o modo como se dá a Graça dos Sacramentos é distinto e especialíssimo. Ninguém pode ordinariamente estar certo da pureza de sua contrição perfeita; mas qualquer penitente pode ter certeza de que, quando o padre pronuncia o Ego te absolvo, o perdão de Deus é efetivamente concedido. Um protestante em ignorância invencível pode perfeitamente estar em estado de Graça; mas como esse juízo não pode ser feito senão por Deus, não é lícito participar-lhe a Santíssima Eucaristia. O Batismo de Desejo pode tornar um catecúmeno apto a entrar no Reino dos Céus, mas não lhe permite receber a unção do Santo Crisma.

Os exemplos se poderiam multiplicar à vontade, mas creio que já tenha ficado claro o que quero dizer: os Sacramentos, por sua própria natureza de sinais sensíveis, exigem certas condições igualmente sensíveis para que possam ser ministrados. As “disposições interiores” sozinhas não bastam: ao pagão é preciso que esteja batizado para receber a absolvição sacramental, por mais pungente e contrito que seja o seu arrependimento, e ao pecador (principalmente ao público!) é necessário que esteja confessado para que possa receber a Sagrada Comunhão, por maior que possa ser a sua união espiritual com Nosso Senhor.

Deus é sempre livre para conferir a Sua Graça. Já os homens, dispensadores d’Ele, não têm a mesma liberdade divina para ministrar os Sacramentos de um modo distinto daquele que o próprio Deus estabeleceu. A (chamemo-la assim) Graça sensível só pode ser ministrada sob circunstâncias objetivamente definidas; em particular, a Comunhão Eucarística só pode ser conferida aos católicos que se encontram em estado de Graça, não o subjetivo, mas o objetivo: o estado em que se encontra o fiel que, havendo pecado mortalmente após o Batismo, tenha confessado arrependido cada uma de suas faltas graves e recebido de um sacerdote a absolvição sacramental. Esta organicidade vital dos Sacramentos não pode ser rompida, e neste itinerário sacramental não é lícito tomar atalhos.

Não é portanto verdade que se negue a Graça de Deus a – p.ex. – um pecador impenitente que se aproxime da Mesa Eucarística. Na verdade, é ele próprio quem A nega a si mesmo, primeiro pelo seu pecado, depois pela recusa a valer-se dos meios instituídos por Cristo para a obtenção do perdão. O caminho para se aproximar dos Sacramentos é público e bem conhecido por todos. Quem se recusa a percorrê-lo na íntegra é o único responsável se não obtém aquilo a que esse caminho conduz.

Papa Francisco: «Sacramentos não são aparência, mas são a força de Cristo»

Os sacramentos não são aparência, não são ritos, mas são a força de Cristo; é Jesus Cristo presente nos sacramentos. Quando celebramos a Eucaristia é Jesus vivo, que nos une, que nos faz comunidade, que nos faz adorar o Pai. Cada um de nós, de fato, mediante o Batismo, a Confirmação e a Eucaristia foi incorporado a Cristo e unido a toda a comunidade dos crentes. Portanto, se por um lado é a Igreja que “faz” os sacramentos, por outro são os sacramentos que “fazem” a Igreja, edificam-na, gerando novos filhos, agregando-os ao povo santo de Deus, consolidando a sua pertença.

[…]

Por isto é importante comungar, é importante que as crianças sejam batizadas cedo, que sejam crismadas, porque os sacramentos são a presença de Jesus Cristo em nós, uma presença que nos ajuda. É importante, quando nos sentimos pecadores, aproximar-nos do sacramento da Reconciliação. Alguém poderá dizer: “Mas tenho medo, porque o padre vai me repreender”. Não, não vai te repreender, você sabe quem você vai encontrar no sacramento da Reconciliação?  Encontrarás Jesus que te perdoa! É Jesus que nos espera ali; e este é um sacramento que faz crescer toda a Igreja.

Papa Francisco
Catequese
06 de novembro de 2013

A bênção que serve como confissão

Recebi o relato a seguir pela internet. Contou-mo uma pessoa idônea, que tinha um vôo para pegar num destes aeroportos do nosso Brasil. E mais importante que o relato – que, ainda se não fosse vero, seria benissimo trovato – é o que ele ilustra. Após a história, alguns rápidos comentários.

* * *

A fiel católica está no aeroporto um pouco apreensiva. Está prestes a pegar um vôo. Não conseguira se confessar antes da viagem, pois somente na véspera fora avisada de que precisaria viajar; temia que algum acidente aéreo a fizesse morrer sem confissão.

Angustiada, pára a fim de tomar um café. Neste instante, sentam-se três homens na mesa ao lado. Um deles é um bispo, outro um padre; o terceiro ela não consegue identificar. A senhorita dá graças a Deus; crê que a Virgem Maria lhe enviou um sacerdote a fim de que ela pudesse receber o Sacramento da Penitência e viajar tranqüilamente.

Espera que os homens se acomodem. Logo após, aproxima-se e os cumprimenta, expondo a sua situação:

– Sabe, eu estou viajando agora a trabalho e, por conta de alguns afazeres, pelo fato da viagem ter sido de última hora, não consegui me confessar. Gostaria de saber se um dos senhores pode me dar a absolvição.

O bispo olha para ela com estranheza e lhe pergunta, perplexo:

– Você quer uma confissão AQUI?!

Um pouco desconfortável, a senhorita diz que sim:

– Se for possível. Eu estou preocupada, e preciso de uma absolvição.

O bispo declina. Diz que não é possível fazer uma confissão ali no meio do aeroporto. A católica fica sem reação.

Neste momento o outro sacerdote se adianta. Dá uma piscadela para o bispo (como quem diz “deixa isso comigo”) e diz para a fiel:

– Eu te dou uma bênção que serve como confissão.

A senhorita quedou boquiaberta. No momento, não conseguiu fazer nada. Agradeceu – “muito obrigada, padre! Agradeço a intenção. Sua bênção!” – e se retirou. Ao dar as costas, começou a chorar. De tristeza. De vergonha. De preocupação, ao pensar nos fiéis que podem morrer e perder as suas almas sem que consigam se reconciliar com Deus.

Ainda pensou que o padre talvez quisera – com a melhor das boas intenções – dar-lhe uma bênção para a acalmar… no entanto, isto não justificava negar um sacramento. Isto não justificava “mentir por uma boa causa”. Seguiu em direção ao portão de embarque.

Pegou o vôo e, após uma viagem desconfortável, graças a Deus chegou ao seu destino.

* * *

Sério, o que é isso? Sacerdotes negando sacramentos? Mentindo e tentando passar “gato por lebre” a um fiel, propondo-lhe uma bênção quando ele lhe pede uma absolvição sacramental? Quase me lembro daquela passagem do Evangelho onde Nosso Senhor pergunta que pai daria uma pedra ao filho que lhe pede um pão. Desgraçadamente, parece que este pai existe – e é sacerdote do Todo-Poderoso…

Suponhamos que a católica em questão fosse um pouco mais ignorante. Suponhamos que ela aceitasse a tal “bênção” no lugar da Absolvição Sacramental. Em que situação lastimável ela não estaria, com pecados mortais não confessados e sem saber que os precisaria confessar?

Suponhamos mais! Suponhamos que o avião caísse – e que estivessem, no mesmo vôo, a católica, o padre e o bispo. Talvez Nosso Senhor tivesse misericórdia daquela que buscou confessar-se antes de morrer. Com que rigor, no entanto, o Justo Juiz não trataria os ministros Seus que se negaram a absolver os pecados de uma pecadora penitente que viera até eles?

Para quê, afinal de contas, algumas pessoas se fazem sacerdotes? Para quê se fazem ministros do Altíssimo, dispensadores das graças de Deus… se se recusam a administrar os sacramentos?  Sério, o que se passa pela cabeça dessas pessoas? Acaso não entendem que não existe lugar certo para que as almas precisem se reconciliar com Deus? Acaso não têm consciência de que eles, como médicos de almas, são infinitamente mais importantes do que os médicos dos corpos?

Que Deus tenha misericórdia de nós! E nos conceda santos sacerdotes. Porque às vezes nos deparamos com cada coisa que nem acreditamos. Nas quais até mesmo gostaríamos de não acreditar. Não deveria haver ministros assim na Igreja de Deus…! Mysterium Iniquitatis. Senhor, salvai-nos. Sem Vós, perecemos.

O falso padre do Morumbi e Teologia Sacramental

Certas notícias nos deixam perplexos. Foi o caso de um “falso padre”, membro da Igreja Católica Apostólica Brasileira Missionária [p.s.: ver “este formal comunicado”], que durante dois anos atuou em uma das maiores paróquias da região do Morumbi, a de São Pedro e São Paulo, sem que ninguém parecesse se preocupar com isso.

Durante este tempo, o pe. José Francisco de Lima celebrou missas, batizados, confissões e casamentos. A primeira pergunta feita pelos fiéis quando souberem que ele não era padre católico foi a mais natural possível: e quanto à validade dos sacramentos por ele ministrados ao longo destes dois anos?

Em uma matéria veiculada hoje na Folha de São Paulo (aqui, para assinantes), foram feitas as seguintes declarações:

Validade dos sacramentos

“Todos que foram assistidos pelo ministério do falso padre […] no tocante aos sacramentos do batismo, do matrimônio e da própria penitência, podem ficar tranquilos quanto à validade porque nesse caso a boa-fé dos fiéis é contemplada e a igreja, sendo mãe solicita e benigna, supre a eficácia sacramental”, diz a nota [da Diocese de Campo Limpo].

A posição é contrária à defendida pelo padre Geraldo Martins Dias, da área de comunicação da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). Em entrevista à Folha na semana passada, disse que os sacramentos ministrados por falsos padres não têm validade.

Para o especialista em direito canônico e professor da PUC Edson Chagas Pacondes, a igreja tem o direito de suprir os sacramentos pois foi enganada.

Ele explica que não há problemas no batismo, que por regra é ministrado por um padre, mas pode também ser dado por outra pessoa em situações excepcionais. Já no matrimônio, os ministros são os próprios noivos, e o padre é uma testemunha qualificada.

O perdão e a eucaristia é que não poderiam ser ministrados por alguém que não tenha recebido o sacramento da ordem. Teoricamente, não seriam válidos, mas a igreja tem o poder de validá-los, afirma Pacondes.

Em resumo, um verdadeiro festival de informações desencontradas. Como cada Sacramento é um Sacramento, separemos as coisas para melhor as entender.

1. Batismo

O ministro do Batismo é qualquer pessoa – até mesmo um herege ou um ateu – que derrame água na cabeça do batizando e pronuncie corretamente a fórmula “eu te batizo em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”. Portanto, os batismos ministrados pelo pe. José Francisco são, em princípio, válidos sem maiores problemas.

2. Eucaristia

Para a Eucaristia, exige-se um sacerdote ordenado. Não sei se o pe. José Francisco é validamente ordenado; caso ele seja, as missas por ele celebradas foram válidas porém ilícitas e, caso não seja, foram inválidas. No entanto, os fiéis que, em boa fé, assistiram a missa dominical celebrada pelo padre da Igreja Brasileira Missionária não cometeram pecado, mesmo que a missa tenha sido inválida, uma vez que não tinham como adivinhar que o sacerdote que estava naquela paróquia era um impostor. Quanto a isso, também não há maiores problemas.

3. Confissão

Aqui a coisa começa a ficar complicada. Para a validade do Sacramento da Confissão, exige-se não apenas a potestade de perdoar pecados (que possuem apenas os ministros ordenados – os leigos, não) como também a jurisdição para fazê-lo.

Se o pe. José Francisco é sacerdote validamente ordenado (coisa que não sei), as confissões feitas a ele seriam inválidas por ausência de jurisdição. Entretanto, existe um princípio do Direito Canônico de suplência da Igreja – Supplet Ecclesia – que diz que, no erro comum de fato ou de direito, a Igreja supre a falta de jurisdição do sacerdote, tornando válido o Sacramento que, sem isso, não o seria, em benefício do penitente que não tem culpa da confusão toda. Em poucas palavras: em sendo, o falso padre, sacerdote validamente ordenado, e em não sabendo os fiéis que ele não possuía jurisdição, o Sacramento é válido pela aplicação do princípio acima mencionado. Peca o sacerdote por estar fazendo o que não deve, mas os fiéis recebem a graça sacramental.

Se o pe. José Francisco não for sacerdote ordenado, não existe suplência da Igreja e, portanto, as Confissões são inválidas mesmo. Em atenção à ignorância e à boa vontade do fiel, é possível que Deus conceda a Graça do perdão extra-sacramentalmente em casos assim; em todo o caso, sem dúvidas não cometem “pecados adicionais” quem se confessou com o falso padre e, por isso, julgou de boa fé estar confessado e em estado de Graça. Se eu fosse perguntado, recomendaria repetir a(s) confissão(ões) com um sacerdote verdadeiro assim que seja possível.

4. Matrimônio

Para católicos, a validade do Matrimônio depende da forma canônica, ou seja, da presença de uma testemunha qualificada da Igreja. O falso padre não é uma testemunha qualificada e, por isso, os Matrimônios por ele assistidos são todos inválidos, (salvo gravíssimo engano) aqui não cabendo suplência.

Aqui não importa se o falso padre é sacerdote ordenado ou não; não sendo católico, não é testemunha qualificada e, portanto, não pode receber o consentimento dos noivos.

Não pecam os católicos que, de boa fé, casaram-se na presença deste padre, mas a situação precisa ser regularizada. A sanatio in radice é o ato jurídico que, no meu entender, cabe em casos assim. Salvo melhor juízo, é possível até mesmo que o bispo faça uma sanatio geral, para todos os casos (já que são todos iguais) em que há a deficiência da forma canônica por causa da irresponsabilidade e da total falta de respeito do pe. José Francisco. É possível até mesmo que o bispo já a tenha feito, sendo talvez oportuna uma consulta à Diocese para confirmar isto.

Por fim, não poderia deixar de protestar (a) contra a irresponsabilidade da paróquia, que deixou por dois anos um sujeito atender espiritualmente aos fiéis sem ser padre católico; (b) contra o próprio padre, que não teve a menor consideração com a Fé alheia e deliberadamente fingiu ser uma coisa que não era, pouco se importando com a Fé Católica ou os cânones do Direito Canônico da Igreja; e (c) contra as reportagens, que divulgaram informações malucas e desencontradas sobre o assunto, provavelmente lançando os fiéis em mais confusão do que eles já estavam com semelhantes notícias. Rezemos para que casos assim não tornem a se repetir.

Bento XVI, sobre o Munus Sanctificandi

Leiam a Audiência Geral do Papa Bento XVI de ontem, sobre o munus sanctificandi dos sacerdotes (vejam uma versão em português no site da Canção Nova). Está primorosa. A expressão teológica tradicional não se encontra na catequese do Papa, mas é também sobre isto que ele está falando: os Sacramentos agem ex opere operato, i.e., têm a sua eficácia independente da santidade de quem os ministra.

Uma excelente catequese, ensejada pela crise de escândalos que hoje se lança sobre a Igreja. Se, por um lado, os pecados dos sacerdotes (ao contrário do que apregoava Lutero) em nada diminuem a eficácia dos Sacramentos por eles ministrados, por outro lado isso não é justificativa para se negar a “indispensável tensão para a perfeição moral, que deve habitar cada coração autenticamente sacerdotal”. Não é porque os padres não são santos que os Sacramentos por ele ministrados não têm valor; nem é pelo fato de que os Sacramentos continuam tendo valor a despeito dos pecados dos padres que estes não devem ser santos. Por um lado, a salvaguarda dos fiéis e, por outro, a radical exigência da conformidade a Cristo.

E vejam também outros pontos da referida audiência, entre os quais destaco:

É, então, o próprio Cristo que nos torna santos, isto é, que nos atrai na esfera de Deus. Mas como ato de Sua infinita misericórdia, chama alguns a “estar” com ele (cf. Mc 3, 14) e tornarem-se, mediante o Sacramento da Ordem, apesar da pobreza humana, participantes do seu próprio Sacerdócio, ministros desta santificação, dispensadores de seus mistérios, “pontes” de encontro com Ele, da sua mediação entre Deus e os homens e entre os homens e Deus (cf. Presbyterorum Ordinis, 5).

Sobretudo neste nosso tempo, em que, de um lado, parece que a fé vai enfraquecendo-se e, por outro, emerge uma profunda necessidade e uma ampla busca de espiritualidade, é necessário que todo o sacerdote recorde que, na sua missão, o anúncio missionário e o culto e adoração e os sacramentos não estão mais separados e promova uma saudável pastoral sacramental, para formar o Povo de Deus e ajudá-lo a viver plenamente a Liturgia, o culto da Igreja, os Sacramentos como dons gratuitos de Deus, atos livres e eficazes de sua ação salvadora.

Exemplar, acerca do primado do munus sanctificandi e da correta interpretação da pastoral sacramental, é ainda São João Maria Vianney, que, um dia, frente a um homem que dizia não ter fé e desejava discutir com ele, respondeu: “Oh! meu amigo, vos dirigistes muito mal, eu não consigo pensar … mas se tendes necessidade de alguma consolação, dirija-se para lá … (seu dedo apontava para o inexorável banco [do confessionário]) e, acredita-me, em que muitos outros colocaram-se antes de vós, e não tiveram do que se arrepender” (cf. Monnin A., Il Curato d’Ars. Vita di Gian-Battista-Maria Vianney, vol. I, Torino 1870, pp. 163-164).

Longa vida ao Papa!