Cânticos

Releio o Cântico Espiritual de São João da Cruz. O grande místico foi celebrado anteontem na Igreja. Confesso não conhecer muito sobre ele, mas gosto do pouco que conheço. Em particular, do Cântico Espiritual.

A Esposa procura pelo Amado; pergunta aos pastores, pergunta aos bosques e espesuras que a mão do seu Amado plantou. Procura-O desesperadamente: Decid si por vosotros ha pasado. E ouve falar do seu Amado, mas não O encontra.

Lembro-me imediatamente do Cântico dos Cânticos, e com certeza São João da Cruz tinha o texto bíblico diante de si enquanto escrevia o seu Cântico Espiritual. Mas julgo o livro sagrado mais triste. Porque, nele, fica mais clara a culpa da Esposa na separação:

“Eu dormia, mas meu coração velava. Eis a voz do meu amado. Ele bate. Abre-me, minha irmã, minha amiga, minha pomba, minha perfeita; minha cabeça está coberta de orvalho, e os cachos de meus cabelos cheios das gotas da noite. Tirei minha túnica; como irei revesti-la? Lavei os meus pés; por que sujá-los de novo? (…) Levantei-me para abrir ao meu amigo; a mirra escorria de minhas mãos, de meus dedos a mirra líquida sobre os trincos do ferrolho. Abri ao meu bem-amado, mas ele já se tinha ido, já tinha desaparecido; ouvindo-o falar, eu ficava fora de mim. Procurei-o e não o encontrei; chamei-o, mas ele não respondeu” (Cântico dos Cânticos, 5, 2-3. 5-6).

E gosto particularmente destes versos: Exspoliavi me tunica mea, quomodo induar illa? Lavi pedes meos, quomodo inquinabo illos? Chego quase a imaginá-los. Uma situação cômoda, e alguém que vem incomodar: um descanso merecido, que alguém vem interromper. Mas é Deus quem chama!

A Esposa levanta-se. Antes de levantar, no entanto, reclama; e esta murmuração, ela somente, tão pequena, é suficiente para que o Amado vá-se embora. Não havia de levantar-se? Por que não se levantou de uma vez? Teria encontrado o Amado à porta. No entanto, perdeu tempo. Ele Se foi.

Depois, Ela o procura pela cidade. Sofre, sem O encontrar. “Dizei-lhe”, Filhas de Jerusalém, “que estou enferma de amor” (v. 8). É a mesma coisa que diz São João da Cruz: si por ventura vierdes / aquel que yo más quiero, / decidle que adolezco, peno y muero. A Esposa sofre pelo Amado nos Textos Sagrados, sofre no poema do santo espanhol.

E quem dera a nossa alma sofresse pelo Deus Altíssimo! Porque a imagem da Esposa e do Amado é figura da alma humana que ama e busca a Deus. Tanto o Cântico Espiritual quanto o Cântico dos Cânticos terminam com a união da Esposa e do Amado. A alma, por fim, termina unida a Deus – eis a mística – depois de todo o sofrimento que passa em busca d’Ele – eis a ascese.

Quem dera nossa alma sofresse buscando o Deus Onipotente! Porque, muitas vezes, tenho a impressão de que ela permanece no exspoliavi me tunica mea… Permanece no tempo perdido. Permanece na apatia. Permanece no próprio comodismo, que a afasta de Deus. Precisa levantar-se, abrir a porta, buscar a Deus, sofrer. Só assim vai refazer os passos das Esposas dos dois Cânticos. Só assim poderá terminar na mesma felicidade delas.

É advento. É tempo de endireitar as veredas. É tempo de despertarem os que dormem – pois o Senhor vem. É necessário deixar o aconchego da cama, vestir novamente a túnica, sujar os pés. Ir à cidade, procurar pelo Amado, buscá-Lo nos bosques e nos campos. Mas buscá-Lo, mesmo que se vá sofrer nesta busca. Sabendo, aliás, que se vai sofrer nesta busca: porque a ascese precede a mística, e a união com Deus é para as almas que O procuram. Que a Virgem Santíssima conceda-nos a graça de nos prepararmos bem para o Natal. Que o final feliz do Cântico dos Cânticos e do Cântico Espiritual possa ser também o final do cântico de nossas próprias vidas. Soframos em busca de Deus, para que um dia rejubilemo-nos em Sua companhia.