Nem só de zelo são feitos os santos

Algumas pessoas já sabem, mas acho que não mencionei aqui o caso de dois periodistas italianos que foram demitidos de uma rádio (católica) após terem escrito um artigo em que teciam duras críticas ao Papa Francisco. A notícia (bem como o artigo escrito por Alessandro Gnocchi e Mario Palmaro) pode ser lida em espanhol aqui.

Os dois italianos não são um caso isolado. Ainda outro dia, El País – sim, El País! – publicou uma dura carta de uma senhora mexicana ao Papa, cujo conteúdo era muito semelhante ao deste artigo dos dois ex-radialistas da Rádio Maria. Compadeci-me com a perplejidad da Lucrecia Rego de Planas. Com o que não pude concordar foi com a divulgação pública da carta. Que bem imaginam estas pessoas fazerem ao disseminar a desconfiança para com o Vigário de Cristo?

O «escândalo dos pequeninos» não se encontra em meia dúzia de frases toscas que a mídia secular lê sob sua própria ótica desfocada. O escândalo, o escândalo grande e verdadeiro, encontra-se em católicos esbravejando publicamente contra o Romano Pontífice. Coisa mais anti-tradicional do que isso não existe. A Igreja não é uma democracia na qual cada um dos fiéis é poder constituinte originário. A mentalidade de se fazer abaixo-assinados e lobby político para provocar mudanças nas esferas superiores de poder simplesmente não é católica.

Não interessa aqui o quão «justas» estes católicos julguem as reivindicações que fazem. Interessa também e principalmente o meio pelo qual elas são feitas. Afinal de contas, ao contrário do que ensinava Maquiavel, os fins não justificam os meios. De nada adianta alguém fazer a melhor coisa do mundo através de expedientes francamente deploráveis.

Sim, Santa Catarina de Siena atacou duramente o Papa. Mas ela dirigiu os seus ataques ao Papa. O sujeito que se senta na internet para vomitar impropérios contra o Romano Pontífice em nada se assemelha à Virgem de Siena, simplesmente porque os ataques despejados nos meios de comunicação em massa dirigem-se primariamente às massas, e não aos indivíduos. Um equivalente medieval desse péssimo hábito contemporâneo seria se, durante o exílio de Avignon, os católicos distribuíssem nas vilas e cidades panfletos mal-educados atacando a pusilanimidade de Gregório XI. É bastante claro que Santa Catarina não fez jamais nada sequer minimamente parecido com isso. Nunca ninguém fez nada parecido com isso.

Aliás, corrijo-me: já houve, sim, quem fizesse algo parecido com isso. Recordo-me de um nome: Savonarola. O pregador dominicano passou à história por despejar do púlpito os mais virulentos ataques contra a Cúria Romana e o Papa… Alexandre VI. Ora, perto de Alexandre VI, qualquer dos Papas do século XX pode pleitear a sua conceição imaculada!

Savonarola é porventura santo? Por acaso a Igreja o elegeu como modelo de virtudes a servir de exemplo para os fiéis católicos? Muito pelo contrário. Foi censurado diversas vezes por Roma, excomungado por fim, e morreu na forca. Sobre este interessante personagem D. Estêvão Bettencourt escreveu o seguinte:

Objetivamente falando, o procedimento do pregador florentino merece reprovação. Movido pela obsessão de pretensa vocação profética, excedeu os limites da reverência e da obediência na tarefa que ele se propôs, de repreender não somente as multidões populares, mas também as autoridades civis e religiosas. Não se poderia legitimar a sua insubmissão ao Papa Alexandre VI, que, apesar de graves deficiências, era o legítimo Pontífice (a propósito de Alexandre VI veja-se “P.R.” 4/1958, qu. 11). Acreditando arbitrariamente em sinais extraordinários, o pregador deixou-se alucinar e distanciou-se da realidade.

E sobre ele o velho beneditino ainda acrescenta estas palavras que deveriam ser gravadas em pedra e meditadas sete vezes por dia por todos os que se arvoram juízes dos Sumos Pontífices: «Infelizmente porém, não percebeu (ao menos, em sua conduta prática) que a fidelidade a Cristo e [à] Igreja implica necessariamente fidelidade ao Papa, mesmo a um Alexandre VI».

Diante de tudo isso, o que dizer de dois jornalistas italianos que jogam na imprensa um artigo intitulado «Questo Papa non ci piace»? Acaso se pode criticar o padre que prontamente os dispensou dos seus serviços a uma Rádio Católica? Se vivessem em fins do século XV, acontecer-lhes-ia coisa muito pior. A história nos ensina que nem só de zelo são feitos os santos. Os detratores do Papa Francisco deveriam se olhar mais atentamente no espelho: talvez o negro que lá vislumbrem não seja o do hábito de Santa Catarina. Cuidem para que não seja, ao contrário, um prenúncio do triste fim de Savonarola.