[OFF] Eu, com câncer (VII): Ultrapassando a metade do caminho

Faz quase um mês do meu último off-topic sobre meu linfoma. Dizem que as notícias ruins chegam a galope solto, e há uma certa verdade na sabedoria popular: estas últimas semanas foram as que eu passei de maneira mais tranquila. A falta de notícias aqui no Deus lo Vult! era reflexo da relativa calmaria na qual me encontrava nesses dias.

Fiz meu terceiro ciclo de QT no dia 10 de fevereiro; na véspera tivera alta do hospital para tomar Clexane em casa, uma vez que meu INR ainda não estava estabilizado e eu precisava fazer a quimio na clínica (que não era no hospital). Os dias seguintes foram um misto de tensão e de agradáveis surpresas.

Eu já percebera que os dias imediatamente após as sessões de quimioterapia eram os melhores. Não sei se por conta dos corticóides que eu sigo tomando por uma semana ou se por conta do efeito das próprias drogas recém-injetadas no corpo, o fato é que os incômodos próprios da QT – os enjôos, as indisposições, as dores de cabeça – são leves e duram pouco. Com dois ou três dias eu já me sinto novo e revigorado.

Em contrapartida, o período entre quimios é o mais tenso. Nos dois primeiros ciclos, era exatamente aí – lá pelo décimo, décimo-quinto dia em diante – que o bem-estar começava a ceder espaço às crises. Principalmente a dispnéia, a temida e angustiante dispnéia provocada pelo enchimento dos pulmões. Eu nunca soube ao certo se eles esvaziavam para depois voltar a encher ou se eu adquiria alguma capacidade de respirar melhor mesmo com poucos pulmões nos primeiros dias pós-quimio, capacidade que era paulatinamente perdida com o avançar dos dias. Não sei a explicação. Sei que, sempre, infalivelmente, eu me sentia bem logo depois de um ciclo de QT e mal imediatamente antes do ciclo seguinte. E era este o meu temor.

Graças a Deus, os meus temores se mostraram infundados. Ontem tomei a quarta dose da QT; o período entre ela e a anterior foi até um pouco estendido por conta do Carnaval no meio do caminho; e, no entanto, em nenhum momento ao longo das últimas semanas a minha respiração me incomodou como até então vinha fazendo, a ponto de me exigir internamentos de urgência com uso de ventilação não-invasiva para que eu fugisse ao sufocamento.

Passei as últimas quatro semanas em casa, o que é um feito inédito desde que pus pela primeira vez os pés no hospital em meados de dezembro. Na última segunda-feira de fevereiro voltei à minha querida pneumologista para uma avaliação; o raio-x mostrou os pulmões cheios ainda até a metade, mas melhores do que a última chapa que eu possuía no meu histórico. De lá para cá eles certamente não pioraram; não cheguei a respirar pior do que naquela semana anterior ao Carnaval. E já lá eu ainda respirava.

Confessei-lhe (à minha médica) que eu morria de medo de que o derrame pleural aumentasse de novo, que eu ficava em casa o tempo inteiro repetindo os exercícios de fisioterapia (respirar em dois/três tempos e soltar, forçando a tosse ou não, prendendo a respiração ou não, etc.) que eu decorara enquanto estive internado. Ela ficou muito animada com os resultados, e mais ainda eu: o fato é que pela primeira vez eu não voltava a sufocar sozinho com o passar do tempo. E, como eu disse ainda antes do terceiro ciclo, com a respiração do jeito que estava eu suportava os meses que me separavam do fim do tratamento.

Passei em casa as últimas semanas, sem precisar voltar ao hospital, dormindo a cada noite com medo de acordar de madrugada sonhando afogar-me – mas sendo a cada dia surpreendido pela manhã a me despertar suavemente. Tive um único “susto” que me motivou uma ida à emergência do hospital: foi um pescoço dolorido, que imaginei ser [outr]a trombose, mas o vascular do plantão rapidamente me tranquilizou e me disse que era certamente algo muscular, para o qual me receitou analgésicos (que eu não tomei), e que melhorou por completo quando voltei a dormir na horizontal, abrindo mão do travesseiro em forma de triângulo no qual estava dormindo desde há muito tempo para ajudar a minha respiração. Sim, pus de lado até o decúbito elevado e, mesmo assim, consigo respirar à noite tranquilamente. É extraordinário.

Minha pneumologista autorizou-me a voltar aos poucos ao trabalho, coisa que fiz na semana passada e que me fez muito bem. Rever as pessoas, conversar, movimentar-me com mais freqüência (disse a alguém que uma única ida da minha sala ao banheiro me fazia caminhar mais do que um dia inteiro que eu passasse trancado no apartamento)… tudo isso ajudou bastante na minha convalescença, tenho certeza. Se ao final do dia eu às vezes estava cansado e um pouco ofegante, após descansar eu me sentia respirando até melhor. Não sou um atleta, mas consigo de novo levar uma vida relativamente normal. Louvado seja Deus.

Não sei se as minhas cruzes estão se tornando menores ou se estou simplesmente me habituando melhor a elas; sei que escrevo essas linhas melhor do que escrevi algumas passadas. Já se passou mais da metade do tratamento inicialmente definido; já fiz quatro dos seis ciclos que compunham o prognóstico inicial. Agradeço a Deus por me ter sustentado até aqui; sustentar-me-á, tenho certeza, os passos que ainda faltam. Não sei ao certo quais serão, mas sei que os quero, da forma como Deus os tiver reservado para mim. E neste caminho volto a agradecer e a continuar pedindo as orações dos amigos, tantas, que estão sendo de tamanha importância para mim ao longo dessa fase da minha vida. Não me canso de repetir isso, porque é verdade. Não existe nenhuma outra coisa que possa explicar a enorme distância entre a minha relativa serenidade diante desta situação e a vergonhosa pequenez das minhas virtudes particulares.

Concluí ontem o quarto ciclo de QT, como já disse; ultrapassei já a metade do caminho. Espero que até então ele tenha servido à glória de Deus e à minha santificação particular; rezo para que daqui em diante os meus dias possam santificar-me e glorificar a Deus ainda mais. Porque o que pior poderia ficar de tudo isso seria o desperdício do tempo favorável, o sofrimento vazio, as cruzes jogadas foras. Se é para demorar-se um pouco em prantos neste Vale de Lágrimas, que isso ao menos seja proveitoso para os nossos companheiros de infortúnio. Outra coisa eu nunca quis, e não vai ser agora que passarei a querer.

Only two more to go. Vamos em frente. Com a graça de Deus, vamos em frente. De cabeça erguida, e com um sorriso nos lábios. Tenho mais do que mereço. Na verdade, sempre estive melhor do que eu merecia. Obrigado, Senhor.

[OFF] Eu, com câncer (V): contratempos e imprevistos

Faz mais de uma semana que não escrevo nada. Há uma razão: faz mais de uma semana que estou internado no hospital, contra todos os prognósticos que eu tinha para esses dias. Dante já dissera com muita propriedade «ché saetta previsa vien più lenta» (Paradiso XVII) e, em contrapartida, as flechadas que nos chegam de supetão, pelas costas, são as piores. Mas a vida é feita de batalhas e lutar significa sobreviver às saraivadas que nos chegam de todos os lados, é claro. Se fosse de outra maneira, não poderíamos pretender estar lutando a sério.

No dia 26 de janeiro último, domingo, de alta recebida na noite da véspera, eu escrevi um relato aqui no Deus lo Vult! sobre a semana que passara. No dia 27 de janeiro, segunda-feira, pela manhã, eu voltava pra emergência do hospital. Meu braço direito doía bastante e estava inchado. O cirurgião vascular da emergência cardiológica nem precisou do exame para diagnosticar: “é uma trombose venosa profunda”. O ultrassom confirmou em seguida. Precisei me internar mais uma vez.

Inacreditável: uma trombose! Não tinha – ao menos não diretamente – a ver com o câncer ou com a quimioterapia, não tinha a ver com os meus problemas respiratórios que me haviam deixado quase uma semana no hospital, não tinha a ver com nada. Simplesmente acontece: meu corpo não reagiu bem ao port-a-cath que eu implantara para a QT. Um corpo estranho no organismo, mais o próprio câncer, mais tratamento quimioterápico… eram três fatores de risco, me disse o médico. Acontece.

Anticoagulantes de emergência – TVP causa embolia pulmonar, eu sei – e internamento para estragar a capacidade do meu sangue de coagular a contento. Há uma índice que mede essas coisas: INR, International Normalized Ratio, cujo valor padrão é – como o próprio nome diz – 1. O meu precisa ficar entre 2 e 3 para que seja seguro me deixar somente à base dos anticoagulantes orais: antes disso, uma injeçãozinha na barriga a cada 12 horas. Antes disso, cuidados hospitalares. Antes disso, fico ainda um pouco por aqui.

Aproveitei a estadia no hospital para verificar os pulmões. Cheios ambos, o direito mais do que o esquerdo. O raio-x, aliás, estava muito parecido com o que tirei no dia em que fiz a segunda sessão de quimioterapia. Estremeço. Não sei dizer se eles voltaram a encher ou se simplesmente não diminuíram: não bati uma radiografia torácica na alta da semana passada e, portanto, não sei dizer exatamente em quais condições meus pulmões saíram do hospital. De uma forma ou de outra, parece-me indiscutível que este derrame pleural não está melhorando, ou só o está fazendo a conta-gotas.

Volto à máscara do Jason: meus pneumologistas estão aproveitando a minha estadia no hospital para tentar fazer o derrame ceder à força de fisioterapia respiratória. A julgar pelas três ou quatro chapas de raio-x que bati em seqüência da semana passada pra cá, não está resolvendo: mas pelo menos o derrame também não está aumentando, e isso talvez já seja motivo mais do que suficiente para que eu dê graças a Deus. Ainda respiro; não tão bem como em situações normais, mas muito melhor do que na semana em que subi às pressas para a Semi-Intensiva. Ainda respiro, e daqui a pouco – menos de uma semana – eu vou receber quimioterapia de novo…

[Um parêntese. Aqui as coisas começam a ficar complicadas. Era esperado que esse derrame começasse a ceder já no primeiro ciclo de QT, no máximo no segundo; estamos a seis dias do terceiro, e ele continua tão forte que a minha pneumologista não hesitou em descrevê-lo como um «derrame pleural bilateral recidivante e não responsivo a QT» num laudo médico em que pede mais fisioterapia.

Meu cirurgião torácico acha que meu caso é cirúrgico: uma decorticação (ou coisa assim) resolveria em definitivo este problema. Acontece que a tal decorticação consiste – grosso modo – em arrancar [um pedaço d]a pleura e, aderindo o pulmão diretamente à parede torácica, destruir a cavidade pleural, impedindo assim (de uma vez por todas, óbvio) o acúmulo de líquido nela. Soa-me mais ou menos como arrancar um dedo fora e depois dizer, com ares de eureka, que com isso ele definitivamente vai deixar de doer.

Não fiquei muito animado com a cirurgia. Sou cioso da minha pleura: por alguma razão Deus há-de a ter colocado lá. Gostaria sinceramente de preservá-la, e por isso estou apostando na fisioterapia respiratória e no combate à doença de base, ainda que isso seja lento e ainda que me obrigue a respirar mal a maior parte do tempo.]

Ontem fiz uma tomografia de controle, para comparar com a que realizei antes de iniciar o tratamento. Não tenho acesso às imagens (e nem sei se saberia interpretá-las), mas pela internet consigo olhar os laudos; a julgar pelas descrições, as coisas parecem ter melhorado. Preciso esperar ainda – é claro – o parecer médico, mas esses resultados preliminares são já animadores. Deo Gratias, e obrigado a todos os que estiveram e ainda estão rezando por mim.

Já estou há mais de uma semana aqui no hospital. O meu braço trombosado melhorou substancialmente: dói muito menos, e já está quase tão fino quanto o outro. A contagem de glóbulos brancos (esqueci de dizer: cheguei aqui com eles quase zerados, tive que ser colocado em isolamento reverso nos primeiros dias) está de novo em níveis normais. O derrame pleural está sob controle. Devo ter alta nos próximos dias.

Quase escrevo “espero não ter que voltar de novo”… Mas aprendi que essa vida de paciente é uma caixinha de surpresas, nem sempre agradáveis. É muito difícil fazer planos mesmo a curto prazo! Só uma coisa não pode faltar: que Deus me conceda sempre a fortaleza necessária para viver esses dias o melhor possível. Como mais de uma pessoa já me disse, é tempo da oração do Horto das Oliveiras. Preciso de humildade para repetir o si possibile est, transeat a me calix iste; e preciso da coragem para acrescentar, sempre, o verumtamen non sicut ego volo, sed sicut tu.