Lutando contra meios-termos fraudulentos

Qualquer pessoa que tenha um mínimo de experiência política entende a estratégia de fazer “avançar” determinada agenda ideológica mediante um emprego trivial de dialética hegeliana. Consiste, basicamente, em forçar um meio-termo mediante a introdução, no cenário político, de uma posição propositalmente extremada. Assim, do embate entre a tese (o status quo) e a antítese (a nova proposta), emerge uma síntese que não chega a ser exatamente a novidade, mas tampouco continua sendo a situação anterior. Como a antítese era artificialmente extremada e nunca fora realmente levada a sério mesmo, os seus propagadores ficam felizes com qualquer espaço que consigam ganhar – para quem não tinha nada, o que vier é lucro. No extremo oposto, como a situação anteriormente estabelecida era de verdade, empírica e factual, qualquer espaço que ela perca é uma perda verdadeira. O emprego sistemático dessa estratégia simples – impondo antíteses sucessivamente mais alucinadas às sínteses (tornadas teses) que se forem conquistando – é capaz de conduzir, com bastante eficácia, os rumos de uma sociedade para uma direção que ela, em princípio, não estaria jamais disposta a tomar.

Como se defender disso? A maneira mais civilizada e racional é, lógico, simplesmente não levar a sério a propositura de uma demanda desonesta. Idealmente, as escolhas deveriam ser feitas entre diversas opções razoáveis, e não entre uma opção razoável e um extremo cujo objetivo é unicamente conseguir um resultado que se afaste da opção razoável. Um pacato frequentador de prostíbulos pode parecer um anjo de delicadeza perto de Jack, o Estripador; não significa, contudo, que o primeiro possa ser eleito modelo de como os homens devem tratar as mulheres! Condenar um desafeto político a vinte anos de trabalhos forçados pode parecer uma solução perfeitamente adequada quando existe alguém exigindo, aos berros, que ele seja fuzilado e esquartejado; mas quem disse que o esquartejamento deveria ser considerado uma opção em primeiro lugar? Coisa análoga pode ser vista na Igreja: a ideia de sancionar – mediante a administração do Sacramento da Eucaristia – segundas núpcias adulterinas após determinado transcurso de tempo pode parecer bastante razoável diante da demanda pelo divórcio amplo e irrestrito aos moldes do que existe na legislação civil; ora, mas esta última proposta não está e nem pode estar em discussão e, portanto, ela não pode ser considerada na hora de decidir que “tratamento pastoral” dispensar aos casais de segunda união!

Ignorar as demandas desonestas só funciona, contudo, quando existe suficiente massa crítica para reconhecer, logo ao primeiro golpe de vista, a canalhice da proposta. Se não houver quem se levante – e arraste os demais após si – contra a simples ideia de esquartejar o oponente político e depois espalhar os seus pedaços retalhados ao longo das quatro entradas da cidade, então o infeliz terá sorte se conseguir um degredo perpétuo. O ponto aqui, note-se, é que as pessoas em princípio não estariam dispostas a exilar o pobre-coitado; no entanto, apresentadas ao quadro tétrico da cabeça degolada e hasteada na ponta de uma lança, tornam-se mais receptivas ao exílio que antes repudiariam com veemência. Diante da possibilidade da chacina brutal, a injustiça do degredo adquire contornos de misericórdia. Do mesmo modo, no âmbito eclesiástico: diante da possibilidade de louvar os méritos espirituais da união homossexual, a simples retirada das censuras à legislação civil que a equipare ao casamento parece a coisa mais razoável do mundo, uma vitória até. Oras, mas quem disse que o “casamento religioso gay” deveria ser sequer posto em consideração, antes de qualquer coisa?

Quando não é possível rechaçar certas propostas in limine, e quando existe verdadeiro risco de que “meios-termos” fraudulentos sejam conquistados, eu penso que há duas coisas que precisam ser feitas, e uma terceira que, dentro dos limites da prudência, pode ser realizada.

Primeiro, é preciso recusar-se à comparação maliciosa e insistir na análise das coisas consideradas em si mesmas: quer-se saber se a doutor Fulano, que vez por outra tem o hábito de frequentar casas de tolerância, pode ser concedido um prêmio de cidadão virtuoso, e não se ele é melhor do que o Estripador britânico. Quer-se saber se a imposição de degredo (ou trabalhos forçados) a um oponente político é uma pena razoável, e não se fazer isso é mais justo do que matar e esquartejar o réu. Quer-se saber, por fim, se é doutrinariamente possível ministrar o Corpo de Cristo a quem se sabe encontrar-se em estado de pecado mortal objetivo, e não se isso é menos escandaloso do que abolir a indissolubilidade matrimonial que Cristo instituiu.

Segundo, é preciso denunciar a má-fé de quem procede dessa maneira. É preciso dizer, com clareza, que as ideias de esquartejar o desafeto político, homenagear um assassino de prostitutas ou instituir o casamento religioso gay são completamente absurdas. É preciso denunciar que os que as propõem na verdade não querem que elas sejam aceitas, mas sim anestesiar a assembleia para fazer passar como menos absurdas outras propostas – o degredo, a exaltação do libertino, o silêncio diante da iniquidade civil – que, em situações normais, seriam prontamente rechaçadas.

Terceiro, em certas situações, penso que pode ser legítimo usar as próprias técnicas dos bárbaros e demandar em público propostas extremadas no sentido oposto – a fim de desempenhar o ignóbil papel de boi de piranha, permitindo ao bom senso que tenha alguma chance de sobreviver. Quer-se exilar o desafeto político? Acorram às ruas, exigindo que ele seja condecorado com uma pensão milionária vitalícia, por ter tido a coragem de lutar por aquilo em que acreditava! Deseja-se enaltecer o homem lúbrico? Exija-se veementemente a sua responsabilização penal, draconiana, pela corrupção dos costumes, pela exploração das mulheres, pela degeneração social que ele perpetua e fomenta! Almejam os pastores não se indispôr com os poderes seculares? Exija-se-lhes que bradem pública, vigorosa e ininterruptamente contra o nefando pecado contra a natureza que clama aos céus vingança, que organizem imensas procissões penitenciais suplicando a Deus misericórdia pelas horrendas ofensas dos sodomitas, que instem os homens públicos e as regiões à desobediência civil – ameaçando estas com o interdito e aqueles com a excomunhão!

Sabe-se que a Igreja de Cristo é dotada de infalibilidade; logo, temos a certeza – dada por Deus mesmo – de que Ela não há, jamais, de ensinar o erro no lugar da verdade. O horizonte da infalibilidade, contudo, é restrito: abarca as declarações sobre Fé e Moral feitas ex cathedra, e pronto (*). Na imensa maior parte da atuação que a Igreja exerce no mundo, portanto, existem amplos espaços para as coisas darem errado, para as decisões terem resultados desastrosos, para os homens não terem acesso ao Evangelho e Deus Nosso Senhor perder valiosas almas pelas quais Ele verteu o Seu precioso sangue. É nesta seara que os inimigos da Igreja têm conquistado admiráveis vitórias com técnicas como a que expus acima. São estes os territórios, portanto, onde precisamos lutar – sem descanso! – a fim de os reconquistar para Cristo.

[Na verdade, como lembrou aqui o Felipe – a quem agradeço -, para ser exato é preciso dizer que o objeto da infalibilidade inclui também as verdades conexas com as de Fé e Moral (v.g. conclusões teológicas, fatos dogmáticos, canonizações etc.); o seu sujeito é não somente o Papa mas também o conjunto dos bispos; e o seu modo de exercício inclui o ordinário além do extraordinário. Cf., p.ex., OTT, Ludwig, Tratado acerca de la Iglesia, Cap. IV, §13, in Manual de Teologia Dogmática. Delimitada assim com mais detalhes a esfera de abrangência da infalibilidade católica, enfatize-se que os “amplos espaços para as coisas darem errado” supracitados evidentemente não incluem aqueles nos quais a Igreja é de qualquer modo infalível.]