E se a renúncia de Bento XVI for inválida? – II

Ontem eu dizia que há diversos problemas na hipótese de o Trono de S. Pedro estar atualmente ocupado por um impostor. Acho que vale a pena insistir ainda um pouco no assunto.

O ponto para o qual estou tentando chamar a atenção não é a mera hipótese da existência de um Antipapa. Não há novidade alguma nisso, Antipapas já existiram na história da Igreja. O verdadeiro problema aqui é a hipótese de aquele que é reputado Sumo Pontífice pela virtual totalidade da Igreja visível não ser Papa verdadeiro – e isso é um pouco diferente das outras situações históricas pelas quais a Barca de Pedro já passou nesses dois milênios tumultuosos de sua existência.

Certo, a Igreja passou quase setenta anos no cativeiro em Avignon. Mas – e isso é o mais importante – em Avignon havia Papas legítimos reclamando o sólio pontifício! O problema de não ser possível identificar qual o Papa legítimo entre dois (ou mais) pretendentes à cátedra de São Pedro é uma coisa; o problema de não ser Papa legítimo a única pessoa que se pretende Papa e como Papa é reconhecido – pública e pacificamente – por toda a Igreja é outra coisa completamente diferente. Que fosse talvez necessário escolher – entre fulano e sicrano – um Papa para se submeter é uma realidade que já se apresentou historicamente. Que a escolha deva ser feita entre fulano e o Trono Vazio, no entanto, é uma novidade absolutamente inaudita.

(Eu sei que, no caso particular de Antipapado em que a renúncia de Bento XVI tenha sido inválida, a escolha é entre o Papa Francisco e o Bento XVI, e não entre aquele e a Sé Vacante. No entanto, para a maior parte do sedevacantismo existente nos dias de hoje, a opção que se faz é pelo Trono Vazio em oposição ao que nele se assenta mesmo. Ademais, a hipótese do “Antipapa Francisco”, nos moldes de “Bento XVI ainda é Papa”, precisa lidar com o fato, então, de que pode ser canônica e teologicamente possível que seja Papa alguém que faz questão de dizer, em público e repetidas vezes, que não é Papa! O inusitado da situação exige que sejam apresentados argumentos fortes em defesa da tese. O ônus é de quem faz alegação, e é tanto maior quanto mais extraordinária for a alegação feita.)

Note-se, um Antipapa não é simplesmente um falso Papa. Um Antipapa é uma pessoa que se arroga falsamente o título de Papa em oposição a um Papa verdadeiro. É assim que está na Wikipedia, é assim que explica a Enciclopédia Católica, é somente assim que faz sentido. Não fosse assim, como ninguém jamais viu um conclave (à exceção dos cardeais-eleitores), estar-se-ia sempre na dúvida de se um determinado Papa é realmente Papa ou não – e tal insegurança não pode subsistir na Igreja que é coluna e sustentáculo da Verdade. Sim, a Sé de Roma pode ficar vacante. Sim, um Antipapa pode pretender ilegitimamente a Sé de Roma. Mas a Sé de Roma estar vacante ao mesmo tempo em que um Antipapa a reclama sem oposição  – aí não, aí não é possível, aí não tem precedente, não tem embasamento teológico, não tem lógica e nem cabimento.

Sobre os tempos priscos do passado remoto da Igreja, nos quais alguém pode esgaravatar um intervalozinho de tempo – sei lá, entre a morte de Inocêncio VII e a eleição de Urbano V – no qual um Antipapa “reinou” durante um período de Sé Vacante, a comparação não procede. Esta vacância contingente estava inserida num processo contínuo de morte do Papa – realização do conclave – eleição do seu sucessor, que absolutamente não encontra paralelo na situação contemporânea. Em Avignon, havia pretensão legítima de Sé Vacante – evidenciada pelos Papas que a antecederam e sucederam sem solução de continuidade. Hoje, tal não ocorre. Hoje, nada nem sequer remotamente análogo a isso ocorre.

Ainda, diga-se que os problemas de ordem prática apontados para a hipótese do Antipapado contemporâneo – nomeações episcopais inválidas, normas para a Igreja Universal nulas, cultos espúrios prestados a santos não canonizados etc. – são próprios dos tempos modernos, nos quais há uma absurda concentração de poder nas mãos do Romano Pontífice e um seu quase ininterrupto exercício. Durante a Idade Média, era perfeitamente possível – aliás, em determinadas situações de crise (como o Grande Cisma do Ocidente) isso era até extremamente provável – que o Papa fosse eleito e não exercesse nenhum ato especificamente pontifício: não canonizasse ninguém, não lavrasse nenhuma bula de criação de diocese, não alterasse nenhuma norma litúrgica. Hoje, ao contrário, o ordenamento canônico muda praticamente todos os dias (com nomeações e renúncias, mudanças curiais, refinamentos litúrgicos, canonizações e beatificações etc.); e se uma norma inválida for introduzida nesse sistema, é simplesmente impossível retroceder à situação anterior.

Mas, como aventei ontem, sempre existe a hipótese do ajeitadinho eventual. Sempre é possível pensar que, num futuro não importa o quanto longe, um Papa legítimo vai surgir e vai referendar tudo, vai aplicar sanatio in radice pra tudo o que foi feito de modo inválido pelos seus ilegítimos predecessores, vai promulgar dessa vez de verdade tudo o que fora indevidamente promulgado (com efeitos erga omnes e ex tunc), vai – em suma – dar uma canetada jurídica que vai pôr ordem na casa. Enquanto tal não acontece, Deus, em Sua Onisciência, prevendo esse futuro Papa Sebastião salvador, antecipa os efeitos de sua autoridade pontifícia e sai aplicando suplências eclesiais para manter a Igreja funcionando (afinal, as portas do Inferno não podem prevalecer).

Vejam, essa idéia espetaculosa até que cola. Mas o seu problema é que ela é mirabolante demais, é uma gambiarra muito grande e, portanto, repugna à razão que seja verdadeira. A salvação das almas vem de ordinário por meio da Igreja visível e hierárquica; e imaginar uma Igreja visível ma non troppo, onde aqueles que se apresentam como autoridades visíveis são na verdade uma Anti-Igreja organizada para esconder a Igreja verdadeira; uma Igreja hierárquica “só que não”, onde os que se apresentam como superiores não detêm autoridade verdadeira (e, portanto, as coisas válidas – em ordem à salvação – que eles porventura façam decorrem não dos meios próprios da Igreja, mas de uma intervenção sobrenatural e direta do Deus Altíssimo para suprir defeitos que praticamente ninguém imagina existir); uma Igreja, em suma, que não guarda quase semelhança alguma com o que a Esposa de Cristo sempre foi historicamente – imaginar tal coisa raia a insensatez.

No fundo, pretender que o Catolicismo está somente ao alcance de uma meia-dúzia de iniciados (que conseguem perscrutar os mistérios da crise moderna e enxergar, para além do que dizem as sedizentes autoridades católicas contemporâneas, aquilo que é a Fé verdadeira) cheira a gnosticismo, e imaginar que a existência encarnada da Igreja pode ser sincronicamente “suspensa” no curso da História (e a pertinência dos católicos a Ela deixa de se realizar mediante as autoridades eclesiásticas para se dar imediatamente, de um modo “espiritual”) aproxima-se de um subjetivismo protestante. Se isso fosse verdade – se isso pudesse ser verdade – não teria para quê haver Igreja. A salvação poderia ser individual (posto que não haveria atualmente possibilidade de submissão às autoridades hierárquicas visíveis) e a Fé poderia vir de uma inspiração interior do Espírito Santo (uma vez que não há Magistério Vivo para ser regra próxima de Fé e cada um precisa estudar o Denzinger por conta própria).

E é isso, no fim das contas, o que torna o sedevacantismo insustentável. Sim, é terrível o estado deplorável em que se encontra a Igreja atualmente…! Mas ninguém está eximido de sofrer na própria carne o martírio da Esposa de Cristo. É sedutora a tentação de abraçar um refinamento teórico que pareça dar sentido ao mysterium iniquitatis dos dias de hoje, à abominação no lugar santo: no entanto, é ao escárnio mesmo que Deus nos chama – e aos cristãos nenhuma cruz nos deveria escandalizar. O amor à Igreja passa por sofrer por Ela e n’Ela; e, no fundo, não é amor verdadeiro abraçar uma quimera intangível para se furtar ao trabalho – que pode perfeitamente ser frustrante, mas nem por isso menos necessário à salvação – de dedicar as próprias lágrimas a limpar (ainda que em vão!) o rosto imundo e purulento da Igreja encarnada tal como Ela se apresenta nesses tempos desgraçados em que aprouve à Providência que vivêssemos.

De que modo pode Satanás privar o mundo da Missa?

No meio das controvérsias envolvendo a Reforma Litúrgica das quais este blog está sendo palco nos últimos dias, parece-me oportuno considerar a seguinte citação de Sto. Afonso de Ligório:

“O demônio sempre procurou privar o mundo da Missa, por meio dos hereges, constituindo-os precursores do Anticristo, o qual, primeiro que tudo o mais, procurará abolir, e de fato conseguirá abolir, como punição pelos pecados dos homens, o Santo Sacrifício do Altar, conforme aquilo que predisse Daniel: ‘E foi-lhe dado poder contra o sacrifício contínuo, por causa dos pecados’ (Dan. VIII, 12).”

[No original: “il demonio ha procurato sempre di toglier dal mondo la messa per mezzo degli eretici, costituendoli precursori dell’Anticristo, il quale, prima d’ogni altra cosa, procurerà d’abolire, ed in fatti gli riuscirà d’abolire, in pena de’ peccati degli uomini, il santo sacrificio dell’altare, giusta quel che predisse Daniele: Robur autem datum est ei contra iuge sacrificium propter peccata.”]

(Santo AFONSO DE LIGÓRIO, La Messa e l’Officio strapazzati, Nápoles, 1760; cf. tb., do mesmo Santo Doutor da Igreja, o parágrafo 10 de sua obra de 1775: Del Sacrificio di Gesù Cristo, onde se alude ao mesmo acontecimento.)

Ora, deve-se dar valor às palavras dos santos. Se há um santo da envergadura de Sto. Afonso de Ligório dizendo que um dia – propter peccata homines – será dado a Satanás poder contra o Santíssimo Sacrifício do Altar, isto não podem ser palavras vazias. Ainda que haja divergências de fato sobre se estamos ou não assistindo ao cumprimento desta profecia, pode ser útil considerarmos como ela se pode cumprir, agora ou no futuro. Na esfera das meras hipóteses, de que maneira o Demônio poderia conseguir «abolir» o Santíssimo Sacrifício da Missa?

O Demônio, como bem o sabemos, é um cachorro acorrentado. O seu poder não é ilimitado – não é como se ele fosse um Deus Onipotente com o sinal invertido; ele só causa o mal que lhe é permitido causar, dentro dos insondáveis desígnios da Providência Divina à qual, de bom ou mau grado, estão sujeitos os homens e os demônios. Lembro-me do que li certa feita em um livro sobre exorcistas, se a memória não me trai do padre Gabriele Amorth: dizia o velho exorcista que não é possível fazer um “pacto de não-agressão com Satanás”, como se ele pudesse retaliar os que o combatiam mais diretamente por meio dos exorcismos. O Demônio – dizia – já nos causa todo o mal que lhe é permitido causar a nós, e portanto é besteira conceder-lhe cavalheiresca trégua. Ele mais nos odeia na exata medida em que mais somos aquilo que Deus nos chama a ser, isto é, santos; crescer no agrado de Deus e no ódio de Satanás é uma só e a mesma coisa. Estamos em guerra com um inimigo que ultrapassa em muito as nossas forças, mas combatemos do lado do Altíssimo! Pretender conduzir semelhante batalha sem “chamar a atenção” do Diabo não passa de mediocridade espiritual, que muito caro nos pode custar.

O Demônio, repitamos, já faz todo o mal que lhe é permitido fazer. Mas à sua ação o Todo-Poderoso estabeleceu limites muito claros; por exemplo, estabeleceu que contra a Sua Igreja não prevaleceriam nunca as hostes infernais. Todo e qualquer assalto dos infernos à Igreja de Cristo, portanto, existente ou possível, esbarra já a priori nesta muralha indestrutível que Cristo levantou em torno à Sua Esposa. Qualquer mal que o Diabo possa ter feito ou possa ser capaz de fazer um dia à Igreja, não pode nunca ser mais poderoso que a promessa d’Aquele por quem Céus e Terra foram criados.

Eu sempre pensei que aquele «robur» com o qual Satanás se levantaria no Fim dos Tempos contra o Sacrifício da Missa fosse na forma de uma perseguição física, como tantas pelas quais os cristãos já atravessamos ao longo dos séculos. Algo como um novo Império pagão lançando mais uma vez às feras os que ousassem adorar ao Deus Verdadeiro, ou um Governo a nível global que fizesse no mundo inteiro aquilo que o Governo do México logrou fazer na terra da Virgem de Guadalupe no século passado. Mas é forçoso reconhecer que esta não é a única forma possível de uma tal profecia se cumprir.

Algumas pessoas parecem acreditar que ela poderia ser cumprida se uma missa falsa fosse colocada no lugar da Missa Verdadeira. Tal hipótese é bastante problemática por um sem-número de razões. Atenta contra a indefectibilidade da Igreja ou – quando menos – contra a Sua visibilidade, uma vez que transforma a Igreja em Sinagoga em Satanás. Transforma o critério próximo e objetivo da Fé Católica – a Igreja Docente – em instrumento de perdição. Faz desaparecer o Sacrifício da «Nova e Eterna Aliança», instituído pelo Filho de Deus ao preço altíssimo do Seu Sangue vertido na Cruz do Calvário, e coloca a mais horrenda idolatria no seu lugar, impedindo assim Deus de ser adorado como convém à Sua Augusta Majestade. Mesmo considerar que tal coisa possa ser possível soa-me como impiedade, como uma injúria à Igreja Santa de Deus.

Mas eu avento uma hipótese conciliadora, que – é óbvio – não tem a pretensão de ser o diagnóstico preciso dos tempos em que vivemos e nem a interpretação exata das profecias do Fim do Mundo. Trata-se de uma reflexão particular minha, aqui apresentada como mera possibilidade ante tudo o que já foi exposto sobre o assunto. Pretendo, com ela, permitir às pessoas que tenham a real dimensão da crise presente (e de outras crises futuras possíveis), sem a subestimar com os olhos fitos somente na indefectibilidade da Igreja e nem tampouco voltar-se contra a própria Igreja por conta da consideração da enormidade daquela crise. Em uma palavra, intento aqui oferecer uma alternativa ao sedevacantismo ou ao tradicionalismo radical que não descuide da gravidade da situação presente (ou de outras possíveis).

Ora, sabemos que, em todos os Sacramentos, há o seu aspecto objetivo e o seu aspecto subjetivo; há a Graça enquanto deles decorre por aquilo mesmo que eles são – e, por isso, independente de quem os ministra ou quem os recebe, i.e., ex opere operato – e há a Graça enquanto beneficia concretamente quem os recebe – e, assim, dependente das disposições subjetivas destes, ex opere operantis. A primeira existe em virtude dos próprios sacramentos e portanto nunca falta e nem pode faltar; a segunda, dependente do ânimo do agente, pode ser diminuída ou mesmo deixar completamente de existir.

Se as pessoas não se santificam, não há por que colocar a culpa numa suposta falta de capacidade santificante dos Sacramentos. Quanto a isto, é possível parafrasear perfeitamente o pe. António Vieira no seu conhecidíssimo Sermão da Sexagesima:

Sabeis, cristãos, porque não faz fruto a palavra de Deus? – Por culpa dos pregadores. Sabeis, pregadores, porque não faz fruto a palavra de Deus? – Por culpa nossa.

E isto, que acontecia então com a palavra de Deus, pode perfeitamente acontecer com os Seus Santos Sacramentos: não por deficiência deles, mas pela malícia de quem os ministra e de quem os recebe.  Se a Graça Divina «por parte de Deus, não falta nem pode faltar», deve-se procurar o «porquê» dos seus (visíveis) parcos frutos não num impossível defeito dos canais, mas na deficiência dos que a eles acorrem.

E se os homens deixassem de saber que a Santa Missa é o Divino Sacrifício do Corpo e Sangue de Cristo, que aplaca a cólera de Deus e lhes obtém inefáveis tesouros dos Céus, ou pelo menos se deixassem de viver como se isso tivesse alguma importância? O que se poderia esperar como conseqüências desta hipotética terrível situação?

Ora, a graça é conferida a cada pessoa na medida de suas disposições interiores. Ensina-nos as Escrituras Sagradas que Deus não atende a quem não sabe pedir: «Pedis e não recebeis, porque pedis mal» (Tg 4, 3a). Ora, não pode pedir bem quem não sabe o que pode e deve pedir. Aufere mais graças do Sacrifício de Cristo quem, na medida de suas capacidades, melhor O compreende. Havia por certo muitos cegos em Jerusalém, mas Nosso Senhor só abriu os olhos aos que O pediram «Domine, ut videam»; e isso em absolutamente nada diminui o Seu poder ilimitado.

Assim, um padre que celebrasse a Missa sem levar em conta que está oferecendo à Trindade Santa o Sacrifício de Cristo com certeza continuaria celebrando Missa, uma vez que para a validade dos Sacramentos basta um genérico desejo de «fazer o que faz a Igreja», ainda que não se saiba com clareza o que a Igreja faz ou mesmo que se erre quanto a isso. É o que nos ensinam os teólogos; por exemplo, Ludwig Ott no seu Tratado sobre os Sacramentos:

Por lo que respecta a la faceta objetiva, basta la intención de hacer lo que hace la Iglesia. Por eso no es necesario que el ministro tenga la intención de lograr los efectos del sacramento que pretende lograr la Iglesia, v.g., la remisión de los pecados. No es necesario tampoco que tenga intención de realizar un rito específicamente católico. Basta el propósito de efectuar una ceremonia religiosa corriente entre los cristianos.

Seria, portanto, válida a Missa celebrada por um padre que quisesse simplesmente realizar uma genérica «cerimônia religiosa corrente entre os cristãos». Mais ainda, seria válida ainda que o dito padre não tivesse a intenção de obter do Sacrifício que oferece os «efeitos» que a Igreja diz que Ele produz. No que tange à capacidade santificante objetiva dos Sacramentos, não há portanto o menor problema aqui. Mas e quanto às graças que eles de fato conferem aos que deles participam assim de maneira tão desleixada? Parece-me claro que não obtém – ou ao menos que obtém em muitíssimo menor medida – os frutos do Sacrifício da Missa quem não tem a intenção de os obter. E, portanto, para diminuir drasticamente os «efeitos» da Santa Missa no mundo não é necessário torná-la inválida: basta que não se queira subjetivamente receber o que Ela objetivamente tem a proporcionar.

E isto não seria, por fim, uma forma de «abolir» – ao menos metaforicamente – o Sacrifício do Altar? Fazê-lo ser celebrado sem que, contudo, (quase) ninguém disso se apercebesse? Fazer com que oferecessem a Deus o Sacrifício da Cruz como se Lhe não oferecessem? Eis, portanto, o que me parece que está – pelo menos em princípio – ao alcance de Satanás: nada podendo contra o Sacrifício oferecido, voltar-se ele com fúria contra os que O ofertam. Não podendo impedir a ira de Deus de ser aplacada, impedir contudo os homens de se beneficiarem desta santa Propiciação. Incapaz de agir contra Aquele que recebe o Sacrifício, dedicar-se com afinco a prejudicar os que O oferecem. E, em semelhante situação, é fácil ver o estado de miséria religiosa a que estariam reduzidos os filhos de Deus! Se uma situação assim não fosse abreviada, correr-se-ia o risco de que se perdessem até os predestinados. E, sinceramente, ela em nada se avantajaria sobre a triste situação em que hoje nos encontramos…

Aqui é o máximo, penso, até onde Satanás pode ir. A partir daqui Deus lhe impôs limites: «Chegarás até aqui, não irás mais longe; aqui se deterá o orgulho de tuas ondas» (Job 38, 11). Já aqui é suficiente estrago, é bastante desolação, é rigorosíssimo castigo pelos pecados dos homens! Aqui já se harmonizam as mais terríveis profecias sobre o Fim dos Tempos com a reconfortante promessa de Deus de estar conosco todos os dias até a consumação dos séculos. Aqui já é possível privar o mundo [dos benefícios] da Missa sem fazer com que Deus deixe de receber o Eterno Sacrifício do Seu Filho amado. Aqui o mysterium iniquitatis já encontra a sua mais perfeita encarnação. Aqui, por fim, já tudo se explica e encaixa, sem que nos seja necessário aventar mais extremadas hipóteses. Para além daqui, já é conceder a Satanás mais poder do que o próprio Deus lhe conferiu.

Hans Küng defende sedevancatismo e acusa Bento XVI de cismático (!)

Eu ainda não vi traduzida para o português, mas esta notícia do Hans Küng “virando sedevacantista” é provavelmente uma das mais bizarras dos últimos tempos. E é verdade, publicada com estupor pelo Rorate Caeli. O motivo do rasgar de vestes do teólogo heterodoxo é a iminente e eminente reconciliação da Fraternidade Sacerdotal São Pio X com Roma, motivo de júbilo para todos os católicos verdadeiros da Igreja Militante, Padecente e Triunfante, com festas excelsas ribombando entre os desta última. Mas, para o Küng, não há razão para se alegrar.

O teólogo suíço baseia o seu chamado à insubordinação em três pontos.

O primeiro, claramente nonsense, é colocar em dúvidas não apenas a licitude mas a própria validade da sagração episcopal dos quatro bispos da FSSPX (e, por conseguinte, da ordenação sacerdotal dos seus padres). E esta alegação é duplamente nonsense: primeiro porque não existe a mais remota razão para se duvidar da validade do Sacramento da Ordem de padres e bispos que se esforçaram, precisamente, por conservar férrea e rigidamente os ritos que eram usados pela totalidade da Igreja até a Reforma do século XX; e, segundo, porque ainda no caso absurdo de que houvesse invalidez de ordens, isto poderia perfeitamente ser resolvido com uma ordenação verdadeira no ato do retorno à Igreja (caso, aliás, dos anglicanos que voltaram com a Anglicanorum Coetibus). A queixa é, assim, puro delírio.

O segundo ponto é o mais divertido: o Küng demonstra que os seus estudos de teologia não foram completamente vãos, porque ele (ao menos) conhece e sabe citar Suárez, escolástico espanhol cuja teologia dista tanto da do seu companheiro de letras suíço. E cita Suárez precisamente na passagem sobre a hipótese do Papa Cismático, alardeando: até o Papa pode se tornar um cismático, se ele não guardar a unidade da Igreja! É verdade. Acontece que isto é tão-somente uma hipótese teológica e, ainda tomando partido por ela, é verdadeiramente espantoso que alguém considere que o retorno de um grupo de católicos à comunhão católica seja “não guardar a unidade da Igreja”! Depois de anos de má teologia, o Küng está claramente degenerando em uma incapacidade de raciocínio lógico assustadora.

Por fim, no terceiro ponto, Hans Küng cita as conseqüências advindas da contingência de um Papa cismático ocupar a Cátedra de Pedro. Arremata: tal Pontífice “perde[ria] sua posição”, ou “[p]elo menos não poderia [mais] esperar obediência” do resto da Igreja. Senhoras e senhores, nós estamos vendo o Küng dizer que o Papa, se cismático fosse, não poderia mais esperar obediência! E censurando Bento XVI por isso, ele, Hans Küng, aquele que é o teólogo desobediente por antonomásia desde muito antes de insinuar que o Papa é (ou está em vias de ser) cismático! O teólogo que dedicou seus anos de teologia a desobedecer sistemática e repetidamente a tudo o que vem de Roma, chegando ao ponto de receber uma censura da Congregação para a Doutrina da Fé em 1979 (em 1979!), ameaçando agora o Papa com a desobediência! Isto é verdadeiramente inacreditável. Viva Bento XVI!

E rezemos muito, tanto pro pontifice nostro Benedicto quanto pro unitate Ecclesia. As batalhas são terríveis e, por isso mesmo, importantes e heróicas. Épicas. Bendito seja Deus, que nos colocou nestes dias dramáticos um valoroso general por cabeça da Sua Igreja Visível. Que Ele nos conceda a graça de combater o Bom Combate. Que Ele nos dê a honra de servi-Lo nestes dias cruéis. Que Ele Se levante e faça resplandecer a Sua glória.

A Igreja não pode impôr aos fiéis uma disciplina nociva

O Fratres in Unum publicou um interessante texto do Revmo. pe. Élcio sobre a infalibilidade da Igreja referente a decretos disciplinares e leis litúrgicas. Eu li o texto e, ao lê-lo, imediatamente me viera à mente o fato (aparentemente negligenciado pelo sacerdote) de que a Igreja não pode, absolutamente, impôr aos fiéis uma disciplina nociva. É este, em suma, o cerne do problema sobre o Novus Ordo: ele pode perfeitamente ser melhor ou pior ou do que o Missal anterior, mas não pode ser herético, heretizante, protestantizante ou coisa do tipo. É exatamente esta posição que eu venho mantendo há anos.

O Felipe Coelho expôs lá no Fratres esta distinção, com a qual não posso senão concordar [com a distinção, frise-se, e não com a posição sedevacantista tomada a partir dela] e que me permito citar: «Assim, uma liturgia pode ser mais ou menos prudente, claro, mas me parece que teólogo nenhum jamais disse que poderia ser imprudente; e, como quer quer seja quanto a isto, tenho certeza de que tanto os teólogos quanto o Magistério concordam em ensinar que uma liturgia universal não tem como ser nociva aos fiéis!». Como eu já disse antes, as discussões sobre o Vaticano II [e as reformas que se lhe seguiram, em particular a Missa de Paulo VI] são um problema inexistente: ou o Concílio é Concílio e, portanto, é ortodoxo (cabendo discutir a sua interpretação, mas partindo do pressuposto da sua ortodoxia); ou é herético e, portanto, não é Concílio e as pessoas que o convocaram, aprovaram e ratificaram incontáveis vezes não são Papas.

A Igreja, na verdade, atravessa uma crise terrível que só faz piorar quando potenciais bons católicos desperdiçam suas energias lutando em frentes erradas. Há incontáveis inimigos verdadeiros aos quais urge fazer guerra, ao invés de se atirarem pedras nos que – bem ou mal – estão ajudando na restauração católica (quando menos pelo fato de não lhe resistirem). Há uma diferença – que nem é tão sutil assim – entre discutir questões teológicas e autonomear-se arauto da Grande Apostasia eclesiástica. Os que tomam esta segunda opção deveriam repensar a sua própria atuação na Igreja. Porque, sinceramente, já temos problemas demais.

A tortura, a Moral, a Santa Inquisição, o Magistério, o Catecismo e muito mais

Gostaria de fazer referência a um texto muito bom traduzido pelo Acies Ordinata e ontem publicado. E trata-se de uma interessantíssima situação: por um lado concordo inteiramente com a motivação do artigo, de refutar pretensas “contradições” no Magistério pré-conciliar para fazer frente aos tradicionalistas não-sedevancatistas. No entanto, e como sabem todos os que me lêem, discordo visceralmente da posição sedevacantista, adotada pelo autor do artigo e por seu tradutor.

E publico este post também por outro motivo: na introdução do referido texto acima, é feita uma menção a um excerto do livro do João Bernardino Gonzaga aqui publicado recentemente, na qual insinua-se constituir este uma espécie de defesa de uma contradição no Magistério da Igreja no tocante ao tema da tortura. Quanto a isso, (1) não posso falar com certeza pela posição de J. B. Gonzaga, mas a mim não me parece que ele adopte esta posição; e (2) por mim, de quem posso falar com segurança, quero deixar claro que nunca pretendi afirmar nem insinuar que o Magistério Se houvesse contradito no tema da tortura, mas tão-somente, por um lado, afirmar, do ponto de vista católico, que a tortura empregada pela Inquisição possuía uma série de características que a distinguiam quer da tortura dos nossos tempos, quer daquela praticada no contexto onde surgiram os tribunais do Santo Ofício; e, por outro lado, do ponto de vista anti-clerical, pôr a descoberto o gritante anacronismo – mesmo prescindindo de um ponto de vista espiritual – que existe na condenação simpliciter da Santa Inquisição por conta do emprego da tortura.

Eu não me recordo de já ter dito isso aqui expressamente, mas já disse em conversas privadas que não julgava a tortura “intrinsecamente má” – mas, ao contrário, dependente quer de sua definição, quer das contingências históricas concretas. De fato, o Catecismo da Igreja Católica diz quanto segue sobre o assunto:

2297. Os raptos e o sequestro de reféns espalham o terror e, pela ameaça, exercem intoleráveis pressões sobre as vítimas. São moralmente ilegítimos. O terrorismo ameaça, fere e mata sem descriminação; é gravemente contrário à justiça e à caridade. A tortura, que usa a violência física ou moral para arrancar confissões, para castigar culpados, atemorizar opositores ou satisfazer ódios, é contrária ao respeito pela pessoa e pela dignidade humana. A não ser por indicações médicas de ordem estritamente terapêutica, as amputações, mutilações ou esterilizações directamente voluntárias de pessoas inocentes, são contrárias à lei moral (63).

2298. Nos tempos passados, certas práticas de crueldade foram comummente adoptadas por governos legítimos para manter a lei e a ordem, muitas vezes sem protesto dos pastores da Igreja, tendo eles mesmos adoptado, nos seus próprios tribunais, as prescrições do direito romano sobre a tortura. A par destes factos lastimáveis, a Igreja ensinou sempre o dever da clemência e da misericórdia; e proibiu aos clérigos o derramamento de sangue. Nos tempos recentes, tornou-se evidente que estas práticas cruéis não eram necessárias à ordem pública nem conformes aos direitos legítimos da pessoa humana. Pelo contrário, tais práticas conduzem às piores degradações. Deve trabalhar-se pela sua abolição e orar pelas vítimas e seus carrascos.

Catecismo da Igreja Católica

O Catecismo Romano, ao que me consta, silencia sobre o assunto. E a posição do atual Catecismo, contextualizada nos tempos em que vivemos, é no meu entender indistinguível daquilo que já havia sido dito por Pio XII (apud J.S. DALY, Pretensas Contradições do Magistério – Tortura e muito mais!, 2005; trad. br. por F. Coelho, São Paulo, blogue Acies Ordinata, abr. 2010, http://wp.me/pw2MJ-q2):

A instrução judiciária deve excluir a tortura física e psíquica e a narco-análise, antes de tudo porque lesam um direito natural mesmo se o acusado é realmente culpado, e além disso porque com demasiada frequência dão resultados errôneos

Ora, não havendo – como reconheço não haver, pelos motivos muito bem explicados no texto do Daly – contradições entre a Ad Exstirpandam e o Papa Pio XII, segue-se que também não as há entre estes dois textos e o Catecismo da Igreja publicado em 1992.

Reproduzo também, por fim, o trecho do referido artigo onde é feita menção ao Theologia Moralis de Santo Afonso de Ligório sobre o tema:

Convém abrir um livro sério de teologia moral e estudar um pouco o pensamento da Igreja sobre a tortura. Quem escolher Santo Afonso (Theologia Moralis, livro V, [art. III] nn. 202-5 – é o livro de teologia moral mais aprovado) aprenderá que a tortura é intrinsecamente ilícita salvo em certas condições extremamente limitadas:

1. A culpabilidade deve já ter sido estabelecida com certeza moral;

2. O sofrimento aplicado não deve ser insuportável a ponto de fazer até mesmo um inocente se acusar;

3. Numerosas categorias de pessoas estavam isentas de toda a tortura;

4. Toda a confissão assim obtida era inutilizável a menos que fosse livremente confirmada, sem tortura, no dia seguinte;

5. Se a tortura não obtivesse resultado, não se poderia recorrer a ela novamente.

Aí estão as condições de trabalho da Inquisição. Encontram-se expostas de modo similar no célebre Malleus Maleficarum. Ora, visivelmente, aquilo que Nicolau I condena não se assemelha a isso em nada. E a leitura do contexto das palavras de Pio XII confirma que tampouco ele falava de um tal uso da tortura. “Não é raro que elas cheguem exatamente às confissões almejadas e à condenação do acusado, não por ser ele culpado de fato, mas por sua energia física e psíquica estar esgotada…” A regra que Pio XII deseja ver imposta é a de Nicolau I. Ele não fala de maneira alguma de um emprego da tortura tão limitado e condicionado, a ponto de ela não ser contrária à lei moral, e no qual ninguém mais pensa.

Ressalto, finalmente, que a referência a estas condições limitadas está presente – embora não de maneira tão esquemática – no texto do J. B. Gonzaga aqui reproduzido anteriormente. E, somente como aviso aos navegantes (e antecipando as pedradas que virão), é óbvio que nem eu, nem o J. S. Daly e nem o Felipe Coelho estamos fazendo apologia da tortura ou propondo uma lei de iniciativa popular que a re-introduza no ordenamento jurídico brasileiro. Quem entender semelhante coisa, peço por gentileza que releia este texto e todos as referências antes de vir aqui com comentários indignados e descabidos.