Leonardo Boff e a Igreja, Casta Meretrix

Após cumprir a minha quota diária de penitência quaresmal com a leitura deste texto do Leonardo Boff (aliás, cujo português sofrível revela uma senilidade ainda maior do que a esperada mesmo para o Boff, que já há muito tempo parece viver somente de defender idéias patéticas), quero comentar uma única afirmação do manancial de estultícies em que se transformou o ex-franciscano. Refiro-me à seguinte passagem:

Sempre se diz que a Igreja é “santa e pecadora” e deve ser “sempre reformada”. Mas não é o que ocorreu durante séculos nem após o explícito desejo do Concílio Vaticano II e do atual Papa Bento XVI.

Antes de mais nada, não é verdade que “sempre” (!) se diz que a Igreja é santa e pecadora. Como eu já tive a oportunidade de dizer aqui há alguns anos, isso nunca foi dito a não ser uma única vez por João Paulo II, em um discurso de chegada a Fátima por ocasião de uma de suas viagens apostólicas. E mais nunca. A despeito da expressão ter sido empregada pelo falecido Pontífice no seu sentido católico (como eu também já expliquei aqui), isto não impediu que uma miríade de maus católicos (somados a gente que nem católico era) a repetisse ad nauseam para significar um conceito totalmente herético de que a Igreja, enquanto Instituição, pode ser sujeito do pecado, de que se podem atribuir pecados à Igreja Católica considerada em Si.

Contra isto, basta lembrar que tal concepção contraria frontalmente o Credo Apostólico que rezamos todos os dias, por meio do qual professamos a nossa fé «na Santa Igreja Católica». Pecadores somos nós, que fazemos parte da Igreja, e que (vale frisar) o fazemos cada vez menos quanto mais pecamos. O nosso pecado afasta-nos de Cristo, afasta-nos da Igreja. Embora obviamente congregue pecadores no Seu seio, não se pode colocar a Igreja como autora dos pecados que os Seus filhos só cometem por A desobedecerem. É nos Seus membros pecadores (e somente nos Seus membros pecadores) que se pode dizer que a Igreja necessita de purificação (cf. Lumen Gentium, 8).

Em apoio à sua tese, o Leonardo Boff saca da cartola uma suposta «longa tradição teológica que se refere à Igreja como casta meretriz» (Casta Meretrix). E cita o Urs Von Balthasar. A quem interessar possa, o pe. Paulo Ricardo também abordou este tema recentemente. Quanto a mim, confesso nunca ter lido o citado livro do Von Balthasar; mas já li o texto original de Santo Ambrósio (até evidência em contrário, único uso patrístico da expressão casta meretrix) onde ele usa esta expressão para se referir à Igreja, e ele não tem absolutamente nada a ver com o sentido de “santa e pecadora” usado e abusado nos dias de hoje!

Senão vejamos; Santo Ambrósio diz o seguinte (tradução minha):

(…) esta Rahab, mulher pública enquanto figura [da Igreja], indicando o mistério da Igreja, que não recusa o comércio de muitos amantes e, quanto ao resto, é mais casta do que ela; virgem sem mancha e sem ruga (Ef. 5, 27), intacta pela pureza, plebéia pelo amor, casta mulher pública [casta meretrix], viúva estéril, virgem fecunda: mulher pública [meretrix], pois a Ela, que não tem mancha de pecado, vêm numerosos amantes atraídos por Seu amor (pois o que se une a uma mulher pública forma um só corpo com ela, 1Cor 6, 16); viúva estéril, que não sabe ser mãe na ausência do esposo – e o esposo veio e Ela gerou este povo e esta multidão -; virgem fecunda, que gerou esta multidão com os frutos do amor, mas sem experimentar o prazer.

Que surpresa: Santo Ambrósio não usa a figura da meretriz para dizer que a Igreja é pecadora, mas sim que é Ela é desejada pelos homens! Não A chama de mulher pública para censurar-Lhe de falta alguma, mas Lhe aplica a metáfora para dizer que Ela não Se recusa a ninguém! E ainda faz questão de entremear este seu discurso com as expressões clássicas que se referem à santidade da Esposa de Cristoimmaculata uirgo, sine ruga, pudore integra, sine conluuione delicti.

Como alguém pode, em consciência, evocar esta imagem para dizer que a Igreja é “Santa e Pecadora”? Como alguém ousa, sem corar de vergonha, deduzir dessa passagem que a Igreja «é uma meretriz que toda noite se entrega à prostituição; é casta porque Cristo, cada manhã se compadece dela, a lava e a ama», como fez o nosso decrépito ex-franciscano? Como, enfim, é possível honestamente sustentar que os Padres atribuíam à Igreja santidade e pecado quando A chamavam de casta meretrix?

Que ninguém se perturbe dando ouvidos a um picareta como o Leonardo Boff, pois já se provou incontáveis vezes que ele não sabe o que diz e não merece ser levado a sério. E, ao invés de apontar o dedo para a Igreja Católica, que cada um de nós nos preocupemos com os nossos próprios pecados, suficientemente reais e bastante vergonhosos. É por estes pecados que a Esposa Imaculada de Cristo faz continuamente penitência em nosso favor, e é por nossa causa que Ela é tanto acusada e perseguida injustamente.

Igreja Santa e Pecadora?

[Traduzo trecho do Angelus do Papa Bento XVI de ontem. Lembrei-me da malfadada expressão “Igreja Santa e Pecadora” que encontramos amiúde. Desnecessário dizer que o Papa não a utiliza. A idéia por ele retomada é a da Lumen Gentium, capítulo 8: “a Igreja, contendo pecadores no seu próprio seio, simultaneamente santa e sempre necessitada de purificação, exercita continuamente a penitência e a renovação”.

A Igreja conter pecadores no Seu seio é diferente da Igreja ser pecadora; a primeira expressão é uma obviedade e, a segunda, é herética. É no primeiro sentido que deve ser entendido tudo quanto vem de Roma. São os modernistas que abusam do termo – infeliz, reconheçamos – para “dessacralizar” a Igreja e negar o artigo do Credo segundo o qual a Igreja é Santa.

Conheço uma única utilização da expressão “Igreja Santa e Pecadora” por um Papa: foi João Paulo II em 1982. É claro que o Papa a aplica no sentido católico. No entanto, desde então – talvez por causa da confusão que ela causou -, nunca mais foi utilizada…]

Caros amigos, a mais bela flor brotada da palavra de Deus é a Virgem Maria. Ela é as primícias da Igreja, jardim de Deus sobre a terra. Mas, enquanto Maria é a Imaculada – assim a celebraremos depois de amanhã [terça-feira] -, a Igreja tem continuamente necessidade de Se purificar, porque o pecado prejudica [insidia] todos os Seus membros. Na Igreja, está sempre em ato uma luta entre o deserto e o jardim, entre o pecado que torna a terra árida [inaridisce] e a Graça que a irriga para que produza frutos abundantes de santidade. Rezemos, assim, à Mãe do Senhor, a fim de que Ela nos ajude, neste tempo do Advento, a “endireitar” [raddrizzare] as nossas veredas, deixando-nos guiar pela palavra de Deus.

Bento XVI
Angelus, 6 dicembre 2009