Quando a espada precisa vacilar

Alguém me perguntou se eu não iria divulgar aqui os vídeos que o Bernardo Küster vem publicando no Facebook contra a CNBB. Confesso que tenho sentimentos conflitantes diante desta situação. Se por um lado este blog, creio eu, não pode ser jamais acusado de conivência para com as estripulias anti-católicas feitas em nome da Conferência dos Bispos, por outro lado eu não estou certo de que a forma de combate escolhida (e, aqui, não me refiro somente aos vídeos, mas a tudo que se vem fazendo nas redes sociais sob esta bandeira) esteja, por assim dizer, em plena conformidade com os ditames do jus in bello laical.

Veja-se bem: no mérito não cabe senão endossar as críticas, que são substancialmente pertinentes. É coisa grave que estruturas eclesiais sejam cooptadas por um partido político; é coisa grave, muito grave!, que recursos católicos sejam destinados para um fim estranho àquele para o qual Nosso Senhor instituiu a Sua Igreja. São sabidos — há muito tempo — os absurdos em matéria teológica, doutrinária, litúrgica que grassam sob os olhares complacentes de muitos dos nossos pastores. Isso tudo está fora de discussão.

Mas há alguns pontos que merecem discussão — pontos que, se negligenciados, podem contaminar qualquer apostolado. Há, antes de mais nada, uma questão canônica. As Conferências Episcopais, goste-se ou não delas, são uma instituição eclesiástica prevista pelo Direito (CIC, Livro II — “Do povo de Deus”, Parte II — “Da constituição hierárquica da Igreja”, Seção II — “Das Igrejas particulares e dos seus agrupamentos”, Título II, Capítulo IV), gozando assim de algumas prerrogativas que não podem ser atropeladas. Sim, eu sei que elas não são uma “hierarquia intermediária” entre o bispo diocesano e a Sé Apostólica; mas o fato de não pertencerem à constituição sacramental da Igreja não as iguala a um agrupamento privado qualquer — digamos, a um clube de leitura de aposentados. As Conferências são meramente uma instituição de direito eclesiástico, é claro, e nisso estão em um patamar diferente da hierarquia da Igreja instituída por direito divino; mas ser “de direito eclesiástico” (ainda que “meramente”) confere obviamente um status superior do que ser estranha ao direito (i.e., do que não ser de direito at all).

Há, além disso, uma questão, digamos, de comunicação social. Goste-se ou não, a maior parte das pessoas ainda associa a CNBB à Igreja Católica no Brasil; tal associação, via de regra incorreta, não deixa de ter um fundamento de realidade (uma vez que a Conferência foi canonicamente erigida e compreende os bispos do Brasil). Assim, o ataque direto à CNBB provoca por vezes reações passionais, fazendo com que as pessoas se coloquem irrefletidamente contra aquele que — na percepção delas — está “atacando a Igreja Católica”.

O resultado disso é que muitos, no afã (instintivo) de defender uma instituição pela qual nutrem admiração e respeito, terminam sendo encurralados a defender barbaridades. O dinheiro das coletas da Campanha da Fraternidade passou por uma Organização Não-Governamental que defende o aborto! Um grupo católico teve que celebrar Missa em um anfiteatro porque, na ocasião, havia um ídolo pagão sobre o altar da capela de um seminário! Tudo isso é absurdo e escandaloso, é um ultraje a Nosso Senhor e um nódoa na face da Igreja. Isso clama aos Céus vingança e não existe uma única pessoa de boa-fé que pudesse em consciência defender semelhantes barbaridades; no entanto, como é para “defender a Igreja” contra os ataques do Facebook, muitas pessoas terminam tomando o lado “da CNBB” e indiretamente legitimando (ou “tirando por menos”) esses escândalos.

Essas coisas não deveriam, absolutamente, ser apresentadas como sendo “da CNBB”. Primeiro porque a rigor elas não são mesmo (nos termos do CIC, Cân. 454, §4º, in finis: «nem a Conferência nem o seu presidente podem agir em nome de todos os Bispos a não ser que todos e cada um hajam dado o consentimento»), segundo e mais importante porque associar-lhes à Igreja lhes confere uma legitimação a que não fazem jus. Por exemplo, um grupo de seminaristas pode consumir drogas nos seus aposentos, ou um pároco pode desviar um pedaço do dízimo para seu uso particular: nestes casos, é uma impropriedade contraproducente falar em “festinha do seminário” ou “corrupção paroquial”.

Da mesma forma que o uso de drogas por seminaristas não é uma prática “do seminário”, um encontro político-partidário com discursos de bispos não é um evento “da Conferência Episcopal”. É, aliás, muito melhor que uma e outra prática sejam designadas como as perversões de grupelhos que são, e não como se fossem (ou pudessem ser) uma espécie de orientação institucional do seminário ou da Conferência.

E há por fim uma outra questão. É que não se ataca o clero da mesma forma que se ataca um leigo. Há uma diferença essencial, ontológica, entre a Igreja docente e a Igreja discente, e ainda que os pastores não estejam conduzindo as almas (ou, pior, ainda que as estejam dispersando), eles não perdem a condição de pastores — exatamente porque o sacerdócio ministerial é uma elevação da natureza e não uma função, é uma coisa que se é e não algo que se faz. O melhor dos leigos está ainda hierarquicamente abaixo do pior dos clérigos, e isso não se pode esquecer jamais. É necessário um cuidado redobrado, tresdobrado, ao se criticar o clero; é exigida uma moderação, uma diplomacia muito difíceis de serem adequadamente sustentadas no calor da contenda.

Isso não é respeito humano; é aliás o contrário de respeito humano, é respeito divino. É a Fé na realidade dos Sacramentos que nos obriga a tratar mesmo os sucessores de Judas como se fossem o próprio Cristo. O olhar humano pode até nos mostrar um homem em muitos aspectos pior do que nós; o olhar espiritual nos revela Cristo-Sacerdote, e esse dado da Fé não pode deixar de ser levado em consideração por mais justas que sejam as nossas batalhas. No ardor da refrega, ao vislumbrar um báculo ou uma estola a mão do cruzado precisa vacilar; é aliás precisamente isso o que o torna um cruzado e não um mercenário. O combate ao erro precisa conviver com o respeito devido ao clero. Isso precisa estar enraizado no mais profundo de nossas almas; sem isso, as batalhas que ganharmos não ajudarão a Igreja a vencer a guerra.

Nem só de zelo são feitos os santos

Algumas pessoas já sabem, mas acho que não mencionei aqui o caso de dois periodistas italianos que foram demitidos de uma rádio (católica) após terem escrito um artigo em que teciam duras críticas ao Papa Francisco. A notícia (bem como o artigo escrito por Alessandro Gnocchi e Mario Palmaro) pode ser lida em espanhol aqui.

Os dois italianos não são um caso isolado. Ainda outro dia, El País – sim, El País! – publicou uma dura carta de uma senhora mexicana ao Papa, cujo conteúdo era muito semelhante ao deste artigo dos dois ex-radialistas da Rádio Maria. Compadeci-me com a perplejidad da Lucrecia Rego de Planas. Com o que não pude concordar foi com a divulgação pública da carta. Que bem imaginam estas pessoas fazerem ao disseminar a desconfiança para com o Vigário de Cristo?

O «escândalo dos pequeninos» não se encontra em meia dúzia de frases toscas que a mídia secular lê sob sua própria ótica desfocada. O escândalo, o escândalo grande e verdadeiro, encontra-se em católicos esbravejando publicamente contra o Romano Pontífice. Coisa mais anti-tradicional do que isso não existe. A Igreja não é uma democracia na qual cada um dos fiéis é poder constituinte originário. A mentalidade de se fazer abaixo-assinados e lobby político para provocar mudanças nas esferas superiores de poder simplesmente não é católica.

Não interessa aqui o quão «justas» estes católicos julguem as reivindicações que fazem. Interessa também e principalmente o meio pelo qual elas são feitas. Afinal de contas, ao contrário do que ensinava Maquiavel, os fins não justificam os meios. De nada adianta alguém fazer a melhor coisa do mundo através de expedientes francamente deploráveis.

Sim, Santa Catarina de Siena atacou duramente o Papa. Mas ela dirigiu os seus ataques ao Papa. O sujeito que se senta na internet para vomitar impropérios contra o Romano Pontífice em nada se assemelha à Virgem de Siena, simplesmente porque os ataques despejados nos meios de comunicação em massa dirigem-se primariamente às massas, e não aos indivíduos. Um equivalente medieval desse péssimo hábito contemporâneo seria se, durante o exílio de Avignon, os católicos distribuíssem nas vilas e cidades panfletos mal-educados atacando a pusilanimidade de Gregório XI. É bastante claro que Santa Catarina não fez jamais nada sequer minimamente parecido com isso. Nunca ninguém fez nada parecido com isso.

Aliás, corrijo-me: já houve, sim, quem fizesse algo parecido com isso. Recordo-me de um nome: Savonarola. O pregador dominicano passou à história por despejar do púlpito os mais virulentos ataques contra a Cúria Romana e o Papa… Alexandre VI. Ora, perto de Alexandre VI, qualquer dos Papas do século XX pode pleitear a sua conceição imaculada!

Savonarola é porventura santo? Por acaso a Igreja o elegeu como modelo de virtudes a servir de exemplo para os fiéis católicos? Muito pelo contrário. Foi censurado diversas vezes por Roma, excomungado por fim, e morreu na forca. Sobre este interessante personagem D. Estêvão Bettencourt escreveu o seguinte:

Objetivamente falando, o procedimento do pregador florentino merece reprovação. Movido pela obsessão de pretensa vocação profética, excedeu os limites da reverência e da obediência na tarefa que ele se propôs, de repreender não somente as multidões populares, mas também as autoridades civis e religiosas. Não se poderia legitimar a sua insubmissão ao Papa Alexandre VI, que, apesar de graves deficiências, era o legítimo Pontífice (a propósito de Alexandre VI veja-se “P.R.” 4/1958, qu. 11). Acreditando arbitrariamente em sinais extraordinários, o pregador deixou-se alucinar e distanciou-se da realidade.

E sobre ele o velho beneditino ainda acrescenta estas palavras que deveriam ser gravadas em pedra e meditadas sete vezes por dia por todos os que se arvoram juízes dos Sumos Pontífices: «Infelizmente porém, não percebeu (ao menos, em sua conduta prática) que a fidelidade a Cristo e [à] Igreja implica necessariamente fidelidade ao Papa, mesmo a um Alexandre VI».

Diante de tudo isso, o que dizer de dois jornalistas italianos que jogam na imprensa um artigo intitulado «Questo Papa non ci piace»? Acaso se pode criticar o padre que prontamente os dispensou dos seus serviços a uma Rádio Católica? Se vivessem em fins do século XV, acontecer-lhes-ia coisa muito pior. A história nos ensina que nem só de zelo são feitos os santos. Os detratores do Papa Francisco deveriam se olhar mais atentamente no espelho: talvez o negro que lá vislumbrem não seja o do hábito de Santa Catarina. Cuidem para que não seja, ao contrário, um prenúncio do triste fim de Savonarola.