Urgentes orientações do Sínodo da Família sobre os casais de segunda união

Nas últimas semanas a mídia católica — mesmo a mídia católica que se reputava mais fidedigna e confiável — irrompeu em um surto de loucura a respeito do que o Sínodo dos Bispos (que se encerrou no final do mês passado) teria falado a respeito da comunhão dos divorciados recasados. Perplexos, deparamo-nos com manchetes e reportagens o mais disparatadas possível, vindas de órgãos de imprensa que, até então, sempre ou quase sempre tinham primado pelo equilíbrio e pela sensatez.

A Rádio Vaticano diz que a “comunhão aos divorciados recasados” é “uma questão aberta”. No estilo “em cima do muro” que lembra o pior da politicagem tupiniquim, o Cardeal de São Paulo afirma que “há muita divergência” sobre isso, que “questões complexas não podem ser respondidas simplesmente com um sim ou não”, que “o Sínodo, que não é ainda a palavra do Papa, não decidiu nada sobre isso”, que o Papa pode dizer uma coisa ou outra. Ou seja, a questão estaria “aberta” porque o Sínodo não determinou nada.

Aleteia, em manchete ainda pior, vai mais fundo e diz que o “Sínodo dos bispos abre portas para integrar divorciados recasados”. Perdida lá no corpo da matéria está a afirmação — esta, sim, relevante — de que “[o] texto [do Sínodo] não especifica se [os divorciados recasados] poderão realizar a comunhão”.

Por fim, Zenit coloca como chamada principal da matéria que “o acesso à eucaristia [dos “casais em segunda união”] deverá ocorrer na própria paróquia onde reside o casal” (!). No exercício do wishful thinking mais grosseiro, o autor do texto justifica a manchete dizendo que “o documento normativo do Sínodo, a ser elaborado pelo papa Francisco, numa exortação apostólica, eventualmente poderá estimular a verificação de caso a caso, para se aferir a responsabilidade subjetiva”. Ou seja: um eventual documento que o Papa Francisco porventura publique, em data incerta e não sabida, poderá estimular a avaliação caso a caso dos divorciados recasados — o que pode potencialmente levar os casais em segunda união a terem acesso à Eucaristia na própria paróquia onde residem! Tantas condicionantes, possibilidades, eventualidades, incertezas, indeterminações… ora, acaso isso é notícia? Em que mundo?

O mais perturbador disso tudo: nenhuma notícia diz que o Sínodo autorizou a comunhão aos divorciados recasados (primeiro porque o Sínodo, órgão consultivo, não pode “autorizar” nada e, segundo, porque, de fato, os documentos do Sínodo não mencionam em nenhum momento a possibilidade de admitir à comunhão eucarística os divorciados recasados) e, portanto, a rigor, todas as reportagens são formalmente verdadeiras. Mas o modo como elas foram escritas conduz o leitor incauto a imaginar que foram, sim, “abertas portas”, que estas portas são para o “acesso à eucaristia” dos divorciados recasados, que esta questão, outrora fechada, agora foi “aberta” pelo Sínodo e se está somente esperando a formalização pontifícia — que virá a qualquer momento! — para que os casais em segunda união possam, enfim, receber Nosso Senhor na Eucaristia. E, para quem não vai ler o Relatio Synodi (que, parece, só há em italiano…) nem esperar a Exortação Apostólica Pós-Sinodal, a impressão que fica é esta induzida pela mídia católica mesmo.

Esforcemo-nos um pouco para nos elevar acima da mediocridade que contaminou até mesmo a boa mídia católica. O que importa saber sobre o tema é, em resumo, o seguinte: o sínodo tem marcos teóricos muito sólidos, explicitados no próprio Relatio (nn. 42 – 46), entre os quais se destaca — como não poderia deixar de ser — a Familiaris Consortio de S. João Paulo II. Uma (re)leitura desse documento é de enorme importância para se compreender a Igreja hoje. Em particular o seu n. 84. Tudo, tudo ali se explica.

Senão vejamos: há um clamor popular e midiático enorme para que a Igreja se debruce sobre a questão dos divorciados recasados? Sim, trata-se de mal que se vai alastrando mesmo pelos ambientes católicos, e portanto “o problema deve ser enfrentado com urgência inadiável”.

Importa fazer com que a Igreja esteja mais preocupada em acolher do que em condenar? Sem dúvidas, porque a Igreja, “instituída para conduzir à salvação todos os homens e sobretudo os baptizados, não pode abandonar aqueles que – unidos já pelo vínculo matrimonial sacramental – procuraram passar a novas núpcias”.

Então, o que fazer? Estariam porventura estes excomungados? Absolutamente não; é um dever de toda a Igreja, dos pastores como dos fiéis, “ajudar os divorciados, promovendo com caridade solícita que eles não se considerem separados da Igreja, podendo, e melhor devendo, enquanto baptizados, participar na sua vida”. É fundamental que eles sejam “exortados a ouvir a Palavra de Deus, a frequentar o Sacrifício da Missa, a perseverar na oração, a incrementar as obras de caridade e as iniciativas da comunidade em favor da justiça, a educar os filhos na fé cristã, a cultivar o espírito e as obras de penitência para assim implorarem, dia a dia, a graça de Deus”.

Conceder-se-lhes-á, então, participar da Ceia Eucarística? Aí não. “Não podem ser admitidos, do momento em que o seu estado e condições de vida contradizem objectivamente aquela união de amor entre Cristo e a Igreja, significada e actuada na Eucaristia. Há, além disso, um outro peculiar motivo pastoral: se se admitissem estas pessoas à Eucaristia, os fiéis seriam induzidos em erro e confusão acerca da doutrina da Igreja sobre a indissolubilidade do matrimónio”.

Mas não existe nenhuma exceção? Sim, existe, uma exceção que precisa ser avaliada caso a caso: a daquelas pessoas que, não podendo, por justa causa, abandonar o cônjuge ilegítimo (digamos, por conta dos filhos pequenos que possuam), decidem, conquanto mantendo a habitação em comum, abster-se dos atos sexuais adulterinos. Assim, “[a] reconciliação pelo sacramento da penitência – que abriria o caminho ao sacramento eucarístico – pode ser concedida só àqueles que, arrependidos de ter violado o sinal da Aliança e da fidelidade a Cristo, estão sinceramente dispostos a uma forma de vida não mais em contradição com a indissolubilidade do matrimónio. Isto tem como consequência, concretamente, que quando o homem e a mulher, por motivos sérios – quais, por exemplo, a educação dos filhos – não se podem separar, «assumem a obrigação de viver em plena continência, isto é, de abster-se dos actos próprios dos cônjuges»”.

Pronto. Com isso, se responde perfeitamente às notícias acima referidas, sem margens para dúvidas ou más interpretações:

  • A questão da comunhão eucarística aos divorciados recasados está aberta? Não, não está aberta, porque São João Paulo II, em texto sobre o assunto ao qual o Sínodo contemporâneo faz expressa referência, já reafirmou a praxis eclesiástica, “fundada na Sagrada Escritura, de não admitir à comunhão eucarística os divorciados que contraíram nova união” — e não há necessidade de se ficar, a todo ano, a toda reunião, repetindo explicitamente as mesmas coisas (sob pena de elas “deixarem de valer”). Isso não faz sentido algum.
  • Mas então os divorciados recasados devem ser acolhidos na vida da Igreja? Sem dúvidas, como São João Paulo II já disse explicitamente, é dever de todos os católicos tudo fazer para que os divorciados recasados “não se considerem separados da Igreja, podendo, e melhor devendo, enquanto baptizados, participar na sua vida”.
  • E o que é que deve ser analisado caso a caso? Ora, deve-se analisar individualmente aquelas situações em que as pessoas, não podendo por razões graves abandonar o falso cônjuge, comprometem-se a tentar levar “uma forma de vida não mais em contradição com a indissolubilidade do matrimónio” — i.e., com a abstinência dos atos próprios dos casais.

Tudo isso é porventura novidade? Não, tudo isso consta em um texto do início da década de 80! Qual a razão do alvoroço, qual o motivo do alarde, como se S.S. o Papa Francisco estivesse fazendo alguma coisa inaudita em vinte séculos de Cristianismo? Todas essas coisas — de não estarem excomungados os divorciados recasados, da importância de os integrar à vida da Igreja, da inadmissibilidade de se conceder a Comunhão Eucarística aos que vivem maritalmente com alguém que não é o seu cônjuge legítimo e da necessidade de se avaliar, individualmente, os casos daquelas pessoas que quiserem abandonar as práticas conjugais mantendo, contudo, a habitação comum — já fazem parte das disposições normativas da Igreja Católica há mais tempo do que eu próprio tenho de vida! Se não são obedecidas, e se portanto precisam ser reforçadas, é uma outra história; mas não se diga que a Igreja não tem respostas ao problema do divórcio e nem que Ela está procurando, agora, do nada, soluções para estas questões.

A Igreja é Mãe, e não é de hoje que Ela é Mãe. Os filhos da Igreja são rebeldes, e não é de hoje que esta rebeldia grassa entre aqueles pelos quais Cristo verteu o Seu Sangue na Cruz. Mas a Igreja, Esposa Fiel de Cristo, não vai trair jamais a confiança do Seu Divino Esposo, e isto significa duas coisas: que Ela não vai abandonar os homens por cuja salvação Cristo morreu, por um lado; mas que, pelo outro lado, tampouco vai abandonar a Doutrina por meio da qual somente aqueles homens se podem salvar. Eventuais tentativas de obscurecer qualquer dessas verdades desfigura o rosto da Igreja de Nosso Senhor, e devem portanto ser combatidas.

Encerrou-se a Assembléia Extraordinária do Sínodo dos Bispos sobre a família. Mas, ao contrário do que a mídia insinua, não é necessário esperar para ver “o que o Papa vai fazer” com tudo isso. O documento normativo do Sínodo da Família, elaborado pelo Papa, já saiu em português: foi publicado aos 22 de novembro de 1981, e não há razões honestas para esperar nada diferente disso. Todas estas disposições aliás já podem — e devem — ser postas imediatamente em prática. Façamo-las conhecidas e efetivas. Não há tempo a perder.

No amor e na verdade

As manchetes ribombam mundo afora: Papa quer que divorciados casados de novo não sejam tratados como excomungadosPapa pede que divorciados não sejam tratados como excomungadosPapa: divorciados que casam novamente ‘não são excomungados’! Dir-se-ia alguma revelação fantástica, alguma novidade inaudita; trata-se, no entanto, do lugar-comum mais comezinho, que certamente todas as pessoas saberiam se tivessem prestado atenção em suas aulas de catequese – e que, com toda a certeza, os correspondentes de religião dos jornais tinham e têm obrigação de o saber de cor, se quiserem fazer jus ao trabalho que se propõem a fazer.

É evidente que os divorciados não estão “excomungados” (ao menos não pelo fato de serem divorciados recasados) e nem nunca o estiveram. Os adúlteros sempre foram merecedores das mais ásperas censuras, é fato, mas não me consta que tenham sido em alguma época fulminados de excomunhão – e, certamente, não o eram até ontem (ao contrário do que as manchetes dão a entender!), antes de a imprensa alardear como se fosse a maior novidade do mundo aquilo que os católicos sempre souberam.

Simplificando as coisas (uma vez que a similaridade entre as palavras “comunhão [eucarística]” e “excomunhão” pode levar a crer que não poder participar da comunhão eucarística é o mesmo que estar excomungado), existem dois tipos de pessoas: as que fazem parte da Igreja Católica e as que não fazem parte da Igreja Católica. A “excomunhão” é uma pena mediante a qual o sujeito, que fazia parte da Igreja, é d’Ela expulso e a Ela deixa de pertencer. Portanto, quem é excomungado não faz parte da Igreja Católica. Por não fazer parte da Igreja Católica, evidentemente, não pode participar dos Sacramentos, como não o podem um herege protestante, um pagão ou um ateu.

As pessoas que fazem parte da Igreja Católica – e aqui, por definição, está-se falando daquelas que não estão excomungadas – dividem-se entre as que estão em estado de graça e as que não estão em estado de graça. O estado de graça é a situação de amizade com Deus que se adquire com o batismo, se perde com o pecado mortal e se recupera com a confissão sacramental; portanto, quem comete pecado mortal e não se confessa não está em estado de graça. O adultério é pecado mortal. Os divorciados recasados estão em adultério. Logo, os divorciados recasados, enquanto não se confessarem, estão em pecado mortal, não estão em estado de graça.

Certos sacramentos – chamados sacramentos “de vivos” – exigem o estado de graça para serem licitamente recebidos. Exemplo máximo desta espécie de sacramentos é o Sacramento da Eucaristia, do qual S. Paulo falou que comia e bebia a própria condenação quem O comesse e bebesse indignamente. A recepção da Santíssima Eucaristia – a comunhão sacramental – exige o estado de graça. Quem está em pecado mortal não pode, portanto, comungar. Adultério é pecado mortal. Os divorciados recasados estão em adultério. Os divorciados recasados não estão em estado de graça e, portanto, não podem comungar.

Nem todo mundo que não pode comungar não o pode por não fazer parte da Igreja Católica! Quem não é católico (p.ex., quem está excomungado) não pode comunga, é evidente; mas quem não está em estado de graça, mesmo sendo católico, também não pode se aproximar da comunhão eucarística. Os divorciados recasados não podem comungar por conta deste segundo motivo. Não pelo primeiro. É óbvio.

Que isso não se trata de novidade nenhuma é coisa bastante fácil de se mostrar. Abra-se, por exemplo, a Sacramentum Caritatis. Exortação pós-sinodal, escrita há apenas oito anos. Ora, isso é já no terceiro milênio; não é crível que a realidade familiar contemporânea seja substancialmente diferente daquela de 2007. Pois bem. Lá, na década passada, um Sínodo dos Bispos já discutiu o “problema” da admissão dos divorciados recasados ao Sacramento da Eucaristia – que, hoje, quer-se fazer acreditar que é uma discussão importantíssima e inédita em vinte e um séculos de Cristianismo. Um Sínodo dos Bispos, dizia-se, já o discutiu um dia desses. E decidiu (negrito meu):

O Sínodo dos Bispos confirmou a prática da Igreja, fundada na Sagrada Escritura (Mc 10, 2-12), de não admitir aos sacramentos os divorciados re-casados, porque o seu estado e condição de vida contradizem objectivamente aquela união de amor entre Cristo e a Igreja que é significada e realizada na Eucaristia. Todavia os divorciados re-casados, não obstante a sua situação, continuam a pertencer à Igreja, que os acompanha com especial solicitude na esperança de que cultivem, quanto possível, um estilo cristão de vida, através da participação na Santa Missa ainda que sem receber a comunhão, da escuta da palavra de Deus, da adoração eucarística, da oração, da cooperação na vida comunitária, do diálogo franco com um sacerdote ou um mestre de vida espiritual, da dedicação ao serviço da caridade, das obras de penitência, do empenho na educação dos filhos (Sacramentum Caritatis, 29).

Ora, dizer que os divorciados recasados «continuam a pertencer à Igreja» é a mesmíssima coisa que dizer que eles «não são excomungados». O que Bento XVI disse há oito anos, o Papa Francisco repetiu-o agora. À época, a mídia fez um escarcéu porque o Papa dissera que o divórcio era una piaga; hoje, a mídia faz uma festa para ocultar que o Papa disse que é preciso acolher os divorciados recasados no amor e na verdade.

No amor e na verdade! A expressão se encontra na catequese pontifícia (o itálico é meu): «é necessário um fraterno e atento acolhimento, no amor e na verdade, para com os batizados que estabeleceram uma nova convivência depois do fracasso do matrimônio sacramental». Amor na verdade. Lembra alguma coisa?

«A caridade na verdade, que Jesus Cristo testemunhou com a sua vida terrena e sobretudo com a sua morte e ressurreição, é a força propulsora principal para o verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade inteira». Assim se inicia um outro documento de Bento XVI, a encíclica Caritas in Veritate. Tudo bem, é uma encíclica social. Mas veja-se se a introdução não serve como uma luva para as presentes celeumas a respeito de divorciados e acesso aos sacramentos:

Só na verdade é que a caridade refulge e pode ser autenticamente vivida. A verdade é luz que dá sentido e valor à caridade. Esta luz é simultaneamente a luz da razão e a da fé, através das quais a inteligência chega à verdade natural e sobrenatural da caridade: identifica o seu significado de doação, acolhimento e comunhão. Sem verdade, a caridade cai no sentimentalismo. O amor torna-se um invólucro vazio, que se pode encher arbitrariamente. É o risco fatal do amor numa cultura sem verdade; acaba prisioneiro das emoções e opiniões contingentes dos indivíduos, uma palavra abusada e adulterada chegando a significar o oposto do que é realmente (Caritas in Veritate, 3).

E ainda, a se grafar em faixas enormes a serem estendidas a cada vez que alguém vier falar em dar a comunhão aos divorciados recasados:

Um cristianismo de caridade sem verdade pode ser facilmente confundido com uma reserva de bons sentimentos, úteis para a convivência social mas marginais. Deste modo, deixaria de haver verdadeira e propriamente lugar para Deus no mundo (CV 4).

Eis, portanto, o que significa acolher «na verdade» – e outra coisa não é possível fazê-lo significar. Não dentro da Igreja de Nosso Senhor – Aquela que, «fundada sobre Cristo, não obstante as inúmeras tempestades e os nossos muitos pecados, permanece fiel ao depósito da fé no serviço, porque a Igreja não é dos Papas, dos Bispos, dos padres e nem mesmo dos fiéis; é só e unicamente de Cristo» (Papa Francisco na homilia de 29/06/2015).

Decerto o mundo, inimigo da Igreja, havia de tentar obscurecer a mensagem do Evangelho; decerto a mídia anticlerical haveria de tentar semear a confusão. Não é a primeira vez, nem será a última. O que importa aos homens é permanecer firmes na Verdade, e não dar ouvidos às opiniões levianas que saem na mídia. Porque a Igreja, que não é nem mesmo dos Papas, muito menos o é da imprensa. Muito menos o é das reivindicações da moda. Por mais que rujam os demônios, a Igreja é e vai continuar sempre sendo «só e unicamente de Cristo». E, por mais que se tente, ninguém será capaz de vencer a força desta verdade.

Fala-se muito em como a Igreja deveria se portar; ninguém quer ouvir como a Igreja ensina que os homens devem proceder. Não engrossemos o coro dos primeiros. Ouvir a voz da Igreja outra coisa não é que ouvir a voz de Cristo. E felizes – mil vezes felizes! – os que, ouvindo esta Doutrina, puserem-na em prática.

As feridas que precisam ser curadas

Não obstante o excelente trabalho que a Canção Nova vem fazendo (já há alguns anos!) com a tradução dos discursos, homilias, audiências gerais e tudo o que envolve o Santo Padre, há uma pequena crítica que precisa ser feita. No último dia 18 de outubro, no encerramento do Sínodo dos Bispos, o Papa Francisco pronunciou uma extraordinária homilia. Quase que imediatamente, com a celeridade que lhe é própria, a Canção Nova publicou a versão em português do texto que, por ter sido a primeira, foi provavelmente a única a que muitos católicos tiveram acesso. No entanto, a tradução apresentada pela comunidade estava truncada em um ponto – justamente um dos mais bonitos do texto! -, o qual não foi (acabei de consultar) ainda corrigido até o presente momento. As mensagens que enviei através do site ficaram sem resposta.

Foi um erro muito simples, certamente de deleção involuntária de um par de linhas, que no entanto tornou o trecho da mensagem pontifícia obscuro e lhe tirou parte considerável da sua força. A versão que está no site da Canção Nova – assim desde a semana subsequente ao pronunciamento papal – é a seguinte:

cancaonova-francisco

E a versão correta e oficial, que atualmente já consta no site da Santa Sé, é a seguinte (destaquei, em azul, o texto que foi inadvertidamente cortado na tradução pioneira da Canção Nova):

Momentos de consolação, graça e conforto, ouvindo os testemunhos das famílias que participaram no Sínodo e compartilharam connosco a beleza e a alegria da sua vida matrimonial. Um caminho onde o mais forte se sentiu no dever de ajudar o menos forte, onde o mais perito se prestou para servir os demais, inclusive através de confrontos. Mas, tratando-se de um caminho de homens, juntamente com as consolações houve também momentos de desolação, de tensão e de tentações, das quais poderíamos mencionar algumas possibilidades:

— uma: a tentação do endurecimento hostil, ou seja, o desejo de se fechar dentro daquilo que está escrito (a letra) sem se deixar surpreender por Deus, pelo Deus das surpresas (o espírito); dentro da lei, dentro da certeza daquilo que já conhecemos, e não do que ainda devemos aprender e alcançar. Desde a época de Jesus, é a tentação dos zelantes, dos escrupulosos, dos cautelosos e dos chamados — hoje — «tradicionalistas», e também dos intelectualistas.

— A tentação da bonacheirice destrutiva, que em nome de uma misericórdia enganadora liga as feridas sem antes as curar e medicar; que trata os sintomas e não as causas nem as raízes. É a tentação dos «bonacheiristas», dos temerosos e também dos chamados «progressistas e liberalistas».

— A tentação de transformar a pedra em pão para interromper um jejum prolongado, pesado e doloroso (cf. Lc 4, 1-4) e também de transformar o pão em pedra e lançá-la contra os pecadores, os frágeis e os doentes (cf. Jo 8, 7), ou seja, de o transformar em «fardos insuportáveis» (Lc 10, 27).

— A tentação de descer da cruz, para contentar as massas, e não permanecer nela, para cumprir a vontade do Pai; de ceder ao espírito mundano, em vez de o purificar e de o sujeitar ao Espírito de Deus.

— A tentação de descuidar o «depositum fidei», considerando-se não guardiões mas proprietários e senhores ou, por outro lado, a tentação de descuidar a realidade, recorrendo a uma terminologia minuciosa e uma linguagem burilada, para falar de muitas coisas sem nada dizer! Acho que a isto se chamava «bizantinismos»…

As razões, enfim, pelas quais estou dedicando tanto espaço a esmiuçar essa banalidade são duas:

i) eu considero bastante sério o trabalho de tradução da Canção Nova, já o recomendei aqui no Deus lo Vult! e em outros foros, acompanho-o com freqüência e a muito (senão à maior parte) das notícias corriqueiras envolvendo o Sumo Pontífice eu tenho acesso mediante o citado portal; por isso, uma má tradução nele apresentado tem o desagradável efeito de esconder, dos seus leitores habituais, a mensagem correta (eu próprio só percebi essa falha por puro acaso, quando alguém, no Facebook, chamou-me a atenção para a versão em outro idioma que estava diferente), o que tenho certeza de não ser o objetivo da comunidade; e

ii) a passagem é verdadeiramente magnífica para responder à questão – com tanto açodamento debatida nos últimos meses! – da comunhão dos divorciados recasados, e o faz com imagens fortes extremamente eloquentes: o que seria uma tal autorização senão tratar os sintomas «e não as causas nem as raízes»? O que seria semelhante mudança de disciplina senão capitular diante da tentação demoníaca e, por não suportar o calor do deserto, dar ouvido a Satanás e buscar transformar, por conta própria e à revelia da vontade de Deus, as pedras em comida?

Esta é a resposta que a mídia laica não faz a menor questão de divulgar – perceberam o quanto ela ficou pianinha depois do fim do Sínodo? -, esta é a mensagem que nós, por outro lado, temos a obrigação de difundir. Satanás ronda à nossa volta, ávido por nos fazer chamar o mal de bem, o justo de injusto, as pedras de pães…! É importante lhe darmos um rotundo e sonoro “não!”. É importante divulgarmos a Doutrina da Igreja, quando ninguém mais parece interessado em lhe dar a conhecer.

A mídia quer que a Igreja troque a doutrina de Cristo pelas demandas imorais modernas; qual Satanás, insta-A a transformar as pedras em pão para Lhe matar a fome – para acabar com o sofrimento dos que tiveram o seu matrimônio destruído… – e a cobrir as feridas purulentas ainda, escondendo-as, apenas para as tirar de vista, por não lhes conseguir suportar a fealdade. Ora, tal a Igreja não pode jamais aceitar, e é da mais alta importância que todos o saibam com clareza. Para que escutem Aquela somente que possui palavras de Vida Eterna. Para que – trocando a voz da Igreja pela do mundo – não morram de gangrena ao abafar as próprias feridas abertas, não quebrem os dentes ao morder as pedras que têm junto a si.