Deus e o mal

Já conhecia a história abaixo, mas não em vídeo. E também nunca a tinha visto atribuída a Albert Einstein. Em todo o caso, ainda que seja apócrifa, é uma mensagem perfeitamente correta. É a conclusão à qual chegou Santo Agostinho, contra os maniqueus: só existe Deus, sumamente bom. O que chamamos de “mal” é uma ausência – de perfeição, de ser, de ordem, em uma palavra, de Deus.

“Mãe, obrigado por tuas lágrimas!”

Fonte: “Virtudes e Valores”, Sem. Jauri Strieder, LC (recebido por email)

Mãe, Obrigado Pelas Tuas Lágrimas

Mãe: uma palavra breve, porém tão longa de sentir. Muitos escritores e poetas dedicaram inúmeras páginas de ternura, de reconhecimento e de gratidão filial. Mãe move palavras.

As palavras movem, mas os exemplos arrastam, diz um provérbio. Tendo isso em conta, prefiro economizar palavras e falar de um exemplo: santa Mônica, a mãe de santo Agostinho.

Santa Mônica viveu de modo exemplar a sua missão materna, ajudando o filho Agostinho a descobrir a beleza da fé cristã. Foi uma vida de oração e de lágrimas, mas no final coroada pela conversão do filho e pela santidade.

Não sei quantas mães encontram nela um estímulo ou um reflexo da própria vida, mas serão muitos os que se identificam com o filho Agostinho. Atraído pela beleza terrena e percorrendo caminhos equivocados na adolescência, ele causou não pouca dor à sua mãe.

Agostinho percorreu um caminho semelhante ao nosso: esperanças, amores, sofrimentos… Ele não caiu do cavalo como Saulo para dar de cara com o amor de Deus. Pelo contrário, foi um longo trajeto de conversão, que foi possível graças ao vestígio que nunca se apagou do seu coração: o amor a Cristo infundido na infância, traduzido com décadas de oração e de lágrimas da sua mãe.

Hoje, é difícil consolar mães que lamentam a falta de prática religiosa dos filhos. Inclusive há filhos que sentem nostalgia da fé recebida. Um pai de família me comentou com grande pesar que, cada vez que visita a sua mãe, volta para casa com crise; ele constata a piedade profunda da sua mãe, valoriza a fé que dela herdou, mas lamenta o não tê-la transmitido aos seus filhos.

No dia das mães do ano 2010, o eco de santa Mônica transmite esperança e otimismo. Com seu exemplo de mãe, mãe de oração e de lágrimas. O segredo das lágrimas de santa Mônica consistia em que eram lágrimas diante de Deus. E quão fecundas!

Mãe, com amor e gratidão, quero te dizer com Agostinho: “Obrigado pela tua maneira feminina de ser, tua fé de varão, tua paz, teu amor materno e tua fé” (Confissões 9,4,8). E finalmente, obrigado pelas tuas lágrimas.

Vença o mal com o bem!


* Para entrar em contato com o autor do artigo clique aqui

Non praevalebunt – por um protestante

O comentário abaixo foi feito na Folha Online, na reportagem sobre o encontro do Papa com as vítimas de abusos sexuais em Malta. Interessante a conclusão à qual chega o sujeito – honesta, tremendamente honesta, questionando até mesmo a coerência interna dos próprios preconceitos que acumulou ao longo dos anos de protestantismo.

Deus não permitiria um mal se, dele, não pudesse tirar um bem ainda maior, como ensina Santo Agostinho. Queira Deus, portanto, que os escândalos que hoje obscurecem a figura da Esposa do Senhor possam redundar em bem para toda a Igreja: em penitência pelos nossos pecados, na purificação do clero, e – quem sabe! – na graça de fazer as almas entenderem o que significa “as portas do Inferno não prevalecerão”.

Eis o comentário do sr. “Paulo de Tarso Gantus”. Que a Virgem Santíssima interceda por ele e pelos demais protestantes que vivem longe da Igreja de Nosso Senhor:

Sou evangélico mas to pensando uma coisa que eu nunca havia pensado. Jesus disse que as portas do inferno nào prevaleceriam sobre ela a igreja. Depois de tudo o que aconteceu com essa religião e de seus papas serem loucos alucinados dementes inquisitores pedófilos vivendo na orgia e tudo mais o que ouço e vi escrito aqui e até hoje não acabou tem alguma coisa errada ou certa com ela.

Será que ela é a verdadeira igreja de Cristo que as portas do inferno não prevalecerão sobre ela?

honestamente nunca me interessei pelo catolicismo mas agora vou procurar saber melhor e saber porque essa igreja praticando todas essas coisas e tendo mais de 1 bilhão de fieis, segundo meu pastor, consegue ter 2ooo mil anos.

Meu Deus será que to na religião errada?

A purificação da Igreja

Perguntaram, aqui no Deus lo Vult!, sobre a Igreja “sempre necessitada de purificação” da qual fala a Lumen Gentium. Eu já havia dito, no próprio post, que é necessário distinguir a Igreja em Si dos membros da Igreja. Falar que a Igreja precisa de purificação, portanto, só pode ser entendido como uma metonímia, onde “Igreja” está significando “os membros da Igreja”. Não vejo como possa ser possível um outro sentido para a expressão que preserve a ortodoxia.

Que a Igreja é Santa e Santificante em Si, julgo ser óbvio, e não vou me deter nesta demonstração. No entanto, a Igreja é uma sociedade, é composta por membros, dos quais nem todos são santos. Pode-se perfeitamente dizer que a Igreja é Santa não somente em Si, mas também em Seus membros santos. É neste sentido, portanto, e somente neste, que se pode dizer que a Igreja precisa de purificação: em Seus membros pecadores.

O princípio da não-contradição não diz, simplesmente, que uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo. Diz que uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo sob um mesmo aspecto, e isto faz toda a diferença. Não é sob o mesmo aspecto que a Igreja é Santa e “precisa de purificação”. A Igreja é Santa em Si. Precisa de purificação em Seus membros pecadores. São modos distintos. Não apenas não há contradição, como isto é um fato incontestável: os membros pecadores da Igreja fazem parte da Igreja e precisam de purificação.

Podem questionar a oportunidade da expressão. Mas é uma discussão infrutífera: não faz diferença, pois o ensino do Magistério deve ser acolhido no seu sentido católico, e não repudiado até que seja expresso da forma que julgarmos melhor. O que a assistência do Espírito Santo garante é a inexistência de erros, e não a mais perfeita formulação das Verdades. Posso concordar facilmente que o texto conciliar poderia ser escrito melhor; não posso concordar, de nenhuma maneira, que isso seja motivo para um leigo descartá-lo.

Até porque não há “invenção” alguma ao dizer que a Igreja precisa de purificação. Os seguintes trechos – os grifos são meus – são dos dois maiores doutores da Igreja, Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino, e estão ipsis litteris no “Memória e Reconciliação” da Comissão Teológica Internacional. Antes que mo digam, eu sei que a CTI não é Magistério. Mas não estou argumentando com textos da CTI, e sim com textos de dois doutores da Igreja citados pela CTI. Ei-los:

Observa St. Agostinho contra os pelagianos: “A Igreja no seu conjunto afirma: Perdoai-nos os nossos pecados! Ela, portanto, tem manchas e rugas. Mas, mediante a confissão as rugas são removidas, mediante a confissão as manchas são lavadas. A Igreja está em oração para ser purificada pela confissão, e enquanto os homens viverem na terra isto será assim” (25), E S. Tomás de Aquino precisa que a plenitude da santidade pertence ao tempo escatológico, enquanto a Igreja peregrinante não se deve enganar a si mesma afirmando ser sem pecado: “Que a Igreja seja gloriosa, sem mácula nem ruga, é o objectivo final para o qual tendemos em virtude da paixão de Cristo. Isto apenas existirá, no entanto, na pátria eterna, e não já na peregrinação; aqui […] enganar-nos-íamos se disséssemos não ter qualquer pecado” (26).

[…]

25. St. AGOSTINHO, Sermo 181,5,7: PL 38, 982.

26. S. TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologica III q.8 a.3 ad 2.

Memória e Reconciliação, 3.3

Em outro sentido, portanto, não há que se compreender o texto do Vaticano II. Que ninguém o faça; nem para pregar uma doutrina diferente da Doutrina Católica, e nem para instigar a desobediência no seio da Igreja e arrogar-se o direito de julgar o Magistério.

Cristo, Rei dos reis

christusrex
Fonte: "A História dos Santos" (clique na figura)

Ergo rex es tu?
[Evangelium secundum Ioannem XVIII, 37]

Sim. Nosso Senhor é Rei. Aquele de quem zombaram e escarneceram, Aquele que foi entregue aos judeus porque o Seu Reino não era deste mundo, do alto do Calvário revestiu-Se de majestade. Rei dos Judeus, simplesmente, como Lhe chamaram? Não! Rei dos reis, e Senhor dos senhores. Rei do Universo.

Como pode Cristo ser Rei do Universo, se Ele disse a Pilatos que o Seu Reino não era deste mundo? Não é deste mundo, explica Santo Agostinho na catena aurea, porque não provém da raça degenerada de Adão. No entanto, está neste mundo, porque “foi feito um Reino, [que] já não [é] deste mundo, de todo aquele que foi regenerado em Cristo”. Apesar de não ser deste mundo, é neste mundo que o Reino de Cristo deve resplandecer. Nosso Senhor não disse, de Seu Reino, que “não está aqui, porque o Seu Reino está aqui até o fim dos tempos (…) não é daqui; no entanto, peregrina neste mundo”.

O Reino de Cristo está neste mundo, e é neste mundo que Nosso Senhor deve reinar. O Papa Pio XI, quando instituiu a festa de Cristo Rei na encíclica Quas Primas, disse que a realeza de Cristo contém uma tríplice potestade: no campo espiritual, no campo temporal, e no campo dos indivíduos e da sociedade. Nosso Senhor não é meramente um rei espiritual: o Seu império inclui também as realidades temporais, os indivíduos e as sociedades. Negar-Lhe estas é negar-Lhe a realeza! Escrevia Pio XI em 1925: “Não se recusem, portanto, os governantes das nações a darem por si mesmos e pelo povo demonstrações públicas de veneração e de obediência ao Império de Cristo, se querem conservar incólume sua autoridade e fazer a felicidade e a fortuna de sua pátria” – o quanto são atuais estas exortações!

Mas o Vigário de Cristo não foi ouvido, e a realeza de Nosso Senhor não é reconhecida. No entanto, Ele é rei! Já uma vez na História, diante de Pilatos, não Lhe reconheceram a Majestade; ao contrário, zombaram d’Ele. Hoje, Nosso Senhor está de novo no pretório; hoje, mais uma vez, zombam e escarnecem d’Ele. No entanto – iterum dico – Ele é Rei. Esforcemo-nos para que Nosso Senhor reine. Em nossas vidas, primeiramente, e daí para a sociedade. Esforcemo-nos para expandir o reinado de Nosso Senhor, a fim de oferecer-Lhe o que Lhe pertence por direito. Cantemos, do fundo da alma, o Christus vincit, Christus regnat, Christus imperat! – e rezemos para que esta verdade resplandeça diante dos povos e nações. Há de resplandecer. Sim, o nosso Deus é Rei. Alegremo-nos com isso, e esforcemo-nos por sermos bons súditos. Que Ele reine. Heri, Hodie et Semper.

Um grande e divino bordado

Deus é infinitamente bom e todas as suas obras são boas. No entanto, ninguém escapa à experiência do sofrimento, dos males da natureza – que aparecem como ligados aos limites próprios das criaturas –, e sobretudo à questão do mal moral. Donde vem o mal? «Quaerebam unde malum et non erat exitus – Procurava a origem do mal e não encontrava solução», diz Santo Agostinho. A sua própria busca dolorosa só encontrará saída na conversão ao Deus vivo. Porque «o mistério da iniquidade» (2 Ts 2, 7) só se esclarece à luz do «mistério da piedade» (1 Tm 3, 16). A revelação do amor divino em Cristo manifestou, ao mesmo tempo, a extensão do mal e a superabundância da graça. Devemos, portanto, abordar a questão da origem do mal, fixando o olhar da nossa fé n’Aquele que é o seu único vencedor.
[Catecismo da Igreja Católica, §385]

O problema do mal é – reconheçamo-lo francamente – um dos mais espinhosos, se não o mais espinhoso, de toda a existência humana. Porque o sofrimento faz parte do mundo no qual vivemos, e nós só a muito custo – e só às vezes! – conseguimos enxergar algum sentido nele.

Há imagens diversas que podem ser usadas para explicá-lo. A frase de Santo Agostinho (não sei a referência) é das mais clássicas: Deus não permitiria o mal se, dele, não pudesse tirar um bem ainda maior. E esta frase tem o seu ainda mais clássico exemplo na Crucificação, nos sofrimentos do Calvário, no lenho da Cruz do qual pendeu a salvação do mundo: do sofrimento do Seu Filho, Deus fez Redenção. De um grande mal, Deus fez um bem inimaginável. A partir de então, todo sofrimento pode ser redentor:  “todos os homens, com o seu sofrimento, se podem tornar também participantes do sofrimento redentor de Cristo” (Salvifici Doloris, 19).

No entanto, mesmo de posse desta verdade, continuamos muitas vezes – arriscar-me-ia a dizer as mais das vezes – sem ver exatamente como o nosso sofrimento concreto (ou o sofrimento das pessoas que nos são caras) entra(m) na economia da salvação. Há outra imagem da qual gosto (que não faz parte da Tradição da Igreja, até onde me conste): a do menino e o bordado. A mãe sentada na poltrona, o garoto no chão aos seus pés, a mãe bordando. “Mãe, o que são estes fios?” – pergunta o garoto. “Espera, que já te mostro” – responde a mãe. “Mas, mãe, está tudo bagunçado, os fiapos estão soltos, as cores misturadas; o que a senhora está fazendo?” – insiste o garoto. E a mãe insiste para que ele espere. Quando termina, a mãe suspende o menino nos braços e, pondo-o no colo, mostra o bordado visto de cima, onde as figuras desenhadas aparecem com nitidez e beleza, dando sentido ao emaranhado de fios que o garoto via do chão. E assim a nossa vida: o bordado de nossas dores só pode ser visto com clareza de outra perspectiva, “de cima”, do Céu, a partir dos braços do Altíssimo.

Mas não é fácil. Claro que não é fácil, porque não há limpidez no problema do mal, só há claro-escuro. Impacientamo-nos com facilidade, murmuramos com excessiva freqüência, às vezes desesperamo-nos. “O mal não é lógico” – disse certa vez o Papa Bento XVI. “Só Deus e o bem são lógicos, são luz. O mal permanece misterioso. Apresentámo-lo com grandes imagens, como faz o capítulo 3 do Génesis, com aquela visão das duas árvores, da serpente, do homem pecador. Uma grande imagem que nos faz adivinhar, mas não pode explicar quanto é em si mesmo ilógico. Podemos adivinhar, não explicar; nem sequer o podemos contar como um facto ao lado do outro, porque é uma realidade mais profunda. Permanece um mistério de escuridão, de trevas”.

“Mas” – prossegue o Papa –  “acrescenta-se imediatamente um mistério de luz. O mal vem de uma fonte subordinada. Deus com a sua luz é mais forte. E por isso o mal pode ser superado”. É uma paráfrase do parágrafo do Catecismo em epígrafe: devemos “abordar a questão da origem do mal, fixando o olhar da nossa fé n’Aquele que é o seu único vencedor”. A única resposta ao problema do mal é sobrenatural, só nos é dada pela Fé. Sem ela, o homem fica perdido na ilogicidade do mal. E mais: se, mesmo com a Fé, é-nos fácil ceder à revolta e ao desespero, quanto mais sem ela!

Por fim, conclui o Papa dizendo que “o homem não é só curável, [como] de facto está curado. Deus introduziu a cura. Entrou pessoalmente na história. Opôs à fonte permanente do mal uma fonte de bem puro. Cristo crucificado e ressuscitado, novo Adão, opõe ao rio impuro do mal um rio de luz. E este rio está presente na história:  vejamos os santos, os grandes santos mas também os santos humildes, os simples fiéis. Vemos que o rio de luz que provém de Cristo está presente, é forte”. É a nossa esperança, à qual devemos nos aferrar com firmeza, confiando nas promessas d’Aquele que é a Verdade, ainda que não vejamos com clareza, e tenhamos que seguir tateando. Se temos que sofrer, que seja junto à Cruz de Cristo; se temos que conviver com a dor, que seja em união ao Homem das Dores. Não é possível que sejam inúteis os sofrimentos do mundo – isso repugna à razão. Não quero que sejam inúteis. Quero um grande e divino bordado – ainda que eu só o veja quando meu corpo for lançado à terra -, onde sejam louvadas as grandezas do Altíssimo. Domine, exaudi nos!

Santo Agostinho e o mal

Cap. 37 – Do mal dos pecadores Deus extrai um bem

Por conseguinte, se todas as naturezas conservassem o modo, a espécie e a ordem que lhes são próprios, não haveria o mal; mas, se alguém quer abusar desses bens, nem por isso vencerá a vontade de Deus, o qual sabe como fazer entrar, de maneira justa, os pecadores na ordem universal, de sorte que, se eles pela perversidade da sua vontade abusarem dos bens da natureza, Ele, pela justiça do seu poder, extrairá bens dos males, ordenando retamente com penas os que se desordenaram pelos pecados.

Cap.38 – O fogo eterno, que atormenta os maus, não é um mal

E eis que nem sequer o próprio fogo eterno, que atormentará os réprobos, é em si uma natureza má, porque também tem o seu modo, a sua espécie e a sua ordem, e não foi corrompido por nenhuma iniqüidade. Mas o tormento é um mal para os condenados, que mereceram pelos seus pecados. A própria luz atormenta os que têm olhos enfermos, sem todavia ser uma natureza má.

Cap. 39 – Diz-se que o fogo é eterno não porque o seja como Deus, mas porque não tem fim.

O fogo é eterno, mas não do mesmo modo como o é Deus; pois, conquanto não acabe nunca, teve porém princípio, e Deus não o teve. Além do mais, a sua natureza está sujeita à mudança, apesar de ter sido destinado a servir de castigo perpétuo para os pecadores. A verdadeira eternidade é a verdadeira imortalidade, ou seja, a suprema imutabilidade, que é atributo exclusivo de Deus, o qual é absolutamente imutável.

Uma coisa é não mudar, apesar da possibilidade de mudança, e outra, muito diferente, é não poder mudar. Diz-se, assim, que um homem é bom, conquanto não como a bondade de Deus, de Quem se disse: “ninguém é bom senão Deus só” (Mc X, 18); e diz-se que a nossa alma é imortal, mas não como o é Deus, de Quem se disse: “é o único que possui a imortalidade” (1Tm VI, 16); e diz-se que o homem é sábio, mas não como o é Deus, de Quem se disse: “a Deus, que é só o sábio” (Rm XVI, 27) – e também se diz que o fogo do inferno é eterno, mas não como o é Deus, cuja imortalidade é a verdadeira eternidade.

Cap. 40 – Não se pode causar dano a Deus, nem a nenhuma criatura sem a justa ordenação de Deus

Assim sendo, a Fé Católica, e a Sã Doutrina, e a Verdade bem compreendida, proclamam que ninguém pode causar dano à natureza de Deus, e que a natureza de Deus não aflige mal injusto a ninguém, e que Ele não permite que nenhuma injustiça fique sem castigo. “Aquele, pois, que cometer injustiça”, diz o Apóstolo, “receberá segundo o que fez injustamente: e não há acepção de pessoas diante de Deus” (Col III, 25).

Santo Agostinho, “A Natureza do Bem”, pp. 49-53. 2ª Edição, Sétimo Selo, Rio de Janeiro, 2006

Encadeando os argumentos

Comecemos pelo estudo do orgulho. Um fato que para logo se apresenta no vestíbulo das nossas indagações é o da sua freqüência na incredulidade. Quase todos os homens notáveis pela inteligência e hostis à fé foram também notoriamente soberbos; uniram a uma estima de si, não raro superior à própria valia, um desprezo altivo dos merecimentos alheios.
[Pe. Leonel Franca, “A Psicologia da Fé & O Problema de Deus”, pág. 121. Ed. PUC-Rio/Loyola, Rio de Janeiro, 2001]

Já mais de uma vez fui questionado quando, no meio de algum debate sobre religião, respondi simplesmente, como motivo para justificar determinado ponto, que “a Igreja disse”. Ora – poderia dizer alguém -, dizer “a Igreja disse” não é um argumento; é antes uma falácia, argumentum ad verecundiam, pois o simples fato de uma autoridade ter dito alguma coisa não faz com que a coisa dita seja verdadeira.

O argumento cristão definitivo, a instância última para além da qual não é possível apelar, é sem dúvida alguma o juízo da Suprema Autoridade da Igreja Católica; na célebre expressão de Santo Agostinho, Roma locuta causa finitaRoma falou, encerrou-se a questão. Isto é, sim, um argumento, mas é preciso reconhecer que tal argumento não tem valor sem uma série de pressupostos que o legitimam e sem os quais, de fato, ele não faz muito sentido. É necessário percorrer um longo caminho até se chegar ao Roma Locuta; e se os católicos não o percorrem de uma ponta a outra diante de cada situação prática com a qual se deparam, fiando-se sempre na palavra da Igreja, é porque já estão convencidos de todas as premissas que o legitimam e para o qual conduzem inelutavelmente. Como, p.ex., ao dirigir um carro, as pessoas simplesmente ligam o carro e saem, sem se preocuparem com os complexos conhecimentos mecânicos e eletrônicos sem os quais os carros não poderiam andar. A diferença é que os carros quebram, porque são obras humanas; já a Igreja é indefectível, por ser obra da mão de Deus.

O pe. Leonel Franca, no texto em epígrafe, fala-nos sobre o que ele chama de “obstáculos morais” à Fé. Com uma tremenda perspicácia, mostra-nos o insigne autor que – ao contrário do que alegam aqueles que são hostis à Igreja – os motivos que levam os homens a se afastarem da Igreja, muitas vezes, não são de origem intelectual, e sim moral. “É através de um programa de viver – diz o pe. Franca – que optamos por uma fórmula de pensar” (id. ibid., p. 119). Para o homem, crer é uma atitude razoável; há muitos que não crêem porque a Fé traz junto com ela exigências de vida que, não raro, chocam-se com o “programa de viver” por eles adotado.

Voltemos à questão da autoridade; se, por um lado, qualquer um há de convir que a mera afirmação de alguma coisa por parte de alguém, por mais douta e honesta que seja esta pessoa, não faz com que ipso facto a coisa afirmada se transforme em verdade incontestável, por outro lado é igualmente óbvio que a recusa sistemática em se levar em consideração as colocações das demais pessoas, pelo simples fato de que tais colocações não constituem demonstração definitiva, é uma atitude muito pouco razoável. Ora, seria simplesmente impossível viver em um mundo no qual todas as afirmações de todas pessoas precisassem ser postas à prova para que fossem aceitas. Ao contrário, é plenamente razoável que as pessoas assimilem, na sua vida, as experiências e o conhecimento daqueles que lhes precederam, sem precisarem refazer por si próprias todos os caminhos que trilharam os que vieram antes delas; a menos que – nas palavras do pe. Franca – sejam detentoras de “um desprezo altivo dos merecimentos alheios”…

Mas passemos a vista, ainda que do alto e bem superficialmente, por estes caminhos trilhados; olhemos para a história do Cristianismo, demonstração eloqüente da sua veracidade e confiabilidade. Tenhamos em conta que a pequena sociedade fundada por um Homem da Galiléia, dois mil anos atrás, cresceu e se desenvolveu ao longo dos séculos e se transformou na maior Família que o gênero humano já conheceu; a Igreja nascida do lado aberto de Nosso Senhor na Cruz transformou-se n’Aquela que mudou os rumos da História e construiu a civilização ocidental. Ora, não há efeito sem causa; qual é porventura a causa do extraordinário crescimento e da ainda mais extraordinária sobrevivência deste grupo de pessoas as mais distintas, unidas – ultrapassando os séculos, as culturas e os povos – ao redor do legado de um Carpinteiro de Nazaré? É porventura razoável imaginar que, sendo conhecidas as causas de um sem-número de efeitos, justamente este – sem sombra de dúvidas o mais portentoso que a História é capaz de narrar – não tenha nenhuma causa? É sensato postular que, no mundo em que o homem explica todos os fatos, justamente este esteja condenado a permanecer sem explicação?

Santo Tomás de Aquino já evocava este raciocínio, para demonstrar a importância da Fé para o cristão. São tão fortes e convincentes as palavras do Doutor Angélico que peço licença para deixá-lo falar por si próprio:

Se um rei enviasse suas cartas com o selo real, ninguém ousaria dizer que aquelas cartas não eram do próprio rei. É claro que as verdades nas quais os Santos acreditaram e que nos transmitiram como sendo de fé cristã, estão seladas com o selo de Deus. Tal selo é significado por aquelas obras que uma simples criatura não pode fazer, isto é, pelos milagres. Pelos milagres Cristo confirmou as palavras dos Apóstolos e dos santos.

Podes, porém, replicar, dizendo que ninguém viu esses milagres. É fácil responder esta objeção. É conhecido que toda a humanidade prestava culto aos ídolos e que a fé cristã foi perseguida, confirmando-o, além do mais, a história do paganismo. Converteram-se todos a Cristo, porém, em pouco tempo. Os sábios, os nobres, os ricos, os governos e os grandes converteram-se pela pregação de poucos homens rudes e pobres. Ora, não há saída: ou se converteram porque viram milagres, ou não. Se foi porque viram milagres que se converteram, a tua objeção não tem sentido. Se não o foi, respondo que não poderia haver maior milagre que esse de todos os homens converterem-se sem ter visto milagres. Deves te dar por vencido.

Eis porque ninguém pode duvidar da fé. Devemos acreditar mais nas verdades da fé do que nas coisas que vemos. Porque a vista do homem pode falhar, mas a ciência de Deus é sempre infalível.
[Santo Tomás de Aquino, “Exposição sobre o Credo”]

A História da Igreja Católica é simplesmente inexplicável, quando se a considera sob uma ótica meramente naturalista. Ao contemplar esta longa sucessão de séculos, por meio dos quais a Barca de Pedro navegou – não sem tempestades! – incólume e intacta, o espírito humano livre de preconceitos inclina-se naturalmente à conclusão de que está diante de alguma coisa extraordinária. Étienne Gilson repete isso, no seu estilo peculiar, que peço mais uma vez permissão para aqui reproduzir:

Não se vê na história nenhum caso de uma sociedade espiritual feita de homens unidos pelo único amor a uma verdade comum que transcende a razão e mantendo-a durante vinte séculos, sem nunca traí-la. Procura-se não menos em vão um outro exemplo de uma fé religiosa alimentando, durante dois mil anos, um fluxo ininterrupto de especulação racional e, para dizer tudo, de filosofia, toda ocupada em definir seu objeto de especulação, em defender-se dos inimigos de fora, em munir-se de razões, em conquistar alguma intelecção de um mistério que ela aliás não ousa evacuar. A admiração se instala diante dessa interminável linhagem de doutores de múltiplas origens, de algum modo se sucedendo ao longo dos séculos, para manter intacto o ensino de um homem que, no limite de três anos, pregou a doutrina da salvação aos pobres e aos humildes. Três anos somente de vida pública, e esse imenso rio de doutrina circulando por todo o lado há vinte séculos, sem jamais permitir que príncipes, povos, filósofos, enfim, nenhum poder deste mundo o desvie um pouco que seja do seu próprio curso. Nada pode substituir aqui a experiência direta e pessoal dessa história. Aqueles a quem a vida concede a oportunidade de adquiri-la sabem que ela dá invencivelmente a impressão de que uma força mais do que humana atua incessantemente nela. Podemos dizer que o simples olhar para esses vinte séculos de fecundidade doutrinal, que nada de humano pode explicar, nos coloca diante de uma prova manifesta da existência de um Deus imediatamente presente em sua Igreja. Mas talvez tal visão dessa história pressuponha uma longa vida despendida a estudá-la.
[Gilson, Étienne; “O Filósofo e a Teologia”, pp. 212-213. São Paulo, Paulus, 2009]

Eis, portanto, os argumentos, alcançáveis pela Razão Humana, que testemunham em favor da Fé. Há um Deus; houve um dia um Homem que Se disse Deus; os portentosos sinais por Ele realizado e o extraordinário sucesso – aliás, imprevisível e inverossímil – alcançado por Sua obra ao longo dos séculos concedem-Lhe credibilidade; a Igreja por este Homem fundada, até aqui, mostrou-Se incompreensivelmente, por vinte séculos, fiel a Ele. Eis os fatos. Eis o caminho que já foi incontáveis vezes percorrido por aqueles que nos precederam e que nos falam da Fé Católica. Eis as longas veredas que conduzem à filial submissão que o católico tem à Suprema Autoridade da Igreja Católica, sem que ele próprio precise percorrê-las por si mesmo a cada vez que se deparar com um ensino da Esposa de Cristo: basta-lhe saber que tais caminhos existem, e que outros já o percorreram antes dele.

Não é uma atitude razoável reinventar a roda a cada vez que ela precisar ser utilizada, nem mesmo negar a sua existência porque não fomos nós próprios a produzi-la. Não é sensato menosprezar os ensinamentos daqueles que nos precederam pela simples razão de que não fomos nós mesmos a adquiri-los. Não é inteligente desdenhar daquilo que nos dizem os que são mais sábios do que nós, meramente por uma recusa obstinada em admitirmos que possa existir uma realidade com a qual não tivemos ainda contato. Escutemos, portanto, a Igreja; até mesmo porque a reinvenção da roda é trabalhosa – segundo Gilson, talvez despenda uma vida inteira – e não há sentido em condicionarmos a nossa aceitação de uma conclusão à sua “refazenda” por nós próprios. Não é necessário que trilhemos todos os caminhos que já foram trilhados; convençamo-nos, ao invés disso, que eles existem, podem ser percorridos e já o foram por diversas vezes. Concedamos crédito à experiência dos que nos precederam. E termino com mais uma citação do filósofo francês, nas páginas finais do seu livro já citado:

[D]irei que, na noite de uma vida passada no estudo da filosofia cristã, plenamente consciente da evolução histórica por ela sofrida – exatamente aquela que o Papa Leão XIII descreveu com tanta lucidez em Aeterni Patris -, não sou menos consciente da milagrosa fidelidade à fé cristã que ela testemunha. (…) Relatando minha experiência, digo somente que, caso tivesse encontrado algo mais inteligente e mais verdadeiro do que aquilo que São Tomás disse sobre o ser, eu me apressaria em dizê-lo a meus contemporâneos. Contudo, acabei por concluir que sua metafísica é verdadeira, profunda, fecunda, e é essa verdade sem originalidade que devo me contentar em transmitir-lhes.

[…]

Como se poderia acreditar que esse belo cargueiro, que há tantos séculos percorreu tantos caminhos sem nunca mudar de rota, esteja hoje prestes a trocar de direção ou chegar ao fim da linha? Nem a energia lhe falta para seguir sua viagem, nem a assistência daquele que prometeu estar conosco até a consumação dos séculos.
[Gilson, op. cit., pp. 236-237. 239]

Eis os fatos que atestam o valor do Cristianismo, eis as razões que a Razão Humana aduz em favor da Fé, eis o tributo que a História presta à Igreja de Nosso Senhor.

O amor à verdade e o ódio à mentira

– Depois disto, portanto, repara se é necessário que, além desta qualidade [sempre apaixonados pelo saber na sua totalidade], haja outra na sua natureza, se [os filósofos] quiserem ser tais como os descrevemos.
– Qual?
– A aversão à mentira e a recusa em admitir voluntariamente a falsidade, seja como for, mas antes odiá-la e pregar a verdade.
– É natural – disse ele.
– Não só é natural, meu amigo, mas é imperioso que uma pessoa que seja por natureza enamorada preze tudo aquilo que se aparentar ou relacionar com a coisa amada.
– Exatamente.
– Ora, poderá encontrar-se algo de mais relacionado com a sabedoria do que a verdade?
– Como poderia ser? – perguntou ele.
– É possível que uma mesma criatura seja ao mesmo tempo amiga da sabedoria e da mentira?
– De modo algum.
[Platão, “A República”, Livro VI (484a-d); Editora Martin Claret, São Paulo, 2006, p. 180]

A verdade e a aversão à verdade vieram ao mundo juntas. Assim que a verdade apareceu, foi olhada como inimiga.
[Tertuliano, “Apologia”, cap. VIII]

O Gênero Humano, após sua miserável queda de Deus, o Criador e Doador dos dons celestes, “pela inveja do demônio,” separou-se em duas partes diferentes e opostas, das quais uma resolutamente luta pela verdade e virtude, e a outra por aquelas coisas que são contrárias à virtude e à verdade. Uma é o reino de Deus na terra, especificamente, a verdadeira Igreja de Jesus Cristo; e aqueles que desejam em seus corações estar unidos a ela, de modo a receber a salvação, devem necessariamente servir a Deus e Seu único Filho com toda a sua mente e com um desejo completo. A outra é o reino de Satanás, em cuja possessão e controle estão todos e quaisquer que sigam o exemplo fatal de seu líder e de nossos primeiros pais, aqueles que se recusam a obedecer à lei divina e eterna, e que têm muitos objetivos próprios em desprezo a Deus, e também muitos objetivos contra Deus.

Este reino dividido Sto. Agostinho penetrantemente discerniu e descreveu ao modo de duas cidades, contrárias em suas leis porque lutando por objetivos contrários; e com sutil brevidade ele expressou a causa eficiente de cada uma nessas palavras: “Dois amores formaram duas cidades: o amor de si mesmo, atingindo até o desprezo de Deus, uma cidade terrena; e o amor de Deus, atingindo até o desprezo de si mesmo, uma cidade celestial” [De civ. Dei, 14, 28 (PL 41, 436)]. Em cada período do tempo uma tem estado em conflito com a outra, com uma variedade e multiplicidade de armas e de batalhas, embora nem sempre com igual ardor e assalto.
[Papa Leão XIII, Humanus Genus, 1-2]

Muitas pessoas não entendem o que é o catolicismo, não entendem o que é a Igreja, não entendem qual o papel que compete aos católicos que são soldados de Cristo na Igreja Militante, não entendem o valor da intransigência nem a dupla perspectiva sobre a qual precisa ser encarado o amor. É de se lamentar que, entre essas pessoas, contem-se não poucos “católicos”, que passam a sua vida sem se esforçar para fazer aquilo que lhes compete fazer ou – pior ainda – perseguindo os católicos que se esforçam para serem menos indignos do nome de “cristãos” que lhes foi dado no seu batismo. Esforcemo-nos um pouco para, à luz da religião cristã, analisarmos melhor cada uma dessas coisas.

O catolicismo é a religião verdadeira com exclusão de todas as outras, é a Sã Doutrina que o próprio Deus legou aos seres humanos, ensinando-lhes tudo o que eles precisavam saber sobre Si para chegarem ao conhecimento de Deus e, por conseguinte, à Salvação. Não se trata, pois, de um fruto da investigação humana, de uma filosofia elaborada pelos maiores gênios da humanidade, mas – ao contrário – da Revelação do próprio Deus que, como é a própria Verdade, não pode enganar-Se e nem nos enganar. O catolicismo é a única religião verdadeira, capaz de religar o homem pecador a Deus infinitamente santo.

A Igreja é a Guardiã infalível destas verdades que – repetimos – foi o próprio Deus que revelou aos seres humanos e, por conseguinte, é isenta de todo erro. A Igreja é instituição divina, é a única obra encontrada neste mundo que foi realizada não por mãos humanas, mas pelo próprio Deus. É uma espécie de milagre permanente, farol seguro a iluminar a História mostrando aos homens de todos os tempos e lugares o único caminho verdadeiro – estreito, como disse Nosso Senhor, mas verdadeiro sem dúvidas, pela Sua própria autoridade divina – que os homens precisam seguir se quiserem conhecer verdadeiramente ao Deus Criador dos Céus e da Terra.

Os católicos são os filhos da Igreja, a quem Deus concedeu a imerecida graça de conhecerem os Seus desígnios e as verdades sobre Ele que Lhe aprouve revelar, e são também os soldados de Cristo, i.e., aqueles a quem compete o singularíssimo papel de guardar a Verdade Revelada e fazê-lA conhecida de todos os homens, pois todos os homens têm necessidade absoluta d’Ela, para serem salvos. Têm portanto este duplo papel todos aqueles que foram chamados à dignidade de filhos de Deus pelo Batismo: o de anunciarem o Evangelho e o de defenderem a Sã Doutrina da Salvação, defenderem a Igreja, defenderem o catolicismo, de  todos os ataques que – desde que o mundo é mundo – os inimigos da Religião Verdadeira dirigem aos filhos de Deus.

A intransigência católica é, portanto, uma espécie de legítima defesa da Verdade ameaçada pelo erro, é a única atitude coerente diante de uma Doutrina que se sabe certa e sem mistura de erro algum, que não foi produzida por homens falíveis mas entregue aos homens pelo próprio Deus infalível. Uma tal Doutrina deve, necessariamente, ser defendida de todos os erros, deve ser guardada com a máxima diligência, cuidando zelosamente para que, n’Ela, não se introduzam elementos falsos nem Lhe sejam retirados verdadeiros. A Verdade é intrinsecamente intrasigente, por uma questão de princípios lógicos os mais elementares, que dizem que duas coisas contraditórias não podem ser ao mesmo tempo verdadeiras. Sabendo-se, pois, que a Doutrina Católica é verdadeira – porque, repetimos, Ela foi-nos entregue pelo próprio Deus que, sendo Ele mesmo a própria Verdade, não pode enganar-Se e nem nos enganar – não se pode admitir, sob nenhuma hipótese, que Ela seja contaminada com doutrinas espúrias de autenticidade duvidosa.

De tudo isto, portanto – e aqui encaixamos todas as citações que foram postas em epígrafe -, segue-se que o amor à Verdade precisa ser encarado também sob o aspecto do ódio à mentira. Não ama verdadeiramente a Deus quem, ao mesmo tempo, é amigo dos inimigos de Deus; não tem verdadeiro amor à Verdade aquele que não A defende dos erros, colocando-A em pé de igualdade com os mais diversos delírios e opiniões. O católico, cristão militante, membro da Igreja de Nosso Senhor, defensor intransigente da Sã Doutrina revelada por Deus, tem uma espada de dois gumes que deve manejar com maestria para cumprir com o seu papel: o amor à Verdade e o ódio à Mentira. O amor à Igreja e o ódio à anti-Igreja. O amor à Cidade de Deus e o ódio à Cidade dos Homens. O amor aos filhos da Mulher e o ódio aos filhos da Serpente.

Eis, pois, postos os princípios que devem nortear a atitude dos católicos em todos os âmbitos de suas vidas. O amor verdadeiro não é um amor “frouxo”, romantizado e incoerente como o pregam não poucas pessoas nos nossos dias. O amor precisa ser verdadeiro, precisa desejar o bem da pessoa amada e detestar tudo o que lhe pode provocar mal. O amor à Verdade exige o ódio à Mentira – um não pode existir verdadeiramente sem o outro. E, considerando tanto quanto foi dito, considerando que a História é um campo dividido ao meio onde combatem entre si os filhos de Deus e os filhos da Serpente – como a Igreja sempre ensinou -, fica evidente o tamanho da responsabilidade que os católicos têm. Devem defender a Deus, trabalhando diligentemente para que o Evangelho da Salvação seja cada vez mais conhecido pelos homens que d’Ele necessitam. Devem arrancar almas à Satanás, brandindo corajosamente os argumentos católicos contra as falácias das almas iludidas pela astúcia do Demônio, a fim de derrotar a insídia diabólica e possibilitar, com a graça de Deus, uma conversão. Devem se pôr na brecha das muralhas da Igreja, defendendo-A valorosamente dos ataques a Ela dirigidos por tantos quanto militam nas hostes do Príncipe das Trevas. Devem, em suma, portarem-se como cristãos autênticos.

Esta luta – em defesa da Verdade, pela (verdadeira) instauração do Reino de Deus sobre a terra – é a mais importante e a mais fundamental de todas as lutas, porque os problemas que afligem o mundo moderno são apenas sintomas do problema de fundo, do problema capital, que é de natureza religiosa. Não tenhamos dúvidas disso: o Evangelho de Nosso Senhor é o único remédio verdadeiro a ser ministrado à humanidade enferma. Acreditemos n’aquilo que disse Platão há mais de dois milênios: “tendo a verdade por corifeu, não creio que se possa dizer que um coro de vícios segue atrás dela. […] Mas que vem atrás dela uma maneira de ser sã e justa” [op. cit., p. 186]. Confessemos com destemor esta verdade evidente, também repetida por Santo Agostinho e lembrada pelo grande Papa Leão XIII:

“Os que dizem que a doutrina de Cristo é contrária ao bem do Estado dêem-nos um exército de soldados tais como os faz a doutrina de Cristo, dêem-nos tais governadores de províncias, tais maridos, tais esposas, tais pais, tais filhos, tais mestres, tais servos, tais reis, tais juízes, tais contribuintes, enfim, e agentes do fisco tais como os quer a doutrina cristã! E então ousem ainda dizer que ela é contrária ao Estado! Muito antes, porém, não hesitem em confessar que ela é uma grande salvaguarda para o Estado quando é seguida” (Epist. 138 (al. 5) ad Marcellinum, cap. II, n. 15).
[Santo Agostinho, apud Leão XIII, Immortale Dei, 27]

Esforcemo-nos, pois, com o auxílio da Virgem Santíssima, Aquela que venceu sozinha todas as heresias do mundo inteiro, para sermos menos indignos das honras que nos foram conferidas por ocasião do nosso Batismo. Elevemos bem alto o estandarte de Cristo Rei, carregando em nossas vidas o Evangelho de Jesus Cristo, sendo testemunho vivo do poder do Crucificado. Militemos com destemor pela Igreja de Nosso Senhor, a fim de que a Verdade triunfe sobre os erros e todos os homens possam conhecer a Verdade que liberta, a Sã Doutrina da Igreja, a Fé Católica e Apostólica, para a maior glória de Deus.

Boa morte

Assistimos todos os dias à morte de muitos, celebramos os seus enterros e funerais e, no entanto, continuamos a prometer-nos longos anos de vida – Santo Agostinho [?]

Os santos estavam certos. Lembro-me de que, quando eu era pequeno, tinha muito medo de morrer; queria uma morte bem rápida e indolor, um acidente, um infarto fulminante, um tiro na cabeça, qualquer coisa que me fizesse morrer rápido o suficiente para não ter tempo de perceber que estava morrendo. Lembro-me também de que, quando tive contato pela primeira vez com os escritos dos santos, estranhei sobremaneira o tipo de morte que era louvado e até pedido como uma graça: em casa, na cama, com a família em redor, após ter bastante tempo para se preparar. E eu não conseguia entender.

Mas hoje, eu entendo um pouco melhor. A morte é um momento decisivo de nossas vidas, é o momento do “tudo ou nada”, é quando saberemos se valeu a pena todos os anos que passamos nesta terra. Um momento desejado, pois é o nosso encontro com o Senhor de nossas vidas, mas ao mesmo tempo um momento temido, devido às enormes culpas que acumulamos ao longo da nossa peregrinação terrestre. O momento em que cai o pano e, nos bastidores, saberemos se fomos dignos de aplausos ou de vaias. E, por tudo isso, o momento da morte é importante demais para que não pensemos nele.

Preparar-nos para morrer, que trabalho da mais alta importância! A frase em epígrafe (se alguém souber a referência correcta, por favor me avise) ilustra muito bem a negligência que as mais das vezes temos em executar esta grave obrigação. Não sabemos quando há de chegar a nossa morte e – agora eu entendo os escritos dos santos – não sabemos se vamos ter tempo para nos preparar. Insensatez minha, na infância, quando desejava uma morte rápida e inconsciente! Deus, dai-me sempre consciência de que hei de morrer um dia, e não sei quando será este dia terrível.

Domingo, presenciei um acidente de trânsito horrível, quase na minha frente. Um carro – dirigido por uma jovem senhorita – bateu numa moto com dois passageiros. Os dois voaram longe; ao ouvir o barulho (ainda cheguei a ver um dos motoqueiros sendo arremessado à distância), corri para ver se alguém se tinha machucado. Tinha. Um dos dois motoqueiros – não sei se o motorista ou o “carona” – havia batido violentamente num poste. Perto das três horas da tarde, entre pedir para que as pessoas se afastassem, não tocassem nos acidentados, ligassem depressa para o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência, vi o acidentado mais grave. Ele não sangrava: jorrava sangue aos borbotões, pela boca, pelo nariz, a cada respiração forçada, que depressa formou uma grande poça. As pessoas amontoavam-se ao redor, e eu, angustiado, vendo o sujeito nitidamente morrer, sem poder fazer absolutamente nada. O SAMU não chegou a tempo: veio uma caminhonete da polícia, pegaram o acidentado como um saco – provavelmente já morto -, colocaram-no na parte de trás e o levaram.

Coisa bem diferente é ver um morto e uma pessoa morrendo! Um morto é uma tragédia, mas è finito, andiamo; uma pessoa morrendo é uma angústia, é um desejo enorme de se fazer alguma coisa e uma tremenda frustração diante da própria impotência. E isso me fez lembrar os escritos dos santos: queira Deus nos conceder a graça de uma boa morte, de uma morte preparada! Porque morrer acidentado na rua, numa tarde de domingo, sangrando como um animal, sob os olhares de dezenas de transeuntes curiosos (é sangue mesmo, não é mertiolate…), sem um amigo que lhe apóie, sem um padre para lhe dar a absolvição, é uma coisa muito, muito triste. Que a Virgem Maria olhe com benevolência para aquele acidentado.

E que Deus nos livre de todas as tragédias, e nos conceda a graça de prepararmo-nos bem para morrer. Uma boa morte é coisa fundamental, e infelizmente não poucas vezes negligenciada.

Nossa Senhora da Boa Morte,
rogai por nós!