Soneto a Cristo Crucificado

Aproveitando que o Papa Bento XVI declarou recentemente São João de Ávila como doutor da Igreja, reproduzo aqui este belo soneto espanhol do século XVI. Embora a sua autoria ainda conste como “anónima”, não poucos têm por certo que ele brotou justamente da pena do grande místico espanhol que o Sumo Pontífice elevou recentemente ao rol dos Doutores da Igreja de Cristo (a este respeito, veja-se também este artigo publicado no final de semana passado em um jornal de Córdoba). Em todo o caso, o poema é uma pérola da mística católica, cujos versos mereceram ser conhecidos e repetidos séculos afora. São belos! Que sejam a nossa oração, e que nos ajudem a elevar a nossa alma a Deus.

Soneto a Cristo crucificado

No me mueve, mi Dios, para quererte
el cielo que me tienes prometido;
ni me mueve el infierno tan temido
para dejar por eso de ofenderte.

Tú me mueves, señor; muéveme el verte
clavado en una cruz y escarnecido;
muéveme ver tu cuerpo tan herido;
muévenme tus afrentas y tu muerte.

Muéveme, en fin, tu amor, y en tal manera
que aunque no hubiera cielo, yo te amara,
y aunque no hubiera infierno, te temiera.

No me tienes que dar porque te quiera,
pues aunque cuanto espero no esperara,
lo mismo que te quiero te quisiera.

Santa Hildegarda de Bingen e São João de Ávila, doutores da Igreja

Eu fiquei muito feliz quando soube que Bento XVI declarou dois novos doutores da Igreja no domingo 07 de outubro: Santa Hildegarda de Bingen e São João de Ávila. A proclamação solene foi feita na Santa Missa para a abertura do Sínodo dos Bispos, e a breve apresentação de ambos que o Papa Bento XVI fez foi a seguinte:

São João de Ávila viveu no século XVI. Profundo conhecedor das Sagradas Escrituras, era dotado de um ardente espírito missionário. Soube adentrar, com uma profundidade particular, nos mistérios da Redenção operada por Cristo para a humanidade. Homem de Deus, unia a oração constante à atividade apostólica. Dedicou-se à pregação e ao aumento da prática dos sacramentos, concentrando seus esforços para melhorar a formação dos futuros candidatos ao sacerdócio, dos religiosos, religiosas e dos leigos, em vista de uma fecunda reforma da Igreja.

Santa Hildegarda de Bingen, importante figura feminina do século XII, ofereceu a sua valiosa contribuição para o crescimento da Igreja do seu tempo, valorizando os dons recebidos de Deus e mostrando-se uma mulher de grande inteligência, sensibilidade profunda e de reconhecida autoridade espiritual. O Senhor dotou-a com um espírito profético e de fervorosa capacidade de discernir os sinais dos tempos. Hildegard nutria um grande amor pela a criação, cultivou a medicina, a poesia e a música. Acima de tudo, sempre manteve um amor grande e fiel a Cristo e à sua Igreja.

Confesso que não conheço muito bem a história e a obra de Santa Hildegarda; mas São João de Ávila é-me bem familiar. Já falei sobre ele aqui no Deus lo Vult! outras vezes (em particular, neste texto onde o grande santo espanhol fala sobre a crise da Igreja à época do Concílio de Trento – vale uma (re)leitura); gostei do seu estilo desde a primeira vez que pus os olhos sobre os seus escritos. Por exemplo, é ele o autor do Audi, Filia (disponível aqui: parte 1, parte 2, parte 3 e parte 4), e é com um trecho do início desta obra que eu encerro este ligeiro post:

E se é poderoso o gosto pelas honras vãs, muito mais poderosa é a medicina do exemplo e graça de Cristo, que de tal maneira as vence e desarraiga do coração que as faz ser percebidas como coisas muito abomináveis; de tal modo que, se um cristão vê o Senhor de Majestade abaixar-se a tais desprezos, fica o verme vil inchado com o amor da honra. Por isso o Senhor nos convida e encoraja com Seu exemplo, dizendo (Jo 16, 33): Confiai, que Eu venci o mundo. Como se dissesse: “Antes que Eu viesse, coisa difícil [recia] era lutar com o mundo enganoso [tomarse con el mundo engañoso], descartando o que nele floresce e abraçando o que ele descarta; mas depois que ele pôs todas as suas forças contra Mim, inventando novo gênero de tormentos e desonras, todas as quais Eu sofri sem lhe voltar o rosto, ele já não somente parece fraco – porque encontrou quem pôde sofrer mais – mas também se encontra derrotado para vosso proveito, pois com o exemplo que Eu vos dei e com a Fortaleza que Eu conquistei para vós, vós o podeis rapidamente vencer, sobrepujar e pisotear”.

Audi, Filia, Cap. III

Que os novos doutores da Igreja possam protegê-La neste Ano da Fé; e que, do Alto dos Céus, possam interceder por nós e conseguir-nos uma porção redobrada daquela Sabedoria do Espírito Santo que eles souberam possuir em grau tão admirável. Que eles aumentem e fortaleçam a nossa Fé. São João de Ávila e Santa Hildegarda de Bingen, rogai por nós!

Sermão de Reis – São João de Ávila

Os que não acabaram

Vinham os magos, decididos. Quem não se decide a servir a Deus por toda a vida ou a morrer à sua procura não está capacitado para a guerra. Deus ordenava aos israelitas que, à hora de entrarem em combate numa guerra, se anunciasse por meio de um arauto que todos os que estivessem construindo uma casa e ainda não a tivessem acabado, e todos os que tivessem plantado uma vinha e ainda não tivessem colhido os frutos, e todos os casados e todos os medrosos – voltassem para suas casas (Deut 20, 5 e segs; 1 Mac 3, 56 e Jz 7, 3).

– “Padre, que quereis dizer com isso?” Que nem todos estão capacitados para a guerra. Porque dirás: – “Não acabei o que estava fazendo”. Tereis o corpo na guerra e o coração em casa (cf. Mt 6, 21). Esses são os homens sobrecarregados com os ocupações da vida: – “Que farei, que comerei, como sustentarei os meus filhos?” (cf. Mt 6, 25 e 31). Julgais que, preocupando-vos em demasia, conseguireis manter-vos. Infeliz o homem que não se apóia em Deus, mas que vive pensando se choverá muito ou se não choverá!

Dou-te este sinal para que vejas se estás apoiado em Deus: se nas dificuldades te afliges, se nos sofrimentos te encolhes, não estás apoiado em Deus. Na hora da angústia me reconfortastes (Sl 4, 2), diz Davi. – “Não posso Eu sustentar-te sem a chuva?”, diz-te o Senhor. Aquele que se apóia em Deus não se deixa abater nem pelos sofrimentos, nem pelas angústias, nem pela morte, nem pelo inferno. Quem não se apóia n’Ele, quanto medo sente, como anda preocupado!

Disse Jesus Cristo: Não vos preocupeis pela vossa vida, nem pelo vosso corpo, nem pelo que vestireis (Mt 6, 25-31). Estais tão cheios de preocupações com o muito comer e beber que, se a palavra de Deus entrar nos vossos corações, um minuto depois será sufocada! (cf. Mt 13, 22) Trabalhai e ganhai o suficiente para comer, que Deus assim o quer, mas essas preocupações e angústias desmedidas são sinal de que não estais apoiados em Deus. Quem se encontra nesse estado não irá para a guerra.

Os sensuais e os medrosos

Em segundo lugar, os casados, que aqui quer dizer os sensuais. Diz o Sábio: Qualquer palavra sábia, ouvida por um homem sensato, será louvada por ele e dela se aproveitará. Que a ouça um luxurioso, e lhe parecerá desagradável e a arremessará para trás das costas (Ecli 21, 18). Não há pecado que mais entorpeça a alma do que este. Jovem lascivo, olha que dentro em pouco essa tua carne será alimento para os vermes e se transformará em cinzas. Podes retirar-te: não irás para a guerra.

Em terceiro lugar, estão os medrosos, os que se preocupam com o que se pode dizer deles. Observamos a esposa: – “Tens dez saias e a tua irmã apenas uma; tens seis mantilhas e a tua irmã apenas uma, com a qual vai à missa. Isso não é fraternidade; não pareces acreditar que Jesus Cristo está no pobre. Vende essa saia, contenta-te com uma ou duas, e com as outras compra para a tua irmã”. – “Mas que dirão os outros de mim? Compreendo que o que me mandas é bom, mas queres que eu pareça a empregada das outras? Se as minhas amigas fizessem o mesmo, eu também o faria”.

Ó louca! Como vives, com o mundo ou com Deus? Depois, ireis a Deus, dizendo: – “Paga-me”. E o Senhor te dirá: – “Os serviços que me prestastes, Eu vo-los pagarei, mas os que andastes prestando ao meu inimigo, como quereis que vo-los pague?”

É difícil encontrar quem ande só. E se é para ir só, então é melhor ir por onde foi Jesus Cristo. Não pelas pompas, jóias ou brocados, embora por aí sigam muitos reis. Não ousarás ir de mãos dadas com Jesus Cristo por onde Ele foi? É impossível que quem abriu uma conta com o mundo tenha outra aberta com Deus. Ninguém pode servir a dois senhores (Mt 6, 24 e Lc 16, 13). Quem é amigo deste mundo por isso mesmo tornou-se inimigo de Deus. O medroso diz: – “Dirão que sou um hipócrita!” Deves procurar a Deus com decisão, aconteça o que acontecer. Cortem-me a cabeça, que nem assim o abandonarei.

Disse Jesus Cristo: O que vos é dito ao ouvido, pregai-o sobre os telhados (Mt 10, 27). É com essa condição que Deus te dá a conhecer a verdade: que digas em público o que te disseram em segredo. Gostaríeis de ser como aqueles de quem fala São Paulo que retêm a verdade na injustiça? (Rom 1, 18). Quem tem a verdade e não a professa nem se comporta de acordo com ela está prendendo a verdade na injustiça. Onde está o rei dos judeus? Nós já o conhecemos. Devemos professar esta verdade custe o que custar. Vede como é o mundo: os reis magos vêm de longe à procura do Salvador, e os que estão na terra d’Ele nem se dão conta da sua presença.

A inquietação de Herodes

O rei Herodes turbou-se, e toda Jerusalém com ele (Mt 2, 3). Que o rei se inquietasse não era muito, mas toda a cidade?

Por aqui vedes como é necessário que haja um bom rei na cidade e uma boa cabeça que reine. Se o bispo é mau, mau o magistrado, mau o pároco e mau o pregador, dificilmente haverá um bom povo. Esta é a intenção pela qual deveríeis rezar a Deus e é dela que mais vos esqueceis. “Senhor, dai-nos bons governantes; Senhor, dai-nos bons dirigentes. Que os reis Vos temam; dai-nos bons sacerdotes e pregadores”.

Toda a cidade turbou-se com o rei. Diz o rei: – “Então quereis outro rei além de mim?” E diz o criado: – “Que quereis que eu faça? O meu patrão ordena que eu o acompanhe nas suas noitadas”. E pensa o sacerdote: “Se eu disser a Fulano que tem uma amante, se lhe disser que não comunga, encher-me-á de pancadas”. Ora, para quem quereis a honra, se não é para Jesus Cristo? Não vale a pena morrer pela honra de Deus? É uma grande honra morrer pela honra de tão grande príncipe!

Herodes perturbou-se, começou a tremer e, convocando todos os príncipes dos sacerdotes e os escribas do povo, perguntou-lhes onde havia de nascer esse rei. Disseram-lhe: Em Belém de Judá, porque assim foi escrito pelo profeta. Disse Herodes aos magos: Ide e informai-vos bem acerca do menino, e, quando o encontrardes, comunicai-me, a fim de que também eu vá adorá-lo (cf. Mt 2, 4-8); na verdade, para matá-lo.

Os reis partem e ele fica. Não vedes como está bem representado aqui o mau pregador? Prega onde se pode encontrar a Deus e depois fica onde está. O bom pregador e o bom confessor devem ir à frente. Ninguém deve dizer uma palavra boa sem que primeiro a tenha posto em prática. Lê-se na vida dos Santos Padres que, estando moribundo um daqueles santos anciãos, se aproximaram dele alguns religiosos e lhe pediram: – “Padre, deixai-nos algo que fique aqui conosco”. Respondeu-lhes ele: – “Sempre acreditei mais no parecer alheio do que no meu, e nunca tive a presunção de ensinar coisa alguma que antes não tivesse posto em prática. Este é o testamento que vos deixo”.

São João de Ávila,
“O Mistério do Natal”
pp. 60-64
Ed. Quadrante, 2ª Edição
São Paulo – 1998

Feliz Natal!

Foto: http://www.amigosdopresepio.org/napolitano.htm
Foto: http://www.amigosdopresepio.org/napolitano.htm

“Se, estando o sol no céu, não o suportamos durante o verão, que aconteceria se ele descesse à terra? (…) Se, estando outrora lá em cima, o Sol abrasava, o que não será agora que desceu e se colocou numa manjedoura, e passa frio… e, quanto mais frio passa, mais eu me aqueço; e quanto mais incômodos sofre, mais eu descanso; e quanto mais Te vejo padecer por mim, Senhor, mais acredito que me amas!…

Comecemos uma vida nova, porque o Menino a começa. (…) Serei o vosso companheiro, Senhor. Quero ir convosco, pois ides para resolver os meus problemas. Dou-Vos graças por terdes nascido. Dou-Vos graças por terdes preferido uma manjedoura”.

São João de Ávila, “O Mistério do Natal”, pp. 47-48
Ed. Quadrante, 2ª Edição
São Paulo, 1998

Um santo Natal para todos os que enriquecem este espaço com a sua presença, extensivo a todos os familiares e amigos, são os meus votos mais sinceros.

Gloria in Excelsis Deo!

Christus natus est!

Constatações pós-conciliares

Que é dos padres que saibam entender [o Evangelho] e tenham modo para declará-lo e vida para serem ouvidos? A maioria deles não o entende. [1]

Se este ofício [o sacerdócio] é de maior importância que outro qualquer, pois dele depende a salvação das almas […], que vergonha tão grande é esta que, não sendo consentido na república um oficial que primeiro não tenha aprendido seu ofício, consintamos [que haja] na Igreja um ministro que jamais aprendeu a sê-lo? Que infelicidade é esta que, se um animal sofre dores, não lhe ousamos fiar a um veterinário se ele primeiro não aprendeu o seu ofício; e a uma alma enferma, pela qual Deus morreu, nós a fiamos a um médico que nunca aprendeu como lhe devia curar? [1]

[Um] ardil do Demônio tem sido isto: fazer com que haja tanta falta de Doutrina na Igreja. [1]

E em quê podemos crer, se não que os açoites que à Igreja vêem, são principalmente pelos pecados dos eclesiásticos? […] Jeremias chora pelos males do seu tempo terem vindo por isto, dizendo: Propter peccata prophetarum et sacerdotum, que effuderunt sanguinem in medio Ierusalem (Lam 4, 13). E o mesmo podemos chorar nós em nosso [tempo], e entender que a carnificina das almas que vemos morrer é por maldade ou negligência dos eclesiásticos. [1]

Não se diga de nossos tempos que quicumque volebat, fiebat sacerdos (1Reg 13, 33), como nos tempos de Jeroboão, senão que [somente] o seja [sacerdote] aquele que merece sê-lo. [1]

A cura de almas [foi deixada] em mãos indiferentes de pregadores e confessores, muitos dos quais nem têm ciência conveniente, nem santidade de vida, nem zelo pelas almas, nem ainda prudência natural […] [por isto] a Igreja chegou ao triste estado em que está. [2]

[Há também falsos ensinadores] que, ainda que não façam isto [ensinar erros contra a Fé], não ensinam ao povo a Doutrina sólida e proveitosa que é necessária, senão cada um segundo aquilo que ele sente e segundo os seus caprichos. [2]

Estas duras palavras foram proferidas por um sacerdote que viveu durante o Concílio e no pós-Concílio. Lamenta não haver mais padres que entendam o Evangelho para que o possam explicar às pessoas; critica a falta de formação do clero; atribui ao Demônio que haja tanta falta de Doutrina na Igreja; reclama por haver alguns que, mesmo sem ensinar heresias explicitamente, deixam de ensinar aquilo que deveriam.

Um perfeito retrato da terrível situação que atravessa a Igreja nos dias de hoje, não fosse por um pequeno detalhe: estas linhas foram escritas por um santo, São João de Ávila, que viveu durante o Concílio e no pós-Concílio de Trento. A “negligência dos eclesiásticos” da qual fala o santo não é uma referência aos padres que celebram sem decoro o Santo Sacrifício da Missa. O “ardil do Demônio” não é a fumaça de Satanás da qual falou Paulo VI. Os “falsos ensinadores” que ensinam “segundo os seus caprichos” não são os modernistas. Na verdade, o santo está falando sobre a situação do seu tempo, que é – curiosamente – muito parecida com a situação atual.

O que isso significa? Duas coisas, pelo menos.

1] É terrorismo dos rad-trads pintar com cores apocalípticas a situação atual da Igreja, como se fosse uma novidade terrível haver sacerdotes ignorantes na Doutrina Sagrada e mais preocupados com as coisas da terra do que com as coisas do Céu pelas quais devem zelar, e como se crises como a que a Igreja hoje atravessa fossem um escândalo inaudito em dois mil anos de Cristianismo.

2] A tibieza entre os sacerdotes, a ignorância do povo fiel, a existência de falsos profetas e enganadores sempre estiveram entre as preocupações das pessoas que verdadeiramente aspiram à glória de Deus, à salvação das almas e à exaltação da Santa Madre Igreja; todavia, uma das notas fundamentais de tais pessoas é, sempre, a submissão à Igreja Católica. O próprio São João de Ávila passou um ano encarcerado, por haver sido [injustamente] denunciado à Santa Inquisição. E não consta que ele tenha, em momento algum, lançado diatribes contra a Igreja, como infelizmente costumamos encontrar entre algumas pessoas dos nossos dias, que jamais sofreram nem mesmo uma ínfima parte do que sofreram pacientemente os santos de todos os tempos.

Podemos – e devemos – aprender com os santos de outrora a melhor maneira de cumprirmos com o papel que nos foi assinalado pela Divina Providência no Campo de Batalha da História. Podemos e devemos aprender com aqueles que a Igreja nos apresenta como modelos de perfeição a serem imitados. E, entre os escritos do Mestre João de Ávila [dos quais já foram citados alguns trechos], há uma análise perspicaz da situação da Igreja de então (que, como vimos, é parecida com a nossa):

Parece-me que o estado presente em que estamos é semelhante ao da Antiga Lei, e à república dos descuidados, e à negligência dos mestres que mandam e não ajudam a cumprir. Pois que leis melhores do que as já feitas sobre a santidade, as letras e o regime de toda a Igreja podem haver? [1]

Muitos reclamam de que o Vaticano II não tenha pronunciado anátemas. São João de Ávila viveu durante e depois de um Concílio que pronunciou, sim, muitos anátemas; todavia, a opinião do santo é a de que as leis promulgadas por Trento e as que já existiam são muito boas e santas, e o nosso empenho deve ser no sentido de ajudar as pessoas a amarem as leis e, assim, cumpri-las, mais por amor a elas do que por força dos castigos.

Atenção! É evidente que o santo não é contrário aos anátemas pronunciados. Ele apenas faz uma constatação, que é a mesma que podemos fazer nos dias de hoje: há muitas leis boas e santas, e os católicos, mesmo assim, são maus! O problema à época de Trento, que – ouso dizer – é o problema à nossa época, não está nas excomunhões ou na ausência delas, e sim na falta de amor dos católicos às coisas sagradas. E este amor não se produz por decretos, afinal,

todas as boas leis possíveis de se fazer não serão o suficiente para dar remédio ao homem, posto que a [Lei] de Deus [o Antigo Testamento] não o foi. [1]

Isto posto, cabe refletir: será que o Vaticano II, se tivesse pronunciado anátemas, iria “transformar” a crise da Igreja de tal maneira que estaríamos hoje atravessando um mar de rosas? Será que a história não iria se repetir e, como em Trento, a falta de homens virtuosos que tivessem amor a Cristo não seria um obstáculo aos frutos de santidade que a Igreja poderia produzir? Será que, se as pessoas amassem realmente a Deus e à Igreja, Esta teria necessidade de repetir sempre as mesmas coisas? E será que a mera “atualização” das penas canônicas poderia sozinha fazer com que os homens se convertessem e amassem a Deus?

Precisamos de virtude. Precisamos de homens santos. Precisamos de pessoas comprometidas incondicionalmente com a Igreja. Precisamos de almas inflamadas de amor a Cristo, que possam contagiar as outras almas ao seu redor. Precisamos de um apostolado de “alma a alma”, a fim de as ganharmos, uma a uma, para Cristo Rei. Só assim os homens serão convertidos, as almas serão salvas, Deus será glorificado e a Igreja será exaltada. A santidade se expande por contágio: precisamos de santos! Seguindo, pois, o exemplo do santo espanhol, que nós possamos nos empenhar em produzir nas almas o amor às coisas sagradas, condição sem a qual não pode haver renovação verdadeira na Igreja, e tarefa à qual todos nós, cristãos membros da Igreja Militante, somos chamados.

São João de Ávila,
rogai por nós!

Referências:
[1] São João de Ávila, “Memorial Primeiro ao Concílio de Trento (1551)”, em “Juan de Ávila – Escritos sacerdotales, BAC, Madrid, 2000”. Tradução minha do espanhol.
[2] São João de Ávila, “Memorial Segundo ao Concílio de Trento (1561)”, em “Juan de Ávila – Escritos sacerdotales, BAC, Madrid, 2000”. Tradução minha do espanhol.

P.S.: Após ser publicado no Veritatis Splendor, este artigo foi muitíssimo mal interpretado, pelo que peço desculpas a todos. Recomendo enfaticamente a leitura deste fórum para entender o problema.