A verdadeira intransigência

Esta Igreja, constituída e organizada neste mundo como sociedade, é na Igreja católica, governada pelo sucessor de Pedro e pelos Bispos em união com ele, que se encontra, embora, fora da sua comunidade, se encontrem muitos elementos de santificação e de verdade, os quais, por serem dons pertencentes à Igreja de Cristo, impelem para a unidade católica.
[Lumen Gentium, 8 – grifos meus]

Haec Ecclesia, in hoc mundo ut societas constituta et ordinata, subsistit in Ecclesia catholica, a successore Petri et Episcopis in eius communione gubernata, licet extra eius compaginem elementa plura sanctificationis et veritatis inveniantur, quae ut dona Ecclesiae Christi propria, ad unitatem catholicam impellunt.
[Idem – texto em latim]

Sejamos claros desde o princípio: a Igreja Católica é depositária fiel de uma Doutrina, legada diretamente por Deus, por cuja integridade deve zelar e em cuja transmissão sem acréscimos nem recortes deve Se empenhar até a volta gloriosa de Jesus Cristo, Nosso Senhor. Esta é uma atribuição absolutamente fundamental da Igreja, sem a qual Ela trairia o Seu Divino Fundador e perderia a Sua razão de existir. De modo que é dever da Igreja como um todo e de cada católico em particular ser completamente intransigente na defesa do Depositum Fidei, não tolerando de modo algum nenhuma alteração n’Aquilo que tem o próprio Deus como Autor. Neste sentido, diz São Josemaría Escrivá:

A transigência é sinal certo de não se possuir a verdade. – Quando um homem transige em coisas de ideal, de honra ou de Fé, esse homem é um homem… sem ideal, sem honra e sem Fé.
[Caminho, 394]

Todavia, é o mesmo santo que acrescenta:

Sê intransigente na doutrina e na conduta. – Mas suave na forma. – Maça poderosa de aço, almofadada.
– Sê intransigente, mas não sejas cabeçudo.
[Caminho, 397 – grifos meus]

A “forma” à qual se refere aqui o santo é a maneira como as coisas são ditas. Trata-se de uma aplicação concreta de um princípio mais geral, o qual poderia ser formulado da seguinte maneira: a forma não é o conteúdo. Ou ainda: mudar a forma não implica necessariamente em mudar o conteúdo. E, arrematando: a intransigência católica é quanto ao conteúdo, e não quanto à forma.

O mesmíssimo ensinamento podemos encontrar em São Francisco de Sales:

Uma mulher por nome Glicéria sabia distribuir as flores e formar um ramalhete com tanta habilidade que todos os seus ramalhetes pareciam diferentes uns dos outros. (…) De modo semelhante o Espírito Santo dispõe e arranja com uma admirável variedade as lições de virtude que nos dá pela boca e pela pena de seus servos. É sempre a mesma doutrina, apresentada de mil modos diferentes. Na presente obra outro fim não temos em mira senão repetir o que já tantas vezes se tem dito e escrito sobre esta matéria. São as mesmas flores, benévolo leitor, que te venho ofertar aqui; a única diferença que há é que o ramalhete está disposto diversamente.
[São Francisco de Sales, “Filotéia”, Prefácio de S. Francisco de Sales. Vozes, 16ª edição, 2008]

Certamente é útil considerar ainda as seguintes palavras de Boulenger:

O papa usa o seu poder doutrinal – a) ora por definições solenes sobre a fé ou os costumes: – b) ora por outro meio qualquer que lhe pareça mais idôneo para instuir os fiéis. (…) Seja qual for o modo que o Sumo Pontífice adotar para dirigir-se aos fiéis, suas palavras sempre devem achar, por parte de todos, o eco mais afetuoso e dócil, a submissão mais sincera e respeitosa.
[Boulenger, “Doutrina Católica – Manual de Instrução Religiosa (adaptado); Primeira Parte: O DOGMA”. 18ª lição: Constituição da Igreja]

E, por fim, sobre este assunto, é-nos salutar procurar ainda o que se diz no Código de Direito Canônico:

A Doutrina Cristã seja apresentada de modo apropriado à condição dos ouvintes e, em razão dos tempos, adaptada às necessidades.
(CIC, Livro III – Do múnus de ensinar da Igreja. Cân. 769)

O fiel católico tem um duplo dever com relação à Doutrina que recebeu da Igreja: por um lado, precisa ser-lhe fiel mas, por outro lado, precisa fazê-la conhecida dos homens de todos os tempos e lugares. Precisa ser apóstolo e, no cumprimento desta exigência, pode e deve procurar a melhor maneira de fazer a Verdade ser compreendida em Sua integridade. Pode e deve – como nos ensina o Papa Paulo VI – [o]bedece[r] a exigências ensinadas pela experiência, escolhe[r] os meios convenientes, não se prende[r] a vãos apriorismos nem se fixa[r] em expressões imóveis, quando estas tenham perdido o poder de interessar e mover os homens (Ecclesiam Suam, 48). Repitamos: a fidelidade católica é – em última instância – às realidades expressas pelas fórmulas, e não às fórmulas em si. Que isto seja bem entendido, antes que venham as acusações de que estas idéias incorrem na condenação da Pascendi: não defendemos que se devam “lançar às favas” as fórmulas doutrinárias existentes, nem que elas sejam inúteis, e nem nada disso. Acontece que, se por um lado é certo que as expressões clássicas que nos foram legadas pela Igreja são santas e isentas de erro (e isso ninguém pode negar), por outro lado elas não esgotam a capacidade expressiva humana de maneira que não haja possibilidade de se dizer as mesmas coisas de outra forma. A Igreja sempre condenou que fossem ditas outras coisas distintas daquilo que Ela ensina; mas nunca proibiu que essas mesmas coisas fossem ditas de formas distintas.

Há um clássico (e claro) exemplo disso numa passagem da vida de São Paulo. Pregando certa vez aos atenienses, no Areópago, disse o Apóstolo:

Percorrendo a cidade e considerando os monumentos do vosso culto, encontrei também um altar com esta inscrição: A um Deus desconhecido. O que adorais sem o conhecer, eu vo-lo anuncio!
(At 17, 23)

É evidente que Iahweh não é um “Deus desconhecido” (é, ao contrário disso, o Deus que Se revela) e é também evidente que São Paulo não está fazendo “sincretismo religioso” e dizendo que os pagãos já adoravam ao Deus Verdadeiro. Trata-se, ao invés disso, de uma maneira diferente (de oferecer um ramalhete disposto diversamente, diria São Francisco de Sales) de falar sobre o Deus de Abraão e de fazer com que os atenienses entendessem melhor o anúncio do Evangelho. Com isso, alguns homens aderiram a ele e creram (At 17, 34). Se São Paulo não tivesse o discernimento de “traduzir” as expressões do mundo judaico para a realidade pagã grega (que era o seu público-alvo), talvez estes pagãos não se tivessem convertido ao Evangelho. E fica, assim, o ensinamento: é fundamental não se desviar da Doutrina, mas é também fundamental fazer-se entender.

Há um outro exemplo na História da Igreja onde resplandece com clareza o erro de se apegar com intransigência meramente às fórmulas. Trata-se de uma das questões que está relacionada com o Cisma do Oriente do século XI: a questão do Filioque. Como todos sabem, o I Concílio de Constantinopla completou o Credo de Nicéia (Concílio Ecumênico anterior), dando origem ao que passou a ser chamado de Credo Niceno-Constantinopolitano. De acordo com este Concílio:

And [we believe] in the Holy Ghost, the Lord and Giver-of-Life, who proceeds from the Father, who with the Father and the Son together is worshipped and glorified, who spoke by the prophets.
[First Council of Constantinople (A.D. 381) – grifos meus]

O Espírito Santo, conforme diz o Segundo Concílio Ecumênico da História da Igreja, procede do Pai. E, no Concílio de Calcedônia (IV Concílio Ecumênico – 451 AD), a Igreja determinou o quanto segue:

Na verdade, este Símbolo [o Niceno-Constantinopolitano], sábio e salutar, bastaria, pela graça de Deus, para fazer conhecer perfeitamente e confirmar as verdades da Fé. Com efeito, este Símbolo dá um ensinamento perfeito a respeito do Pai, do Filho, do Espírito Santo e aos que o acolhem com fé ele mostra o que é a encarnação do Senhor.
[…]
Depois de ter formulado tudo isto com toda a exatidão e atenção, determinou o sagrado Concílio Ecumênico que já não é lícito a ninguém proferir e muito menos redigir ou compôr outra profissão de fé, ou pensar ou ensinar de outra forma.
[Definição de Fé do Concílio de Calcedônia, in “Documentos dos primeiros oito Concílios Ecumênicos”, tradução de Mons. Otto Skrzypczac. 2. ed. revista e ampliada, EDIPUCRS, Porto Alegre, 2000)

Todavia, a princípio pontualmente e, após o século XI, de maneira institucional na Igreja, o Filioque (o Espírito Santo procede do Pai e do Filho) foi introduzido no Símbolo. Mais detalhes podem ser visto neste artigo, mas o que nos interessa agora é o seguinte: a fórmula original (qui ex Patre procedit) foi alterada, no decorrer dos séculos, dando origem assim à fórmula atual (qui ex Patre Filioque procedit). Oras, isto não significa, evidentemente, que o conteúdo do Depositum Fidei foi alterado [posto que afirmar isso é afirmar que as portas do Inferno prevaleceram sobre a Igreja]; então, significa que a Igreja reconhece a Sua potestade de exprimir as verdades de Fé com as fórmulas que julgar por bem prescrever. O acréscimo do Filioque foi um dos motivos alegados pelos orientais para o Grande Cisma do século XI. Afirmar, portanto, que a Igreja não pode mudar a maneira de expressar a Doutrina – porque a Doutrina em Si é inalterável, mas o modo de exprimi-la, não – é, assim, coisa de cismático ortodoxo, e não de católico romano.

Concluamos: se os santos reconhecem, com palavras e gestos, a licitude de se pregar o Evangelho da maneira mais adequada ao ouvinte; se o Direito Canônico prescreve a mesma coisa; se os autores dos manuais clássicos reconhecem que o Papa usa o seu poder doutrinal por qualquer meio que lhe pareça conveniente; se há, na História da Igreja, precedentes para a substituição, por parte do Magistério, de uma fórmula doutrinária válida por outra igualmente válida; se é assim, então, não há motivo algum para que se questione a expressão utilizada pelo Concílio Vaticano II, posta em epígrafe, segundo a qual a Igreja de Cristo subsiste (subsistit in, ao invés de est, como já fora anteriormente definido) na Igreja Católica.

De maneira análoga ao que ocorre com o Credo de Constantinopla, a nova expressão não “revoga” a antiga; explicita-a, complementa-a, di-la de outra maneira, mas não a contradiz. Permanece verdade que a Igreja de Cristo é (est) a Igreja Católica, e o subsistit in não vem abrogar e nem muito menos condenar a expressão anterior. Os que defendem semelhante tese – quer para apoiá-la, como é o caso dos modernistas, quer para condená-la, como é o caso dos rad-trads – incorrem em grave erro, ou por defenderem que a Doutrina pode ser alterada, ou por postularem que o Papa não tem autoridade para exprimir as mesmas verdades de Fé diversamente das fórmulas consagradas pelos que o precederam. Contra ambos ergue-Se a Igreja, único farol seguro a guiar constantemente no meio das tempestades da vida. Acheguemo-nos a Ela e, em Seu seio, saibamos estar ao abrigo de todos os erros e heresias, porque é ouvindo-Lhe a voz e respondendo-Lhe docilmente que estaremos no caminho estreito que conduz à Salvação e à Glória, na fidelidade a Jesus Cristo Nosso Senhor; fidelidade esta que não se consegue a não ser no amor e na submissão filial à Igreja Católica, Esposa de Cristo, nossa Mãe e nossa Glória.