O amor à verdade e o ódio à mentira

– Depois disto, portanto, repara se é necessário que, além desta qualidade [sempre apaixonados pelo saber na sua totalidade], haja outra na sua natureza, se [os filósofos] quiserem ser tais como os descrevemos.
– Qual?
– A aversão à mentira e a recusa em admitir voluntariamente a falsidade, seja como for, mas antes odiá-la e pregar a verdade.
– É natural – disse ele.
– Não só é natural, meu amigo, mas é imperioso que uma pessoa que seja por natureza enamorada preze tudo aquilo que se aparentar ou relacionar com a coisa amada.
– Exatamente.
– Ora, poderá encontrar-se algo de mais relacionado com a sabedoria do que a verdade?
– Como poderia ser? – perguntou ele.
– É possível que uma mesma criatura seja ao mesmo tempo amiga da sabedoria e da mentira?
– De modo algum.
[Platão, “A República”, Livro VI (484a-d); Editora Martin Claret, São Paulo, 2006, p. 180]

A verdade e a aversão à verdade vieram ao mundo juntas. Assim que a verdade apareceu, foi olhada como inimiga.
[Tertuliano, “Apologia”, cap. VIII]

O Gênero Humano, após sua miserável queda de Deus, o Criador e Doador dos dons celestes, “pela inveja do demônio,” separou-se em duas partes diferentes e opostas, das quais uma resolutamente luta pela verdade e virtude, e a outra por aquelas coisas que são contrárias à virtude e à verdade. Uma é o reino de Deus na terra, especificamente, a verdadeira Igreja de Jesus Cristo; e aqueles que desejam em seus corações estar unidos a ela, de modo a receber a salvação, devem necessariamente servir a Deus e Seu único Filho com toda a sua mente e com um desejo completo. A outra é o reino de Satanás, em cuja possessão e controle estão todos e quaisquer que sigam o exemplo fatal de seu líder e de nossos primeiros pais, aqueles que se recusam a obedecer à lei divina e eterna, e que têm muitos objetivos próprios em desprezo a Deus, e também muitos objetivos contra Deus.

Este reino dividido Sto. Agostinho penetrantemente discerniu e descreveu ao modo de duas cidades, contrárias em suas leis porque lutando por objetivos contrários; e com sutil brevidade ele expressou a causa eficiente de cada uma nessas palavras: “Dois amores formaram duas cidades: o amor de si mesmo, atingindo até o desprezo de Deus, uma cidade terrena; e o amor de Deus, atingindo até o desprezo de si mesmo, uma cidade celestial” [De civ. Dei, 14, 28 (PL 41, 436)]. Em cada período do tempo uma tem estado em conflito com a outra, com uma variedade e multiplicidade de armas e de batalhas, embora nem sempre com igual ardor e assalto.
[Papa Leão XIII, Humanus Genus, 1-2]

Muitas pessoas não entendem o que é o catolicismo, não entendem o que é a Igreja, não entendem qual o papel que compete aos católicos que são soldados de Cristo na Igreja Militante, não entendem o valor da intransigência nem a dupla perspectiva sobre a qual precisa ser encarado o amor. É de se lamentar que, entre essas pessoas, contem-se não poucos “católicos”, que passam a sua vida sem se esforçar para fazer aquilo que lhes compete fazer ou – pior ainda – perseguindo os católicos que se esforçam para serem menos indignos do nome de “cristãos” que lhes foi dado no seu batismo. Esforcemo-nos um pouco para, à luz da religião cristã, analisarmos melhor cada uma dessas coisas.

O catolicismo é a religião verdadeira com exclusão de todas as outras, é a Sã Doutrina que o próprio Deus legou aos seres humanos, ensinando-lhes tudo o que eles precisavam saber sobre Si para chegarem ao conhecimento de Deus e, por conseguinte, à Salvação. Não se trata, pois, de um fruto da investigação humana, de uma filosofia elaborada pelos maiores gênios da humanidade, mas – ao contrário – da Revelação do próprio Deus que, como é a própria Verdade, não pode enganar-Se e nem nos enganar. O catolicismo é a única religião verdadeira, capaz de religar o homem pecador a Deus infinitamente santo.

A Igreja é a Guardiã infalível destas verdades que – repetimos – foi o próprio Deus que revelou aos seres humanos e, por conseguinte, é isenta de todo erro. A Igreja é instituição divina, é a única obra encontrada neste mundo que foi realizada não por mãos humanas, mas pelo próprio Deus. É uma espécie de milagre permanente, farol seguro a iluminar a História mostrando aos homens de todos os tempos e lugares o único caminho verdadeiro – estreito, como disse Nosso Senhor, mas verdadeiro sem dúvidas, pela Sua própria autoridade divina – que os homens precisam seguir se quiserem conhecer verdadeiramente ao Deus Criador dos Céus e da Terra.

Os católicos são os filhos da Igreja, a quem Deus concedeu a imerecida graça de conhecerem os Seus desígnios e as verdades sobre Ele que Lhe aprouve revelar, e são também os soldados de Cristo, i.e., aqueles a quem compete o singularíssimo papel de guardar a Verdade Revelada e fazê-lA conhecida de todos os homens, pois todos os homens têm necessidade absoluta d’Ela, para serem salvos. Têm portanto este duplo papel todos aqueles que foram chamados à dignidade de filhos de Deus pelo Batismo: o de anunciarem o Evangelho e o de defenderem a Sã Doutrina da Salvação, defenderem a Igreja, defenderem o catolicismo, de  todos os ataques que – desde que o mundo é mundo – os inimigos da Religião Verdadeira dirigem aos filhos de Deus.

A intransigência católica é, portanto, uma espécie de legítima defesa da Verdade ameaçada pelo erro, é a única atitude coerente diante de uma Doutrina que se sabe certa e sem mistura de erro algum, que não foi produzida por homens falíveis mas entregue aos homens pelo próprio Deus infalível. Uma tal Doutrina deve, necessariamente, ser defendida de todos os erros, deve ser guardada com a máxima diligência, cuidando zelosamente para que, n’Ela, não se introduzam elementos falsos nem Lhe sejam retirados verdadeiros. A Verdade é intrinsecamente intrasigente, por uma questão de princípios lógicos os mais elementares, que dizem que duas coisas contraditórias não podem ser ao mesmo tempo verdadeiras. Sabendo-se, pois, que a Doutrina Católica é verdadeira – porque, repetimos, Ela foi-nos entregue pelo próprio Deus que, sendo Ele mesmo a própria Verdade, não pode enganar-Se e nem nos enganar – não se pode admitir, sob nenhuma hipótese, que Ela seja contaminada com doutrinas espúrias de autenticidade duvidosa.

De tudo isto, portanto – e aqui encaixamos todas as citações que foram postas em epígrafe -, segue-se que o amor à Verdade precisa ser encarado também sob o aspecto do ódio à mentira. Não ama verdadeiramente a Deus quem, ao mesmo tempo, é amigo dos inimigos de Deus; não tem verdadeiro amor à Verdade aquele que não A defende dos erros, colocando-A em pé de igualdade com os mais diversos delírios e opiniões. O católico, cristão militante, membro da Igreja de Nosso Senhor, defensor intransigente da Sã Doutrina revelada por Deus, tem uma espada de dois gumes que deve manejar com maestria para cumprir com o seu papel: o amor à Verdade e o ódio à Mentira. O amor à Igreja e o ódio à anti-Igreja. O amor à Cidade de Deus e o ódio à Cidade dos Homens. O amor aos filhos da Mulher e o ódio aos filhos da Serpente.

Eis, pois, postos os princípios que devem nortear a atitude dos católicos em todos os âmbitos de suas vidas. O amor verdadeiro não é um amor “frouxo”, romantizado e incoerente como o pregam não poucas pessoas nos nossos dias. O amor precisa ser verdadeiro, precisa desejar o bem da pessoa amada e detestar tudo o que lhe pode provocar mal. O amor à Verdade exige o ódio à Mentira – um não pode existir verdadeiramente sem o outro. E, considerando tanto quanto foi dito, considerando que a História é um campo dividido ao meio onde combatem entre si os filhos de Deus e os filhos da Serpente – como a Igreja sempre ensinou -, fica evidente o tamanho da responsabilidade que os católicos têm. Devem defender a Deus, trabalhando diligentemente para que o Evangelho da Salvação seja cada vez mais conhecido pelos homens que d’Ele necessitam. Devem arrancar almas à Satanás, brandindo corajosamente os argumentos católicos contra as falácias das almas iludidas pela astúcia do Demônio, a fim de derrotar a insídia diabólica e possibilitar, com a graça de Deus, uma conversão. Devem se pôr na brecha das muralhas da Igreja, defendendo-A valorosamente dos ataques a Ela dirigidos por tantos quanto militam nas hostes do Príncipe das Trevas. Devem, em suma, portarem-se como cristãos autênticos.

Esta luta – em defesa da Verdade, pela (verdadeira) instauração do Reino de Deus sobre a terra – é a mais importante e a mais fundamental de todas as lutas, porque os problemas que afligem o mundo moderno são apenas sintomas do problema de fundo, do problema capital, que é de natureza religiosa. Não tenhamos dúvidas disso: o Evangelho de Nosso Senhor é o único remédio verdadeiro a ser ministrado à humanidade enferma. Acreditemos n’aquilo que disse Platão há mais de dois milênios: “tendo a verdade por corifeu, não creio que se possa dizer que um coro de vícios segue atrás dela. […] Mas que vem atrás dela uma maneira de ser sã e justa” [op. cit., p. 186]. Confessemos com destemor esta verdade evidente, também repetida por Santo Agostinho e lembrada pelo grande Papa Leão XIII:

“Os que dizem que a doutrina de Cristo é contrária ao bem do Estado dêem-nos um exército de soldados tais como os faz a doutrina de Cristo, dêem-nos tais governadores de províncias, tais maridos, tais esposas, tais pais, tais filhos, tais mestres, tais servos, tais reis, tais juízes, tais contribuintes, enfim, e agentes do fisco tais como os quer a doutrina cristã! E então ousem ainda dizer que ela é contrária ao Estado! Muito antes, porém, não hesitem em confessar que ela é uma grande salvaguarda para o Estado quando é seguida” (Epist. 138 (al. 5) ad Marcellinum, cap. II, n. 15).
[Santo Agostinho, apud Leão XIII, Immortale Dei, 27]

Esforcemo-nos, pois, com o auxílio da Virgem Santíssima, Aquela que venceu sozinha todas as heresias do mundo inteiro, para sermos menos indignos das honras que nos foram conferidas por ocasião do nosso Batismo. Elevemos bem alto o estandarte de Cristo Rei, carregando em nossas vidas o Evangelho de Jesus Cristo, sendo testemunho vivo do poder do Crucificado. Militemos com destemor pela Igreja de Nosso Senhor, a fim de que a Verdade triunfe sobre os erros e todos os homens possam conhecer a Verdade que liberta, a Sã Doutrina da Igreja, a Fé Católica e Apostólica, para a maior glória de Deus.

O egoísmo e a prática do bem

Desço para fumar um cigarro. A televisão está ligada. Uma entrada ao vivo de um plantão jornalístico chama-me a atenção (não, não tem nada a ver com os ETs de hoje); trata-se de um caso (até meia hora atrás, pelo menos) ainda em curso de um sujeito de Santo André que está mantendo, desde ontem, duas adolescentes reféns em sua casa. O motivo? Decepção amorosa; uma das meninas (tem quinze anos) é ex-namorada dele (que tem 22 anos).

Vinte e dois anos! Por causa do fim de um relacionamento, trocou as palavras doces dos apaixonados pelas ameaças sob a mira de um revólver. E eu cá, com meus botões, não consigo deixar de pensar que é preciso ter sido uma criança muito mimada – acostumada sempre a ter tudo – para fazer semelhante insensatez. Por causa de uma menina! O jovem Werther pode dizer o que quiser, mas não vai mudar os fatos: há uma clara hierarquia de valores na realidade, e a “paixão” não está no ponto mais alto dela.

Por causa do fim de um namoro! Alguém pode dizer que este sujeito é um “egoísta” que “só pensa em si”; não é de todo falso, mas também não é de todo verdade. Na verdade, se esse sujeito pensasse o suficiente em si, não faria uma besteira dessas. Se ele pensasse o suficiente em si, perceberia que está se prejudicando com esta atitude insana. Se ele pensasse bastante em si, deixaria de fazer a sua vida orbitar em torno desta menina, por mais que ela lhe fosse cara.

Raul Seixas, evidentemente, não é referência em matéria espiritual, mas ele de certa maneira percebeu este paradoxo do Cristianismo (embora não o tenha conseguido resolver completamente) em uma música chamada “Carpinteiro do Universo”. Há uma frase que sintetiza perfeitamente isto sobre o que estamos falando: “o meu egoísmo é tão egoísta que o auge do meu egoísmo é querer ajudar”. Na visão do rockeiro baiano, então, fazer o bem às outras pessoas é a atitude mais coerente para quem pensa demasiado em si mesmo, porque ajudar é bom também para quem ajuda. Platão disse a mesma coisa por outras palavras quando, pela boca de Sócrates (acho que é n’A República), disse que “se o desonesto soubesse a vantagem de ser honesto, ele seria honesto ao menos por desonestidade”. Isso tudo não deixa de ser verdade, embora só aborde um dos lados da questão; mas só este lado já seria suficiente para impedir a tragédia em Santo André.

Qual o problema, então? Acaso as pessoas são pouco egoístas, é isso? Na minha opinião, não. Primeiro, porque ajudar ao próximo não é egoísmo simpliciter (falo sobre isso mais abaixo); segundo, porque existe a – chamemo-la desta vez assim – “desordem no egoísmo”, que é (na minha opinião) o que deveria ser chamado egoísmo propriamente. Porque egoísmo – aqui está o ponto da questão não contemplado por gregos e baianos – não é somente pensar em si, mas pensar em si da maneira errada. Todo mundo está obrigado a pensar em si, e a própria Doutrina Católica o afirma, quando diz que todo mundo está obrigado a cuidar da salvação da própria alma. Mas também é verdade que ninguém pode ser egoísta. As duas afirmações, portanto, seriam contraditórias se o egoísmo fosse simplesmente uma preocupação consigo mesmo. Acontece que não há nenhuma contradição.

O homem deve atribuir a si próprio a importância que ele tem: nem mais, nem menos. Da mesma forma como a humildade não é a “virtude” por meio da qual uma pessoa bonita se olha no espelho e diz que é feia, ou um homem inteligente diz para si próprio que é burro, o egoísmo não é pensar demasiadamente em si, e sim pensar desordenadamente em si. Faz toda a diferença. O rapaz de Santo André, se ele pensasse muito em si, mas pensasse atribuindo os valores corretos às variáveis envolvidas, não ia fazer a loucura que está fazendo. O problema não é o “egoísmo” entendido como auto-preocupação, e sim como desordem na atribuição de valores à realidade.

Esta desordem pode até fazer com que alguém, num caso concreto, busque de maneira egoísta o prazer que se sente ao ajudar às demais pessoas; mas – e aqui a caridade afasta-se da (bem ou mal intencionada) mera filantropia -, se permanece o vício radical [a desordem na apreciação dos bens], cedo ou tarde todo o castelo de aparências irá ruir. Somente pensando em si próprio, e pensando corretamente, é possível seguir caminhando; pois a Cruz sem Cristo é simplesmente masoquismo, e a teoria do “egoísmo egoísta” de Raul Seixas só funcionaria plenamente em um mundo de masoquistas (que, evidentemente, não é o mundo real). Só a Doutrina Católica é capaz de mover o mundo; a Cidade de Deus é construída pelo amor a Deus até o desprezo de si, e não sobre o amor a si até o desprezo de si. Porque, via de regra, o amor a si “sozinho” leva somente ao desprezo de Deus, e não ao desprezo de si. Amar a Deus e ao próximo por amor a Deus (e o “primeiro próximo” de cada um de nós somos nós mesmos), eis a fórmula da caridade, eis o mandamento deixado por Jesus, eis a única força capaz de mudar o mundo.

P.S.: Conclusão do arrazoado: se não estiver radicada em Cristo (ou ao menos no “desejo implícito de Deus” para os casos de Ignorância Invencível), toda filantropia é egoísmo; caso esteja, é caridade, e tertium non datur. Não é verdade, portanto, que o egoísmo gere ou mesmo que possa gerar a caridade; duas realidades mais antagônicas não pode haver.