A Noite diferente das outras noites

Por que esta noite é diferente das outras noites? Esta é a frase que Mel Gibson coloca nos lábios da Virgem Santíssima no início do seu Paixão de Cristo. Trata-se ali de uma espécie de responsório judaico tradicional, o Ma Nishtana que há milênios é cantado no Seder de Pessach. Os judeus têm razão e esta noite é de fato diferente, tão diferente que merece uma liturgia própria e sem paralelo em todo o ano litúrgico. A missa da Quinta-Feira Santa é diferente de todas as outras missas, e nos comove e enleva, e nos compunge e assusta.

Há branco e há órgão, há flores e há incenso e parece até que a atmosfera lúgubre da Quaresma foi deixada para trás. Mas a impressão dura pouco, somente enquanto estamos na Ceia, somente enquanto Nosso Senhor está de toalha à cinta para lavar os pés aos Seus discípulos: dentro em breve é Getsêmani e tentação, é coorte e deslealdade, é julgamento e prisão. Esta parte da história não nos é contada nas leituras do Evangelho que, hoje, mantêm-nos no Cenáculo: mas ela exsurge terrível dos ritos que se sucedem em perturbadora profusão após o Lava-Pés.

A começar pelo cânon, que possui Communicantes próprio e mesmo um inaudito Qui pridie exclusivo para o dia da instituição da Eucaristia. É certo que estas mudanças nas orações sagradas, ditas em voz submissa pelo sacerdote que adentra sozinho o Santo dos Santos, não são notadas pelos fiéis que de joelhos acompanham o Santo Sacrifício: mas estes não deixam de perceber o som abafado das matracas que, após o Sanctus, ressoa sombrio por todo o templo. O órgão já estava em silêncio desde o Gloria, mas o estrépito de metal e madeira provocado por elas produz um efeito aterrador. Fazia um ano que não as escutávamos! E o seu barulho seco nos momentos em que estávamos acostumados a ouvir os sinos nos diz, de maneira insofismável, que alguma coisa está perturbadoramente fora de lugar. É a velha Missa que conhecemos muito bem mas, ao mesmo tempo, é outra coisa. Que Liturgia é essa que, iniciando festiva e pomposa ao som do órgão, chega ao seu ápice assim vazia e desolada?

E então o Sacrário fica aberto, e Nosso Senhor é trasladado para a sacristia enquanto O acompanhamos ao som do Pange Lingua. Depois o retorno à nave e o desnudamento do altar, e a sensação de estranheza a cada momento fica mais intensa: que igreja é esta onde as imagens estão todas cobertas de roxo, onde a lâmpada do sacrário não mais refulge, onde o altar está em pedra nua? Se a intenção era nos conduzir àquela noite tão diferente de todas as outras noites, àquela noite terrível onde o Filho do Homem foi entregue aos Seus inimigos, àquela primeira Quinta-Feira Santa, então é preciso dizer que o objetivo dificilmente poderia ser melhor alcançado. Em nenhum outro momento do ano o templo fica com um ar tão grave de abandono, onde realmente parece que Cristo nos foi tirado e estamos vivendo a hora do poder das trevas.

E saímos da igreja e voltamos para casa desamparados, com a angustiante sensação de que a última Missa de todas acabou de ser celebrada e o mundo está agora desprotegido porque todos os altares da terra estão desnudos, e em nenhum deles se celebra mais um sacrifício para aplacar a cólera de Deus.

Se houver verdadeira demonstração de que a Terra circunda o Sol, então é preciso reinterpretar as Escrituras

Alguém comentou aqui no blog:

Sou catequista, mas nunca engoli a história da criação do Mundo e do homem… mas finalmente o Papa se pronunciou (Que alívio).

Por for, fale-me à respeito…

Papa Francisco diz que Big Bang e Teoria da Evolução não são incompatíveis com cristianismo – Catholicus

http://catholicus.org.br/papa-francisco-diz-que-big-bang-e-teoria-da-evolucao-nao-sao-incompativeis-com-cristianismo/

A Igreja Católica é uma sociedade visível fundada por Nosso Senhor Jesus Cristo para guardar e transmitir as verdades necessárias à salvação de toda criatura humana. O escopo d’Ela é, portanto, restrito e não ilimitado. Necessário aos homens para que se salvem é saberem em quê devem crer e como devem agir; por isso a Igreja é Mestra Infalível em Fé e Moral, mas não em ciências naturais.

Não cabe portanto propriamente à Igreja pronunciar-se sobre o “Big Bang” ou sobre a “Teoria da Evolução”: estas coisas estão em princípio fora da Sua esfera de competência. No entanto, como a realidade é uma só e como a Revelação contém uma série de afirmações a respeito do mundo (e.g. que houve uma Criação, que o homem cometeu um Pecado Original, que Nosso Senhor «padeceu sob Pôncio Pilatos» etc.), torna-se por vezes necessário aparar algumas arestas que eventualmente surjam de outras alegações feitas pelas ciências seculares — como a cosmologia, a biologia evolutiva ou a história.

De antemão é preciso dizer que o núcleo essencial de afirmações da Doutrina Católica a respeito destes temas é mínimo. Não é necessário que o sol gire em torno da terra, que estejamos atualmente em 5.777 anno mundi ou que Deus tenha criado direta, específica e separadamente cada raça de cachorro que existe na face da terra, por exemplo. Esses detalhes (conquanto, reconheça-se, provavelmente não tenham sido sempre assim considerados por muitos cristãos) são periféricos e meramente acidentais na história da Salvação: ou seja, eles tanto podem ser assim como de diversas outras maneiras sem que isso altere fundamentalmente a natureza humana ou a necessidade do Evangelho.

Hoje nós certamente vemos isso com mais clareza do que no passado; no entanto, esta consciência sempre esteve presente na Igreja. Cite-se, por todos, a afirmação do inquisidor de Galileu, São Roberto Belarmino, ao comentar sobre a hipótese heliocêntrica:

Digo que se houvesse uma verdadeira demonstração de que o Sol está no centro do mundo e a Terra no terceiro céu, e que o Sol não circunda a terra, mas a Terra circunda o Sol, então seria preciso ir com muita consideração em explicar as Escrituras que parecem contrárias, e antes dizer que não as entendemos do que dizer que é falso o que se demonstra (Carta a Antonio Foscarini, escrita durante o processo de Galileu).

Se houver verdadeira demonstração de que a Terra circunda o Sol então é preciso reinterpretar as Escrituras: penso que se deve conceder ousadamente ao princípio aplicação universal. É preciso ser generoso e conceder autonomia para que os distintos ramos das ciências humanas cheguem às suas próprias conclusões acerca dos seus objetos próprios de estudo: porque se houver verdadeira demonstração de qualquer coisa da natureza então é possível coaduná-la com a Doutrina Católica, porque um mesmo Deus é o autor dos dois livros e, sendo perfeitíssimo, não pode enganar-Se e nem nos enganar.

Sim, a razão humana está sujeita a falhas e, portanto, as afirmações da ciência podem estar simplesmente erradas. Rejeitá-las liminarmente, no entanto, somente porque elas pareçam contradizer algum aspecto do Catolicismo é indolência intelectual: a razão iluminada pela Fé é sem dúvidas capaz de soluções mais elaboradas. Além do mais, há aqui um risco muito mais grave: pior, muito pior do que rejeitar um avanço científico legítimo por não conseguir assimilá-lo coerentemente no interior de uma cosmovisão católica é repudiar a Doutrina Católica por julgá-la incompatível com o que “a Ciência diz” — e esta limitação da inteligência já levou muitos homens à perdição, é um verdadeiro obstáculo à Fé que qualquer apostolado que se pretenda eficaz precisa esforçar-se por eliminar.

Para ajudar os ignorantes a não caírem em tão funesto erro, assim, é importante mostrar como muitas coisas — mesmo as mais estapafúrdias e improváveis do mundo — poderiam ser compatíveis com o Catolicismo, ainda que não sejam efetivamente verdadeiras. É preciso seguir o exemplo de Santo Tomás. Uma vez o perguntaram se era verdade que os nomes de todos os Bem-Aventurados estariam escritos em um pergaminho no céu; o frade, com a sua peculiar genialidade, respondeu que não achava que fosse assim, mas ao mesmo tempo não havia problema em acreditar nisso (cf. o capítulo 5.2 da biografia de Santo Tomás escrita por Chesterton).

E não haver problema em acreditar que um dia vai existir um manuscrito quilométrico flutuando na troposfera significa exatamente isto: esta hipótese, por extravagante que seja, é compatível com a alegação católica de que Cristo há-de vir no fim dos tempos «para julgar os vivos e os mortos». E se isso é compatível com a Fé, quantas outras coisas não o poderiam ser igualmente?

Humanos evoluindo de animais? Universo criado a partir de uma explosão? Seres extraterrestres? Ora, o que são todas essas hipóteses perto do heliocentrismo copernicano ou do pergaminho adejante tomista? Se um inquisidor não se furtou a conciliar a hipótese de Galileu com a autoridade das Escrituras e se um frade medieval postulou a incolumidade do Catolicismo mesmo diante de um velino que cobrisse todo o céu, por que não haveríamos nós de também envidar esforços para mostrar a compatibilidade da Fé Católica com as hipóteses — por extravagantes que sejam! — aventadas por nossos contemporâneos?

A Igreja, em regra, não pode fazer afirmações sobre o mundo natural dotadas de um maior grau de certeza do que aquele alcançável pela razão humana. A autoridade d’Ela é espiritual. O que a Igreja pode — e o que todos os católicos podemos — é compatibilizar os dados da razão (não apenas os reais como também os meramente possíveis) com os da Fé. É nesta clave que devem ser enquadradas todas as questões referentes às interações entre religião e ciência que, hoje, são alardeadas com uma beligerância totalmente descabida — e que arrastam tantos à apostasia desnecessariamente.

Em tempo: o Big Bang jamais foi incompatível com o Cristianismo. Afinal de contas, quem primeiro concebeu a sua hipótese foi, precisamente, um padre católico.

E ainda, desde Pio XI Pio XII que «o magistério da Igreja não proíbe que nas investigações e disputas entre homens doutos de ambos os campos se trate da doutrina do evolucionismo, que busca a origem do corpo humano em matéria viva preexistente» (Humani Generis, 37).