Na Bahia, “ao mesmo tempo hóstia e acarajé”?!

Hoje pela manhã eu lia, estarrecido, as histórias de que o Arcebispo Primaz do Brasil celebrara ontem (04/12) uma Missa em Salvador onde eram distribuídos, lado-a-lado, acarajés sacrificados a ídolos e o Santíssimo Corpo de Deus sacrificado à Trindade Santa. Mostraram-me o escândalo em pelo menos três lugares distintos: Terra, Bahia em Pauta e A Tarde Online.

Notei que estes textos pareciam ser todos copiados uns dos outros. Embora houvesse uma ou outra diferença, a parte realmente escandalosa era rigorosamente igual em todos os três:

Pela primeira vez, em 30 anos, um arcebispo-primaz do Brasil celebra a missa campal em homenagem a Santa Bárbara. Dom Murilo Krieger presidiu a solenidade no Largo do Pelourinho, onde foi distribuída ao mesmo tempo hóstia e acarajé, que no candomblé é chamado de acará, ou seja, a comida ofertada à Yansã. Ato que emocionou até os que não têm fé.

Não sei a fonte principal. A notícia em “Terra” cita a sra. Maria Olívia Soares do “Bahia em Pauta”; a reportagem do “A Tarde Online” não cita ninguém, e mostra o texto inteiro como se fosse da sra. Maíra Azevedo. Não conheço nenhuma das duas. Em todo caso, parece-me absurdamente improvável que duas fontes independentes tenham conseguido escrever o mesmíssimo período [qual seja, «onde foi distribuída ao mesmo tempo hostia e acarajé, que no Candomblé é chamado de acará, ou seja, a comida ofertada à Iansã»] referindo-se a um fato inusitado destes.

Como assim, um arcebispo – e o primaz da Terra de Santa Cruz! – distribuindo comidas ofertadas a demônios junto com a Santíssima Eucaristia em uma Missa solene?! A história não tem verossimilhança; se verdade fosse, seria o caso (como apontou um amigo) de transferir Sua Excelência para a diocese de Pasárgada com a máxima urgência. Não era possível que isto tivesse acontecido desta maneira. Alguma coisa estava errada.

Um outro amigo de Salvador disse que esta missa [de Santa Bárbara] ocorre publicamente no centro histórico de Salvador há muito tempo, a despeito do Cardeal Majella não a celebrar. Sobre os acarajés distribuídos junto com a comunhão, ele afirmou desconhecer o fato; disse que o que acontecia era que, no Ofertório, entravam em procissão algumas coisas, entre as quais o acarajé. É estranho entrar com comida durante a Santa Missa, mas em princípio não é ilegal; a Instrução Geral do Missal Romano, no seu número 73., determina que, na procissão do Ofertório,

[a]lém do pão e do vinho, são permitidas ofertas em dinheiro e outros dons, destinados aos pobres ou à Igreja, e tanto podem ser trazidos pelos fiéis como recolhidos dentro da Igreja. Estes dons serão dispostos em lugar conveniente, fora da mesa eucarística (IGMR 73).

Em princípio, portanto, a comida ofertada aos pobres pode ser solenemente introduzida na Liturgia e, conquanto não seja colocada sobre o altar, não há desobediência às rubricas aqui. Cabe talvez questionar a possibilidade de confundir o povo com esta prática, ou ainda a conveniência de serem tocadas músicas africanas no Santo Sacrifício da Missa (o que aliás é outra coisa), mas não cabe, a partir disso, falar que Dom Murilo Krieger estava distribuindo promiscuamente a Sagrada Eucaristia junto com o Acará de Iansã. Seria, repito, por demais inacreditável.

Ao encontro desta minha incredulidade veio esta nota da Arquidiocese de São Salvador da Bahia sobre o assunto, dizendo com todas as letras que semelhantes afirmações eram inverídicas:

Expressões como “Dom Murilo Krieger presidiu a solenidade no Largo do Pelourinho, onde foi distribuída ao mesmo tempo hóstia e acarajé, que no Candomblé é chamado de acará, ou seja, a comida ofertada à Iansã” (A Tarde on line e Terra Magazine) não favorecem a grandeza do momento por um simples motivo: faltam com a verdade.

Com o desmentido oficial da Mitra de Salvador, portanto, cabe ao(s) autor(es) da malfadada afirmação sobre a suposta distribuição concomitante da Eucaristia e do Acará apresentarem provas de suas assertivas. Senão, estaremos diante daquilo de que fala a nota: de «falta de conhecimento ou má fé de alguns veículos de comunicação presentes na cobertura da Missa de Santa Bárbara» – coisa que seria profundamente de se lamentar mas que, infelizmente, em se tratando da mídia secular, não seria nada de se duvidar.