Enquanto houver pecadores

Estamos às vésperas do Natal, e estamos cansados. Não foi fácil este 2015; estamos cansados, esgotados até!, a ponto de se nos faltarem as forças mesmo para seguir em frente. Retrospectiva? Talvez o ano não tenha sido de tantas vitórias a celebrar, de tantas coisas positivas assim. Perspectivas? O próprio suor no rosto embota a visão e não permite enxergar longe, e os músculos tesos sob o fardo do ano que finda parecem incapazes nos conduzir à próxima esquina.

Estamos cansados, e na verdade importa pouco se tal cansaço é legítimo ou não. Tanto as trevas da noite quanto a cegueira nos impedem de ver o caminho que devemos trilhar, e diante do corpo que já não responde ao desejo de continuar andando não cabe perguntar se tal é fruto de desgaste ou de lassidão. A fadiga que a gente sente cansa do mesmo jeito.

Mas estamos às vésperas do Natal e isso importa. Porque não existe ano difícil que não possa ser consolado pelo nascimento de um Deus feito menino, e não existe cansaço que resista às ordens d’Aquele que prometeu aos fatigados que lhes daria descanso. Não existem trevas que não dêem lugar à luz verdadeira que ilumina todo homem! Enquanto houver pecadores Deus virá ao seu encontro. Hoje, como naquele dezembro distante, Ele vem para os Seus. E hoje, ao menos, importa que O recebamos.

Tem sido obviamente má compreendida a ênfase na misericórdia que o Papa Francisco por vezes impinge aos seus discursos. Ter misericórdia não significa o mesmo que condescender com o comportamento alheio, e em nenhum dicionário decente pode significar “chamar o mal de bem”. A misericórdia pressupõe o pecado; não o nega e nem o pode negar. A misericórdia, aliás, pressupõe os miseráveis: a eles — e só a eles! — se dirige. Haverá misericórdia enquanto houver pecadores. Retire-se o pecado, a misericórdia deixa de fazer sentido.

Mas também a misericórdia, para ser misericórdia verdadeira, precisa ser transformadora e não tem como ser diferente: ela transforma o homem pecador em virtuoso e não o pecado em virtude. É somente no coração dos homens que ela age e precisa produzir os seus efeitos. De outro modo é apenas oferta graciosa rejeitada pelos insensatos. De outra maneira é, mais uma vez, lux [quae] in tenebris lucet et tenebræ eam non conprehenderunt. Nada de novo, para vergonha nossa.

É Natal e é tempo — se assim se pode dizer — de atávicas ingratidões. Dois mil anos de Cristianismo não transformaram a Encarnação do Verbo no grande evento de conversões profundas que se poderia imaginar. Hoje, como naquele primeiro Natal, são poucos os que se reúnem em torno ao Deus feito Menino. Mas enquanto houver pecadores Ele nascerá. O nascimento de Jesus Cristo não exime ninguém de lutar pela própria perfeição: a voz de São João Batista clamando no deserto logo o dirá. Enquanto ainda houver pecadores, jamais se falará em misericórdia o suficiente. E enquanto continuar havendo pecadores, não se terá dado à Misericórdia a resposta que ela merece.

Estamos cansados, eu dizia, mas é Natal e temos duas opções. Podemos nos fechar no nosso próprio cansaço e, desanimados, acreditar que nada mais pode ser feito; mas podemos também deixar que o canto de Gloria dos anjos ecoe nos mais profundos recônditos de nossa alma e, abrindo-a de par em par ao Deus-Conosco, enxugar o suor e seguir em frente. Espera-se conversão daqueles a quem é oferecida misericórdia; aos que se oferece descanso, o que se exige — sem dúvidas — é a luta. Ad majorem Dei gloriam. Melhor do que vimos fazendo até então.

Que desta vez o Menino Jesus encontre ao menos mais uma alma disposta a velar-Lhe o sono infantil. Que Nosso Senhor seja recebido por pelo menos mais um daqueles para os quais Ele veio sofrer e morrer. Que desta vez as trevas cedam — um pouco mais! — à Luz que vem do Céu. Que não seja em vão.

Afinal, um Menino nos foi dado! Mostremo-nos agradecidos. Façamos — minimamente! — por onde O merecer.

Feliz Natal!

Pelos lábios dela fala a voz da experiência

O mais recente rebuliço das redes sociais está sendo provocado por uma única feminista que, tendo abandonado a sororidade, resolveu dedicar a vida pública a desmascarar o feminismo tupiniquim. Não sei exatamente a trajetória dela entre o fim das atividades do Femen Brazil e a sua apoteótica irrupção pública ocorrida há algumas semanas; sei, no entanto, que a vida da Sara Winter nunca foi e nem tem sido fácil.

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Ela o conta no seu livro — Vadia, não! Sete vezes que fui traída pelo feminismo –, cujo lançamento foi na última segunda feira. Li-o, e a sensação que fica da leitura é um misto de repulsa e pena. São sete pequenos capítulos, bem curtos, nos quais a autora conta (com o devido cuidado na utilização de pseudônimos) algumas histórias escabrosas pelas quais ela própria passou no seu passado de militante feminista. A autoridade da testemunha ocular — mais forte até: da própria envolvida diretamente nos eventos relatados — transforma a obra em uma denúncia que importa, penso, conhecer e fazer conhecida. Contra ela não cola a velha estratégia de afirmar que são os “de fora”, malvados e invejosos, esbravejando falsamente contra “as mulheres” que não fazem senão lutar por seus direitos: trata-se de uma insider, de uma militante feminista, ela própria mulher também, que se entregou à luta feminista com uma invejável paixão — quase como se se tratasse de um ofício sagrado — e que depois, decepcionada com o que viu e viveu, rompe agora o silêncio trazendo à tona aquilo sobre o que é, hoje em dia, deselegante falar.

Outro dia eu dizia que não faz ninguém ser feminista o ser a favor do voto das mulheres, ou a favor de que elas possam estudar nas Universidades, ou contra os seus maridos espancarem-nas, ou coisas do tipo. Isto não faz ninguém ser feminista porque estas pautas pertencem à humanidade, e não a grupo sectário algum. Querer o bem das mulheres é característica dos seres humanos civilizados e decentes; e o maior logro do qual se aproveitam os movimentos sedizentes “feministas” é, justamente, rotular todos os que lhes são contrários como se fossem ogros ávidos por bater em mulheres, impedir-lhes o acesso à educação, tratar-lhes como coisas sem vontade própria ou qualquer outra barbaridade do tipo que — importante! — ninguém defende. Com esta tática depravada pretendem estes movimentos limpar o terreno da opinião pública para dar livre curso às suas pautas verdadeiras — como o aborto, por exemplo, esta sim uma reivindicação feminista por excelência. Ser “contra o feminismo”, portanto, geralmente não significa querer reduzir as mulheres ao status de escravas de seus pais/maridos. A maior parte das vezes significa coisas muito mais prosaicas como ser contra o assassinato de crianças indefesas no ventre de suas mães.

Ser “contra o feminismo” não significa deixar as mulheres entregues à própria sorte. Ao contrário até: querer ajudar verdadeiramente às mulheres implica em denunciar os movimentos que as instrumentalizam em prol de seus (dos movimentos) próprios interesses escusos. Querer ajudar as mulheres só é possível, em última instância, colocando-se firmemente contra o feminismo. É isto o que se evidencia quando as coisas são analisadas com mais vagar e menos emoção, e quando se percebe que as notas características dos movimentos que se dizem feministas — notas que os distinguem dos outros grupos e ideologias sociais — na verdade têm pouco ou nada a ver com as mulheres.

Foi isto, aliás, o que a Sara Winter descobriu. “Meu intuito é despertar as meninas para ficarem bem longe do feminismo”, diz a chamada da entrevista que ela concedeu recentemente a Zenit. E pelos lábios dela fala a voz da experiência, a voz do testemunho de quem viveu por quatro anos naquele mundo. A voz machucada de uma mulher extremamente ferida, cujo alerta outro intento não tem que poupar as meninas dos sofrimentos pelos quais ela própria teve que passar. É sábio dar-lhe ouvidos.

E atenção!, que não se trata de uma Santa Madalena arrependida saindo pelo mundo com ardor sobrenatural a pregar ousadamente o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo! É simplesmente uma garota machucada pelo movimento feminista, que teve a coragem de levantar a cabeça e tentar (re)construir a própria vida não mais sob as garras daquelas que tanto lhe fizeram mal — e, por isso, merece todo nosso respeito e consideração. A Sara não precisa, assim, de encômios e nem de maldições, não merece que se lhe atirem pedras e nem confetes: do que ela realmente precisa, sem dúvida, é de nossas orações. Ser feminista deixa marcas profundas no corpo e na alma, das quais não é nunca fácil se desvencilhar: e o que esta garota está fazendo em público é admirável. Ouçam a Sara. Ajudem a Sara. Rezem pela Sara.

A religião é o ópio do povo

Hoje é a festa da Imaculada Conceição, e parece que o mundo entra em um saudável afastamento das coisas mundanas para se dedicar, com um pouco mais de afinco, às celestiais. Eu comentava mais cedo: à hora do almoço, a cobertura da Globo não versava sobre a crise econômica, sobre a carta-bomba de Michel Temer, sobre o Impeachment que está às portas, sobre nada disso. Ao contrário, a programação estava, ao vivo, no Morro da Conceição, aqui em Recife, mostrando imagens da festa, entrevistando os fiéis, com reportagens sobre a história da devoção etc.

A religião é o ópio do povo, diz a conhecida máxima marxista. A crítica é fruto de uma má compreensão. Na visão materialista, trata-se de atribuir uma qualidade negativa à religião porque ela “aliena”, porque ela afasta os seres humanos da sua capacidade de lutar por uma vida melhor e mais justa, porque ela tende a “acomodar” os indivíduos, mormente os mais fracos, à opressão que lhes impõem os poderosos: isso a torna o “ópio” que encarcera os miseráveis em sua miséria, que lhes impede assenhorear-se da própria história. À primeira vista parece até fazer sentido; no entanto, a concepção é equivocada. Trago três razões pelas quais ela se equivoca.

Em primeiro lugar, porque não existe verdadeira oposição entre a vida material e a vida espiritual: ambas se complementam e se interpenetram. O homem, que é corpo e alma, tem necessidades espirituais e as tem também materiais, e isso de tal sorte que, faltando uma delas, a outra adquire contornos desordenados. Os exemplos são bastante claros. A ênfase nas necessidades materiais alijadas de uma concepção espiritual degenera no consumismo desenfreado dos nossos dias. Por sua vez, uma supervalorização da espiritualidade — hipótese cuja existência é muito mais complicada e, por isso, mesmo os seus exemplos históricos são escassos — culminaria no desprezo ao mundo, típico dos cátaros medievais ou dos seguidores de Jim Jones. Em última análise, degeneraria no suicídio.

Um parêntese: é aliás interessante como o suicídio é encontrado nestes dois pólos aparentemente opostos, na “espiritualização” excessiva e desordenada como também na ultra-materialização da vida: as altas taxas de suicídio verificadas nos países nórdicos já se tornaram um lugar comum, a questionar incomodamente o mito do bem-estar material como característica suficiente para garantir qualidade de vida.

Em segundo lugar, porque a religião existe no mundo e, em um certo sentido, para o mundo. Sim, é óbvio que a religião é “para Deus” no sentido de que o culto é direcionado a Deus, digno de todo louvor, que o homem voltar-se ao Seu Criador é um dever de justiça et cetera; tudo isto é verdade e está fora de discussão aqui. Mas a religião não elide — ao contrário, pressupõe — os deveres dos homens para com os outros homens, para com a família e a pátria, os pobres e os desvalidos, as autoridades constituídas. É este o sentido da famosa apologia de Santo Agostinho: os que dizem que a Doutrina de Cristo é inimiga do Estado, dêem-nos soldados como a Doutrina de Cristo ensina que devam ser os soldados, pais e filhos como a Igreja ensina que devam ser os filhos e os pais, maridos como aquela Doutrina determina que sejam os maridos, esposas como ela ensina que devam ser as esposas, patrões e empregados, juízes e reis, contribuintes e cobradores de impostos como os forma a Doutrina de Cristo — e, depois, venham falar em oposição entre os interesses do Evangelho e os do Estado (cf. Carta 138, 15). À religião, portanto, ao menos à religião verdadeira, não cabe a censura de afastar os seres humanos dos cuidados do mundo. Ao contrário, ela exige este cuidado como condição para a salvação da própria alma, que é o dever máximo incutido nos espíritos dos fiéis pelos sermões que ecoam o Evangelho de Nosso Senhor.

Em terceiro lugar, por fim, e mais importante, porque a religião tem pretensão de universalidade: os seus destinatários não são somente os pobres e desvalidos (os quais fossem, talvez, induzidos a abaixar a cabeça e aceitar passivamente a injustiça da própria condição), mas igualmente os ricos e poderosos. Ora, a mesma doutrina que manda suportar as adversidades é aquela que diz que os homens devem suportar as cargas uns dos outros. A religião que exalta a pobreza é a mesma que manda os ricos venderem os seus bens para das aos pobres. De que maneira levar a sério a pregação de um, v.g., São João Crisóstomo — «Não fazer os pobres participar dos seus próprios bens é roubá-los e tirar-lhes a vida. Não são nossos, mas deles, os bens que aferrolhamos» (cf. Catecismo, 2446) — poderia levar à manutenção do status quo degradante e excludente contra o qual a sensibilidade humana, com toda a razão, insiste em protestar? Na verdade, não é os pobres terem religião o que mantém o mundo injusto. Ao contrário, o mundo continua insuportavelmente injusto porque os ricos e poderosos não dão ouvidos ao que prega a Doutrina de Cristo!

Hoje é a festa da Imaculada Conceição; e esta festa, que hoje ganha espaço nos nossos meios de comunicação em meio à turbulência do noticiário político e econômico, tem na verdade uma divulgação muito menor do que mereceria. Se o Brasil acorresse aos pés da mãe de Deus, os males que hoje o afligem dissipar-se-iam qual névoa ao amanhecer. Em meio à atividade febril do dia a dia, portanto, importa que cada um de nós, brasileiros, não nos esqueçamos jamais de colocar no centro de nossa vida, no centro de nossa atenção, aquilo que é verdadeiramente importante: nossa Senhora da Conceição, rogai por nós, salvai o Brasil! Sem esta jaculatória constantemente nos lábios e no coração tudo o mais que façamos será inútil. Sem isso, não lograremos senão fatigarmo-nos em vão.