O primeiro de nós que se vai

Já fazia bastante tempo que eu não escrevia neste espaço; a internet mudou nos últimos anos — bem debaixo dos nossos olhos! — e o interesse das pessoas por textos compridos, publicados em sites particulares, deu amplamente lugar ao conteúdo consumido no feed do Facebook ou, mais ainda!, nos stories do Instagram. É um fenômeno que manipula com extrema maestria o nosso senso de prioridades: a palavra escrita na areia da praia muito em breve será apagada pelas ondas do mar, enquanto a palavra gravada na pedra estará sempre disponível para nossa consulta futura. Posto o problema nestes termos abstratos, é natural que se dê preferência à escrita arenosa, efêmera e volátil. No entanto, quando temos legiões de escribas lutando freneticamente contra o avanço das marés — não no sentido de prolongar no tempo a escrita, mas no de não deixar, nem por um segundo sequer, um palmo de areia lisa após a passagem das ondas –, quando os homens se entregam com todas as forças ao éter das redes sociais elevado ao paroxismo, aí é natural que as pedras sejam deixadas de lado e, recobertas de musgos, somente a um observador mais atento — ou a um visitante dos tempos passados — revelem as mensagens que nelas costumavam ser gravadas.

Este sítio estava assim, mais como um monumento às batalhas do passado que como palco das lutas do presente. No entanto, hoje sou forçado pelas circunstâncias da vida a retornar a estas paragens, a soprar a poeira destas páginas e a empunhar a pena mais uma vez, para me desincumbir de uma tarefa que eu desejara não cumprir. Hoje sou constrangido a escrever um pungente necrológio, e aos obituários não fica bem a volatilidade das redes sociais: cai-lhes melhor a palavra grafada em pedra, sem luzes, sem cores, sem espalhafatos, mas duradoura. Gostaríamos que os nossos entes queridos não se fossem! Incapazes, no entanto, de fazer frente à imperiosidade da morte, esculpimos laboriosamente os seus nomes no mármore dos cemitérios — a fim de que ao menos alguma coisa deles permaneça conosco, no nosso mundo, para a qual nos possamos voltar de quando em vez, quando nos cansarmos do vaivém das ondas do mar.

Na manhã deste 30 de julho, na véspera do seu sexagésimo aniversário, aprouve ao Senhor chamar a Si o Seu filho Wagner Marchiori — esposo, pai e avô dedicado, amigo fiel. Os mais antigos do Deus lo Vult! certamente hão de se lembrar dele, se não pelo nome de Batismo, ao menos pelo pseudônimo de Lampedusa com o qual ele costumava abrilhantar a área de comentários deste site. Há anos o meu amigo lutava contra uma grave doença neurológica — um tipo de esclerose amiotrófica — que lhe roubava paulatinamente o movimento do corpo, preservando-lhe no entanto intacta a mente. Não sou capaz de imaginar o sofrimento pelo qual ele passou — perdendo pouco a pouco o controle dos músculos, logo a força dos braços, o movimento das pernas, a sensibilidade dos dedos da mão. No entanto, com quanto garbo ele soube entornar o cálice até o fim, até o fundo, sem derramar uma gota sequer, sem murmurar! O corpo padecia, mas a alma se agigantava. Se é verdade que há heroísmo na vida ordinária dos cristãos, há uma espécie de super-heroísmo em quem atravessa dificuldades extremas sem esmorecer, sem titubear.

Conheci Wagner na época do Orkut, na pré-história da internet. Dividimos, junto com outros amigos, a moderação da melhor comunidade “Católicos” em língua portuguesa daquela rede social. Daquela época nos ficou uma seleta lista de e-mails, de nome sigiloso, por meio da qual nos correspondemos — por vezes, todos os dias — ao longo dos anos. Também as listas de discussão tiveram o seu ocaso; fomos para os grupos de WhatsApp. E assim, ano após ano, em meio a plataformas de comunicação à distância que surgiam e caíam no esquecimento, nós continuamos amigos próximos. É por isso que, hoje, mesmo tendo sido recebida pelo celular, a notícia do seu falecimento me abate como se tivesse sido um familiar que nos deixasse.

Wagner Marchiori, Fernando Tavolaro, Luís Guilherme Pereira e Jorge Ferraz.
Indaiatuba, 2009.

Quanto tempo, e tão depressa! Em um feriado prolongado de sete de setembro, em 2009, Wagner convidou-nos, a mim e a uns amigos comuns, para passarmos uns dias em uma casa de férias que ele possuía no interior de São Paulo. Já lá se vão mais de dez anos; mas quanta coisa mudou de lá para cá! Desejamos repetir a experiência daqueles dias outras vezes; chegamos até mesmo a comentar, mais de uma vez, que deveríamos achar uma oportunidade para marcar um grande encontro, onde cada um pudesse levar a sua família, para lembrarmos os velhos tempos. Éramos jovens e tolos. Toda uma vida passou por debaixo dos nossos olhos, e o desejado encontro nunca veio. Resta-nos agora esperar que as lágrimas vertidas pelos que ainda aqui ficamos possam comover o coração de Deus, a fim de que Ele, olhando para a amizade cultivada entre os Seus filhos aqui nesta terra, digne-Se preparar um dia, no Céu, os encontros que aqui não se puderam realizar.

Em 2018 voltei a São Paulo depois de muitos anos; fui com a esposa para um congresso de Direito. Wagner nos convidou para jantar, e graças a Deus conseguimos acertar a nossa agenda para tornar possível o encontro! Foi uma noite bastante agradável, com bom vinho e boa comida e boa conversa até tarde. Surpreendeu-me, na ocasião, como Wagner estava debilitado: já em uma cadeira de rodas motorizada, só movia as mãos e a parte superior do tronco. Mas falava com tanta vivacidade, e conversava conosco com tanto interesse, e sorria com tanta jovialidade que um transeunte ocasional que porventura escutasse por detrás da porta certamente diria ser ele o menos enfermo dos que ali se encontravam.

Despedimo-nos nos desejando ver mais uma vez em breve, e os anos correram de novo. Chegou 2020 e o Coronavírus atirou para o futuro distante qualquer possibilidade de viagens a lazer. Aquele jantar foi a última vez em que estive com Wagner, e sou grato a Deus por me ter proporcionado esta oportunidade de me despedir do meu amigo sem que o soubéssemos. Ou pelo menos sem que eu o soubesse; Wagner provavelmente já tinha então uma consciência mais nítida da fragilidade da sua condição. Mas ele não permitiu que nenhuma sombra de tristeza tisnasse a alegria daquele último reencontro.

Jamais o permitiu. Daquele grupo de católicos que se conheceu no antigo Orkut (e alguns de nós antes mesmo disso, no mIRC), tenho a alegria de dizer que uma parte considerável de nós manteve e mantém até hoje um contato frequente, quase diário. E Wagner, cujo corpo se deteriorava dia a dia, jamais deixou que a sua doença monopolizasse as nossas conversas: era de uma discrição heroica. E jamais deixou de conversar conosco, e de se importar, e de agir com toda a generosidade e grandeza de alma que lhe eram próprias. Na última mensagem que nos mandou, ontem mesmo, manifestava condolências a outro amigo, cujo sogro falecera recentemente. E hoje, no início da tarde, a próxima mensagem quem nos manda é a esposa, de posse do celular dele, dizendo que ele falecera pela manhã…

É o primeiro de nós que se vai, e isso provoca em mim uma tristeza profunda. Que a Virgem Santíssima o receba, meu amigo! Que você possa um dia desfrutar, na presença de Deus, do corpo são que lhe foi tão dolorosamente negado nos seus últimos anos nesta terra. E que a alegria dos anjos e santos com a sua chegada possa suplantar infinitamente a tristeza que a sua partida nos causa aqui. Descanse em paz.

Uma Ave-Maria por Wagner, para que seja recebido depressa no Paraíso, e para o consolo dos familiares e amigos, é o que peço aos que chegaram até aqui.

A pandemia e as igrejas fechadas

A Quaresma é um dos tempos mais ricos e mais marcantes da Liturgia da Igreja. A cada ano a Igreja reserva este tempo litúrgico para, primeiro, exercitarmos as virtudes cristãs ao longo das semanas seguintes ao fim do Carnaval; segundo, acompanharmos de maneira mais intensa as últimas horas de Cristo no Sagrado Tríduo Pascal; e, terceiro, celebrarmos jubilosos a Vigília do Sábado Santo, a fim de que cantemos com toda a Igreja a festa da Páscoa, a Ressurreição, que se pode muito bem dizer — parafraseando aquilo que S. João Paulo II disse da Eucaristia — que é a fonte e o ápice do ano litúrgico da Igreja.

Ora, a Quaresma é um tempo de graças espirituais cujo desabrochar depende do comprometimento do católico em buscar viver bem aquele tempo. Os tempos litúrgicos não são como as estações do ano, cujos efeitos se fazem sempre sentir independente do que as pessoas façam. O calor do verão decorre do só fato de estarmos no verão; e mesmo uma pessoa que nem saiba que é verão, ainda assim vai sentir o calor próprio da estação. Mas com a Quaresma não é assim: as graças espirituais abundantes deste tempo — que são os efeitos próprios deste tempo litúrgico — só se fazem sentir àquelas pessoas que, conscientes de estarem atravessando o tempo quaresmal, esforçarem-se para bem vivê-lo. Não basta estar exposto à Quaresma, é preciso viver a Quaresma.

Pois bem. Acontece que a Quaresma se vive, claro, por meio do esforço pessoal — do jejum, da oração e da esmola –, mas também, e principalmente, por meio da vivência eclesiástica: da frequência aos sacramentos e da participação ativa da vida litúrgica. E é uma coisa verdadeiramente deplorável, inaudita em dois mil anos de Cristianismo, ignominiosa, ultrajante, que clama aos céus vingança, é um acinte e um escárnio que os católicos estejam, por conta de um coronavírus, desde a metade da Quaresma privados de assistir as Missas e de receber os Sacramentos.

A atual pandemia da COVID-19 revelou as coisas mais podres, mais mesquinhas, mais mundanas das autoridades eclesiásticas. Como é possível que se tenha pacificamente aceitado fechar as portas dos templos — e isso no mundo todo! — sine die, de maneira radical, abrupta e a absoluta, privando o povo da participação litúrgica e do auxílio dos sacramentos? No meio da Quaresma! Estamos agora em pleno Tríduo Santo e as missas In Coena Domini foram celebradas sem o povo provavelmente pela primeira vez desde que foram codificadas! Amanhã à noite será a Vigília Pascal e os católicos, trancados em suas casas, não irão se congratular pela vitória de Cristo sobre a morte! A Páscoa será celebrada em privado. Como foi possível chegarmos a este ponto?

Nem se diga que iremos nos reunir à distância, valendo-nos dos meios de comunicação, fazendo orações domésticas e comunhão espiritual. Em primeiro lugar, todo católico já faz, ordinariamente, oração doméstica e comunhão espiritual: é claro que já rezamos nas atividades quotidianas — ao dormir e ao despertar, antes das refeições, dos estudos, do trabalho etc. –, já incluímos nos nossos dias espaços para a meditação, para o exame de consciência, para as leituras piedosas, já excitamos o desejo de nos unirmos espiritualmente a Nosso Senhor Sacramentado. Isso não é uma coisa surgida agora e que nos esteja sendo oferecida como sucedâneo da vida eclesial; isso é já parte integrante da vida espiritual católica e que, absolutamente, não supre a necessidade da participação litúrgica.

Em segundo lugar, uma coisa não tem nada a ver com outra: não existe oposição entre a oração particular e as cerimônias eclesiásticas públicas e estas não podem ser substituídas por aquelas, porque a publicidade é da essência do Catolicismo. A Igreja é visível! Faz parte da constituição substantiva da Igreja Católica os Seus elementos materiais, externos, sensíveis, e isto por determinação divina. Igreja é Ekklesia, é assembleia, é conjunto de pessoas reunidas em sua segunda casa — paróquia, paroikía, “casa” (oikia) “ao lado” (par) — para se auxiliarem mutuamente em seu caminho rumo à Pátria definitiva, à Jerusalém terrestre. Não existe uma “igreja espiritual” e nem é possível cogitar de uma eclesialidade composta de templos fechados e famílias isoladas, relacionando-se pelas redes sociais. Mas o que é isso? Passamos anos criticando o “catolicismo de internet” para, agora, começarmos a pregar cerimônias transmitidas pelo Instagram e pelo Youtube?

Finalmente, em terceiro e mais importante lugar, existem os Sacramentos! Os Sacramentos, que são sinais sensíveis e eficazes da graça de Deus, que nos são necessários à vida de graça e, em última análise, à nossa salvação, não podem ser conferidos senão pessoalmente! Bênção papal transmitida pela internet, posto que valiosíssima, não tem o condão de perdoar os pecados como só a confissão auricular pode fazer. A comunhão espiritual realizada diante de uma Missa que se assiste pelas redes sociais, conquanto piedosa e salutar, não produz os efeitos próprios da recepção da Eucaristia — como o aumento da graça santificante e o perdão dos pecados veniais. Com esta loucura de fechamento de igrejas e suspensão dos sacramentos, o que acontece é que as almas estão privadas dos canais ordinários de transmissão da graça de Deus. Ora, a Igreja possui, ao lado do poder-dever de ensinar e do poder-dever de governar, o poder-dever de santificar: o munus sanctificandi. E este múnus se exerce pela celebração da Liturgia, sim (que graças a Deus continua acontecendo, embora em privado), mas se exerce também pela administração dos sacramentos ao povo cristão. E com os católicos trancados em casa, com os sacerdotes isolados, com as cerimônias (somente as mais importantes, decerto) apenas transmitidas pela internet… como anda a administração dos sacramentos? As confissões, as comunhões, as unções dos enfermos…? Por quanto tempo mais as autoridades eclesiásticas vão insistir nesta anomalia diabólica e ultrajante?

É Sexta-Feira Santa e Nosso Senhor foi arrancado à convivência dos Seus discípulos, pelas mãos dos ímpios, para ser crucificado. E, hoje, paradoxalmente, Nosso Senhor Sacramentado também é arrancado às almas fiéis sequiosas por recebê-Lo — arrancado pelas próprias autoridades eclesiásticas que são as legítimas dispensadoras da graça de Deus. Amanhã será a Páscoa da Ressurreição e também não poderemos comer a Carne e beber o Sangue d’Aquele que ressuscitou dos mortos para nos dar a Vida Eterna. Até quando esta insensatez?

Arrependei-vos e crede no Evangelho

É interessante que a Quaresma — o tempo da Misericórdia por excelência — comece com uma solene ameaça: “arrependei-vos e crede no Evangelho!”. É com esta exortação direta, bruta, sem rodeios, sem floreios (poder-se-ia até dizer “intolerante”…) que a Igreja inicia este tempo santo; provavelmente um tempo de graça e de perdão como nenhum outro no ano litúrgico.

Este santo brado quaresmal, perceba-se, vai na contramão daquela espiritualidade amorfa dos dias de hoje. O que a Liturgia das Cinzas procura não é o alívio da consciência dos que pecam, não é encontrar justificativas para os maus comportamentos nem listar causas alheias para desculpar as falhas de caráter. Ao contrário, o dia de hoje existe para excitar o arrependimento, este que é o caminho necessário para o perdão. A perda da noção do pecado tem uma consequência mais grave do que a mera reincidência no pecado. Quando se perde a noção do pecado, perde-se também a possibilidade do perdão.

Há uma diferença muito importante entre o pecado que é perdoado e o pecado que não é cometido (ou, dizendo melhor, o pecado que não se percebe cometido). Quem é perdoado muda de vida; quem não peca, ou não percebe que peca, continua indefinidamente do mesmo jeito. O milagre da elevação sobrenatural da natureza humana só se realiza naqueles que se reconhecem pecadores e, caindo em si, prostram-se, em lágrimas, diante da Fonte da Misericórdia. Sim, a fonte de Água Viva jorra eternamente para todos os que passam, mas somente os que têm sede se beneficiam dela.

Há diversas passagens no Novo Testamento que revelam, das mais várias maneiras, esta verdade fundamental: há mais alegria nos Céus por um só pecador arrependido do que por noventa e nove justos que não precisam de perdão. O Evangelho, em um certo sentido, é antes o reconhecimento do pecado que a exaltação da santidade. O fariseu jejuava e pagava os dízimos, mas foi o publicano quem saiu justificado da presença de Deus.

Não creio que esta passagem se deva interpretar com reducionismos, como se o fariseu fosse simplesmente hipócrita e se apegasse às minudências da Lei em detrimento dos seus mandamentos mais importantes — pagando “o dízimo da hortelã, do endro e do cominho” enquanto desprezava “os preceitos mais importantes da Lei: a justiça, a misericórdia, a fidelidade” (cf. Mt 23, 23). Não, que o fariseu da parábola registrada por São Lucas (cf. Lc 18, 10-14), o que rezava de pé no Templo, é outro. Este não era nem ladrão, nem injusto, nem adúltero; é perfeitamente de se crer que, além de jejuar e pagar o dízimo, ele honrasse os seus pais, dissesse a verdade, amasse o seu próximo. A hipocrisia não é o único pecado do mundo e não há nenhum elemento na perícope que autorize tachar de hipócrita aquele homem. Aquilo que Nosso Senhor censura nele é outra coisa: é o orgulho, a soberba.

E o que é a soberba? Santo Tomás ensina que soberba (superbia) é alguém pretender aquilo que está acima de suas possibilidades (Summa, II-IIae, q. 162, a.1, Resp.). A soberba é um desejo desordenado da própria excelência (id. ibid., a.2., Resp.) — inordinatus appetitus propriae excellentiae. Ou seja, a soberba é, exatamente, o fundamento e o ponto de chegada da espiritualidade contemporânea, a que diz que nada é pecado e que as pessoas devem ficar em paz consigo mesmas. A espiritualidade inimiga das culpas, que tudo releva, que invoca fraquezas humanas para afastar responsabilidades individuais, é uma espiritualidade da soberba no rigor técnico da palavra: é enxergar uma excelência que não existe e, aferrando-se a esta quimera, negar às almas o poder transformador da graça divina, fechando-lhes assim as portas do Reino dos Céus.

É, em suma, uma anti-espiritualidade, o naturalismo mais grosseiro, o conformismo mais estéril. É a ideia medíocre de que as pessoas não são capazes de ser melhores, é a noção blasfema de que o pecador impenitente é o melhor que Deus pode fazer de um filho Seu. Os adeptos de tão estranha religião, naturalmente, voltam-se com furor contra aqueles que pregam a importância e a necessidade do arrependimento dos pecados, do propósito de mudar de vida, da penitência. Odeiam a Quaresma e tudo fazem para esvaziá-la do seu sentido.

Contra eles e contra suas doutrinas ressoam as palavras eternas da Santa Igreja: arrependei-vos e crede no Evangelho! Palavras que são ao mesmo tempo uma ameaça terrível, um bálsamo reconfortante, um convite amoroso, uma doce esperança. Nós somos maus — não adianta negá-lo. Mas Deus nos ama. E é tempo de conversão.

Depois do Natal

A cidade está vazia e deserta porque é Natal. Passados mais de dois mil anos, a celebração do Nascimento de Cristo ainda impõe marcas profundas mesmo às feições de nossas sociedades dessacralizadas. O burburinho dos dias anteriores — os dias mais angustiantes do ano — arrefece, põe-se de lado e é substituído pelo barulho do interior dos lares, que contrasta com o deserto do exterior. O Natal é festa íntima, familiar, que se comemora com os consanguíneos (e, também, com os amigos mais próximos) em torno a uma mesa comum. A tradição se repete. Mas por quê?

Não é por acaso que o Natal é colocado no início do ano litúrgico; trata-se de acontecimento inaugural e não escatológico. É a ária que abre o espetáculo e não a apoteose. E, inserido no ritmo cíclico do temporal da Liturgia, repetindo-se ano após ano, assume os ares de um perpétuo recomeço, possibilitando a periódica experiência daquela excitação que precede as grandes aventuras.

Por que, afinal de contas, o que é o Natal? É o nascimento de Cristo. E a história nos dá conta de que, quando Cristo nasceu, tudo mudou e, ao mesmo tempo, não mudou nada.

Os anjos anunciaram aos pastores o nascimento do Salvador; e, nos nossos presépios, nós até hoje representamos aqueles homens do campo que deixaram os seus rebanhos e saíram, em uma noite escura, em busca de um Recém-Nascido envolto em faixas. Encontraram o Menino e O adoraram; mas, embora a Bíblia não nos fale, é certo que, na noite seguinte, e ao longo de todas as noites seguintes, os mesmos pastores precisaram voltar aos mesmos campos para guardar os mesmos rebanhos. E os anjos não tornaram a aparecer.

Foi uma Noite única; mas o fulgor daquela noite, é certo, foi capaz de iluminar a vida inteira dos que A vivenciaram. É provável que, naqueles campos, anos depois, os velhos pastores conversassem ainda sobre aquela Noite, passado já tanto tempo!, em que os Céus se iluminaram para o nascimento de um Menino. É provável que então o gloria in excelsis não ressoasse mais por aquelas paragens; mas aquela pax prometida aos homens de boa vontade, esta é certo que ainda perdurava naquela terra, e os pastores a podiam ainda experimentar mesmo a tantos anos de distância.

Hoje a distância é ainda maior: mas a força do Natal atravessa os séculos e é sempre nova — como o Evangelho que ele inaugura. Ontem nós mais uma vez fomos à Missa; mais uma vez ouvimos o canto secular das Kalendas, mais uma vez escutamos o anúncio da grande alegria do nascimento do Salvador, que é Cristo Senhor. Mais uma vez nós paramos em frente ao Presépio, enfim completo, com o Deus-Menino envolto em faixas e repousando, sereno, sobre a manjedoura. Olhamos-Lhe como se O encontrássemos pela primeira vez na vida! E pedimos-Lhe paz para nós mesmos, para nossas famílias, para o mundo, para a Igreja: aquela paz anunciada pelos anjos no Natal primevo. E, ao mesmo tempo, pedimos a graça de trabalhar a nossa vontade, a fim de torná-la boa, para que possamos ser — um dia — contados entre os homens aos quais aquela paz foi prometida. E voltamos para casa.

O que importa perceber aqui é o seguinte: o Natal não tem o arroubo de um fim de mundo, de uma mudança radical de vida, da chegada a uma terra prometida onde tudo passa a ser diferente. Na verdade, o Natal mantém as coisas exatamente como estavam antes e é esta a sua força avassaladora. Na noite anterior, como na noite seguinte, os pastores estavam nos campos guardando os rebanhos. Os sábios do Oriente, que antes do Natal estavam viajando rumo a Belém, após o Natal estavam mais uma vez viajando, de volta para casa. Mesmo a Sagrada Família, que na véspera estava, de porta em porta, procurando abrigo para a noite, longe de casa, após o nascimento de Cristo estava também longe de casa, em terra estrangeira, no Egito, fugindo à sanha assassina de Herodes. O Natal não encerra ciclos. Ele irrompe em meio aos ciclos da vida, deixando-os intactos após si.

Intactos, mas não intocados. A vida segue após a ceia do Natal: as mesmas lutas, os mesmos problemas, os mesmos defeitos, tudo, tudo. Os mesmos rebanhos a pastorear por campos escuros. Mas fica algo de diferente justamente porque passou o Natal: mais uma vez nós nos encontramos com pessoas que nos são caras, mais uma vez nós nos permitimos esquecer os trabalhos e as dificuldades da vida — por uma noite que seja! — para simplesmente celebrar, mais uma vez nós trocamos votos de felicidades e expressamos os nossos sinceros desejos de que o futuro — o Ano-Novo que está às portas — seja melhor. E, por conta disso, os próximos dias serão iguais aos últimos, mas serão diferentes. Graças ao Natal. Graças ao Menino que hoje nos foi dado.

O dia de Finados e o cuidado com os mortos

O cuidado com os mortos é uma nota marcante da natureza humana e que, como tudo o que é humano, o Cristianismo soube elevar de maneira extraordinária. Os nossos cemitérios, os túmulos, os enfeites, as orações populares, as exéquias — todas essas coisas fazem parte do dia a dia cristão (não era Santo Agostinho quem dizia algo como “vemos funerais diariamente, enterramos nossos mortos todos os dias e, no entanto, continuamos a nos prometer longos anos de vida”?) mas, no dia de Finados, é como se todas elas atingissem o seu ápice. Neste 2 de novembro, dedicado aos fiéis defuntos, é como se tudo nos interpelasse ao mesmo tempo: a morte, o juízo, o purgatório, o Céu, o Inferno, a saudade dos entes queridos, a esperança da Ressurreição. Se temos a obrigação de pensar constantemente nos Novíssimos, poucas vezes o memento mori ressoa com tanta clareza nas nossas igrejas quanto no dia de Finados.

Não se trata de nenhum mórbido culto à morte. A morte, dentro da cosmovisão cristã, é a última inimiga, é o estipêndio do pecado. A morte restou derrotada na Cruz do Calvário — onde está, ó morte, a tua vitória, onde o teu aguilhão? — e, a partir de então, toda a Liturgia dos Defuntos é uma celebração desta vitória. Não cultuamos a morte, mas a vida, uma vez que o nosso Deus não é Deus de mortos, senão de vivos.

Na formulação lapidar que alguém divulgou nas redes sociais: é o dia em que a Igreja Militante presta auxílio à Igreja Padecente para que ingresse logo na Igreja Triunfante. Nós oferecemos sufrágios aos mortos para que eles expiem as suas penas e, purificados de toda mácula do pecado, possam ingressar no Santo dos Santos, ascender à face de Deus. E, neste mister, estamos diante talvez das preces mais eloquentes que já foram compostas.

Entre todas assoma a sequência da Missa, o Dies Irae. É o momento terrível em que toda criatura é convocada à presença de Deus para o julgamento; diante do Justo Juiz, a alma, conhecedora das suas misérias, vê-se aterrorizada. Sem dispor de méritos em que se apoiar, ela recorre a Cristo: recordare, Iesu pie, quod sum causa tuae viae: ne me perdas illa die. “Recordai, ó bom Jesus, [que] fui causa de vossa cruz: não me percais nesse dia”. Somente assim o homem pode suportar este Dia de Ira.

Tal sentimento religioso não é apenas litúrgico, mas universal. Lembro-me do barroco brasileiro, do nosso Gregório de Matos, e do soneto escrito a Cristo Nosso Senhor Crucificado estando o poeta na última hora de vida, que se encerra assim: “Mui grande é Vosso amor e meu delito, / porém pode ter fim todo o pecar / e não o Vosso amor, que é infinito. / Essa razão me obriga a confiar / que, por mais que pequei nesse conflito, / espero em Vosso amor de me salvar”. Diga-se o mesmo de outros famosos tercetos do mesmo autor: “se uma ovelha perdida, e já cobrada, / glória tal, e prazer tão repentino / Vos deu, como afirmais na Sacra História, / eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada! / Cobrai-a; e não queirais, Pastor Divino, / perder na Vossa ovelha a Vossa glória”. É quase uma paráfrase do tantus labor non sit cassus das missas de Réquiem.

À época do segundo grau, lembro que alguém comentou que assim era fácil, que o eu-lírico jogava toda a responsabilidade para Deus, e que era como se o Altíssimo ficasse obrigado, pela força argumentativa, a perdoar o pecador. Mas, depois, ano após ano, a cada dia eu enxergo menos presunção nos versos do Boca do Inferno. Porque, penso eu, diante dos Novíssimos não vai haver espaço para jogos de linguagem ou restrições mentais. Diante do Crucificado, no último instante de vida, só o que poderemos fazer é suplicar misericórdia. E não é a misericórdia superior ao pecado? Se a súplica for sincera — e, insisto, no juízo não haverá espaço para insinceridades –, ela não haverá de mover o coração de Deus ao perdão?

O Dia de Finados é, assim, apesar das imagens tétricas que apresenta, um grande dia de esperança. É uma festa que explora esta terrível tensão: por um lado, diante da Majestade de Deus nenhum de nós pode pretender se apresentar irrepreensível; por outro lado, Cristo veio ao mundo justamente padecer e sofrer pela salvação de nossas almas, e como esses divinos sofrimentos poderiam ser vãos?

E saímos da igreja, assim, com este misto de terror e de alívio. Assustados com a dimensão dos nossos pecados e, simultaneamente, confortados com a misericórdia de Deus. Este é o resumo do Dies Irae e é a única maneira de se viver bem o Cristianismo — sem cair nem na presunção, nem no desespero. Os nossos entes queridos falecidos, nós os entregamos à misericórdia de Deus; e, neste grande mistério da comunhão dos santos, é a santificação de nossa própria vida, dos dias que ainda temos a viver nesta terra, que pode aproveitar àqueles por quem oferecemos sufrágio neste sábado. Sem nos esquecer, é claro, de rezar também pelos que não conhecemos, pelas almas esquecidas do Purgatório! Também a nossa hora haverá de chegar; e, quando houvermos partido dessa mundo, apraza a Deus que também nós tenhamos fiéis desconhecidos, a rezar por nós, diante dos nossos túmulos, em Finados futuros que somente da Eternidade haveremos de ver. Hoje cuidamos dos mortos; um dia, precisaremos ser cuidados.

Que as almas dos fiéis defuntos, pela misericórdia de Deus, descansem em paz. Amen.

Santa Dulce dos Pobres, rogai por nós, olhai pelo Brasil

A canonização da Irmã Dulce, ocorrida na manhã deste domingo (13 de outubro), foi uma reconfortante notícia para os católicos, em meio a tantas outras apreensivas que já quase nos acostumamos a receber nestes dias difíceis. Mas hoje o Anjo Bom da Bahia entrou no rol dos santos, a Irmã Dulce dos Pobres alcançou a glória dos altares; hoje é um dia feliz, hoje nós podemos descansar e dar graças a Deus.

Eu estive em Salvador em 2011 para ver a cerimônia de beatificação. Registrei então o carinho que o povo baiano demonstrava pela Irmã Dulce, que não se restringia ao círculo dos católicos devotos e, ao contrário, expandia-se até mesmo para além das fronteiras da Igreja. Aquela mulher viveu a caridade de forma tão concreta, visível, palpável até, que é como se, nela, as virtudes teologais ganhassem corpo e expressão sensível. É como se elas se encarnassem de tal modo que não podiam mais passar despercebidas. A Irmã Dulce foi o Catolicismo que, em pleno século XX, não se deixou confinar: saiu das igrejas e conventos para ganhar as ruas e os jornais, a cidade, o mundo.

Esta é a verdadeira santidade dos nossos dias: uma vida de austeridade e de sacrifício, indiferente aos encantos do mundo, confiante na Providência de Deus, esquecida de si no serviço ao próximo. Não estamos falando de um leprosário primitivo nem de nenhuma ordem mendicante medieval: tudo isso aconteceu aqui ao lado, em Salvador, em território urbano, em uma de nossas maiores capitais, um dia desses. A Irmã Dulce faleceu em 1992.

Também não estamos falando de assistencialismo social, do tipo que as pessoas sedizentes esclarecidas hoje acham que é dever do Estado dar a todo cidadão brasileiro. Para Santa Dulce dos Pobres, a caridade era um dever visceral dos cristãos e não um burocrático papel do Estado. Neste sentido, curiosíssimo o episódio narrado neste caderno especial da Folha: um hospital estava sendo reformado e, em dado momento, um estagiário foi dizer à Irmã Dulce que estava faltando cimento para concluir a obra. A boa baiana pega o rapaz pelo braço e o leva por diversas alas do hospital, dá de comer a crianças, troca curativos, procura remédios, conforta doentes, pára na capela para rezar. Duas horas depois, vira-se para o rapaz e lhe diz: “meu filho, você viu que Deus me deu muitos problemas para resolver hoje. O cimento você resolve, né?”

Vida da Irmã Dulce

E é este misto de vida ativa e vida contemplativa que confunde os sábios do mundo e dá frutos da parte do Altíssimo. É este o tipo de atividade que não se pode institucionalizar, burocratizar, impessoalizar; ela só pode ser humanamente desempenhada por almas generosas inflamadas de amor a Deus. Como dizia Bento XVI, a Igreja entende que a caridade “não é uma espécie de actividade de assistência social que se poderia mesmo deixar a outros, mas pertence à sua natureza, é expressão irrenunciável da sua própria essência” (Deus Caritas Est, 25).

Do mesmo modo, o milagre que deu ensejo à canonização foi um prodígio impressionante. Um cego voltou a enxergar; talvez um dos mais tradicionais milagres do Novo Testamento, destes que os céticos desdenham e, os espiritualizados, buscam interpretar em sentido figurado. Mas, hoje, não estamos falando de miopia nem de catarata, destes males da retina ou do cristalino para os quais a moderna medicina consegue, muitas vezes, dar remédio. O miraculado é o maestro José Maurício Bragança Moreira, que passou 14 anos cego e, em 2014, da noite para o dia, voltou a enxergar. O glaucoma lhe havia destruído o nervo óptico, condição que, como sabemos, no atual estágio de desenvolvimento da medicina é infelizmente irreversível.

No entanto, certa noite, sofrendo de conjuntivite, sem conseguir dormir, José Maurício abraçou-se com uma imagem de Irmã Dulce e lhe pediu um refrigério para a dor que o consumia. Conseguiu dormir; na manhã seguinte, ao acordar, quando a sua esposa lhe deu algumas compressas de gelo para os olhos, ele percebeu que estava conseguindo enxergar o gelo e as mãos. A visão foi rapidamente voltando. Hoje, a julgar pelas fotos, parece que nem óculos ele usa mais.

E atenção. Não é que o nervo dele tenha regenerado de repente, o que já seria um milagre e tanto. O que os exames mostram é que o nervo óptico continua danificado; ele não deveria portanto enxergar e, não obstante, enxerga. É como se fosse não um milagre instantâneo, operado naquela noite de 2014, mas um milagre permanente: Deus está mantendo a visão de um homem que não possui estruturas biológicas aptas para enxergar. Se houvesse ainda a figura do “advogado do diabo” no processo de canonização, ele provavelmente alegaria que o milagre é pouco ortodoxo; no entanto, ele mesmo seria forçado a reconhecer que se trata de um feito portentoso.

Um milagre grandioso para celebrar não a entrada de Irmã Dulce no Céu — porque esta provavelmente se deu já naquele ano de 1992 –, mas o seu ingresso oficial, definitivo, na liturgia da Santa Igreja. Para mostrar que a vitalidade do Cristianismo continua sobre-humana a despeito das crises da Igreja. Para deixar claro que, mesmo há séculos de distância, o Evangelho mantém ainda o seu frescor e ainda é capaz de impregnar com seu perfume o nosso tempo, enchendo de assombro e admiração as nossas metrópoles.

Que o Anjo Bom da Bahia interceda por nós, olhe pela Igreja, vele pelo Brasil! Santa Dulce dos pobres, rogai por nós!

Notre-Dame caiu e está de pé

O mundo inteiro voltou seus olhos para a França esta semana. Uma catedral pegou fogo! Toda a preocupação humanista que se viu na mídia secular não é capaz de atingir a dimensão deste incidente; é preciso olhá-lo com os olhos da Fé. Porque uma catedral não é um monumento histórico: é um símbolo sagrado, é uma síntese da humanidade, é algo tão caro ao mundo que conhecemos que se pode até mesmo dizer — como ouvimos nos últimos dias — que uma catedral é um arquétipo da própria civilização.

Na segunda-feira santa, à tarde, caíram-me como uma bomba as notícias sobre o incêndio de Notre-Dame. Nas imagens que me chegavam pela internet eu não via apenas um prédio antigo que queimava: era toda a civilização em chamas, abandonada ao descaso, caindo aos pedaços, desmoronando sob os nossos olhares impotentes. O primeiro sentimento, quase imediato, quase instintivo, foi, assim, o de tristeza. Por tudo o que perdemos, pela tragédia que se abateu sobre nós.

À tristeza seguiu-se — confesso-o embaraçado — o desespero. Primeiro porque parecia que tudo iria cair, que o fogo iria destruir tudo, que a incompetência e a impiedade dos homens iriam colocar tudo a perder. O tempo passava e a catedral queimava e parecia que não iria restar pedra sobre pedra; quando a flecha da torre desmoronou — e nós o vimos quase ao vivo pela internet –, parecia que, com ela, todo o edifício viria abaixo.

Foto: Geoffroy Van Der Hasselt / AFP / CP

E, depois, havia o sentido simbólico por trás de tudo, maior, muito maior do que o telhado centenário que ruía: era a própria Fé Católica que se consumia e virava cinzas no coração da Filha Primogênita da Igreja. Era como se os Céus nos estivessem mandando um recado, e a destruição de Notre-Dame fosse uma terrível e providencial metáfora da destruição do Catolicismo no mundo.

Até porque Notre-Dame era, desde há muito, uma sobrevivente. Olhávamos para aquele edifício, ainda que não o soubéssemos verbalizar, com um misto de reverência e admiração: no contraste entre a Paris medieval e a França moderna, qualquer um podia perceber que aquele mundo não mais existia. Notre-Dame estava lá, encrustada no meio da cidade, no coração da Île-de-France, inundada de turistas, como uma testemunha silenciosa de um tempo áureo há muito perdido nas brumas da História. Por aqui passou uma raça de homens superiores, a velha catedral nos dizia, e os seus arcos e ogivas vertiginosos se impunham ao homem moderno como vestígios de um tempo de glória. E quando os católicos já há muito se haviam calado, aquelas pedras medievais permaneciam ecoando ao mundo as glórias do Deus Altíssimo.

Como não enxergar na queda da catedral a mais perfeita e lógica decorrência natural do abandono da Fé nas almas?

E, no entanto, a vigília espiritual em que imediatamente nos pusemos fez aquele desespero arrefecer. O passar das horas nos deu notícia de que nem tudo caiu na Sé de Paris; poder-se-ia até mesmo dizer que caiu muito pouco, somente o telhado, apenas o pináculo. O espetáculo era terrível para quem via de fora; por dentro, no entanto, a Catedral sobrevivia.

Toda a estrutura da Igreja resistiu ao fogo, assim como o altar-mor, com a Pietà ladeada por dois reis de França, Luís XIII e Luís XIV. Foi preservada também a maior parte dos vitrais, estátuas, púlpitos, mesmo os bancos. O órgão não foi destruído. A majestosa rosácea — cujos vidros coloridos, segundo se ouviu dizer, foram fabricados pelos antigos alquimistas — também continua lá. Por fora, a destruição parecia total. Mas apenas por fora. Apenas parecia.

Foto: Fr. Z’s Blog

E tudo isso, apesar de toda a dor, de toda a tragédia, nos encheu de esperança. O incêndio nos revelou algo de mais profundo sobre a nossa história, sobre as nossas raízes: é que nós tendemos a aquilatar as coisas pela estatura do nosso tempo. Aquele fogo que nós vimos segunda-feira teria reduzido a pó qualquer coisa construída nas últimas décadas; mas ele não pôde ombrear-se ao gênio da antiga Cristandade. Pensávamos que Notre-Dame fosse tão frágil quanto um Shopping Center; contudo, a velha catedral se mostrou tão inquebrantável quanto a Fé dos que a construíram. Vimos o fogo, e Notre-Dame havia caído; entramos por seus pórticos, e Notre-Dame estava de pé.

E, assim, aquele simbolismo funesto que entrevíamos à primeira vista se inverte por completo, dando lugar a um alento de esperança: no interior do templo sagrado, no coração da catedral, a Cruz permanece de pé, refulgente, mesmo em meio ao fogo e à destruição. A Fé Católica fincada um dia no coração da França é firme, é forte, como as paredes juncadas de gárgulas que resistem a incêndios: afinal de contas, não vimos os franceses, muitos deles jovens!, cantando e rezando de joelhos diante do incêndio? Essa manifestação espontânea de Fé, em meio à impiedade generalizada das nossas metrópoles, não é um milagre tão portentoso quanto os vitrais de Notre-Dame resistindo ao fogo?

As catedrais legadas por nossos antepassados são mais fortes do que acreditamos. E mais forte, muito mais sólida do que as paredes de pedra, é a Fé Católica pela qual os mártires verteram o seu sangue e de cuja vivacidade os santos deram testemunho com a própria vida. O que recebemos do passado é mais duradouro do que aquilo que encontramos no presente. Notre-Dame resistiu ao fogo no centro da França; como seria possível que a Fé Católica não sobrevivesse aos assaltos do mundo no coração dos franceses? Não é a Fé da Igreja muito mais indestrutível do que as antigas catedrais? Se estas resistem aos séculos, como poderia aquela vir a perecer?

Obrigado, Notre-Dame! A Semana Santa iniciou com a catedral em chamas. Que saibamos discernir os sinais dos céus. Que possamos nos arrepender e fazer penitência por nossos pecados; que possamos seguir os passos de Nosso Senhor. Com os olhos fitos na Ressurreição d’Aquele que venceu o mundo. Com a certeza de que as portas do Inferno não prevalecerão jamais contra a Igreja.

Vive Cristo, esperanza nuestra

O Papa Francisco vai assinar na próxima segunda-feira, 25 de março, a exortação pós-sinodal do Sínodo sobre a juventude do ano passado. Duas novidades: desta vez, o documento virá no formato de uma “carta aos jovens” e, além disso, será assinado em Loreto, santuário mariano, fora do Vaticano portanto.

Quanto ao formato do documento, não vejo maiores dificuldades. Trata-se de exortação apostólica, ato formal do Magistério Eclesiástico da mesma natureza, por exemplo, da Familiaris Consortio. É veículo autorizado de transmissão do ensino católico acerca de um tema específico — neste caso, “a juventude”. A princípio, um documento eclesiástico não perde a sua força em razão do estilo com o qual é escrito.

Mas há, no entanto, uma dificuldade de que se pode cogitar, uma de ordem por assim dizer extrínseca e não intrínseca: é que, sob a ótica hermenêutica, o tom informal que presumivelmente se espera de uma “carta aos jovens” pode facilmente obscurecer a reta compreensão da Doutrina Católica — da ortodoxia que presumivelmente se espera de uma exortação apostólica. O problema da mudança de tom não é inédito e nem inesperado, tendo acompanhado o passo da Igreja, às vezes com menor força, às vezes com maior, ao longo das últimas décadas — e isso sem que se precisasse chegar a estes extremos de informalidade que agora se anunciam…

Não que existam formas linguísticas rígidas essencialmente associadas aos diversos tipos de documentos pontifícios. Mas é evidente que um emprego descurado da linguagem pode gerar, e efetivamente gera, um sem-número de incompreensões. É claro que o que é propriamente objeto de um pronunciamento magisterial é aquilo que é significado, e não a maneira escolhida para o significar; a rigor e no limite, devemos o assentimento de nossas inteligências ao conteúdo das fórmulas de Fé e não às fórmulas em si mesmas. Mas também não é sem-razão que a Igreja estabelece fórmulas, e talvez o desinteresse que hoje se tem para com elas explique a dificuldade de compreensão do Catolicismo que, hoje, é o maior mal que assola a Igreja.

Há um outro detalhe digno de nota. É que, desde o ano passado, estavam em vigor certas normas sobre o Sínodo dos Bispos que autorizavam a Assembléia Sinodal a publicar diretamente, por si própria, o documento conclusivo do Sínodo. Falei sobre o assunto aqui. À época, achei que o novo procedimento substituiria o costume de o Papa redigir exortações pós-sinodais, passando a residir no documento final do Sínodo o magistério petrino sobre o assunto.

Mas o Documento Final do Sínodo sobre a Juventude foi votado e aprovado, havendo sido publicado em outubro do ano passado. Inclusive a Sala Stampa publicou as votações detalhadas de cada um dos parágrafos de que é composto o texto. Ainda assim, no entanto, vem-nos agora a notícia de que o Papa Francisco preparou uma Exortação Apostólica pós-sinodal; e, junto com a notícia, vem-nos a dúvida sobre se esta nos sairá melhor ou pior do que aquele…

A despeito de tudo, porém, o local e a data da assinatura do documento são bastante significativos: um santuário mariano, no dia da Anunciação! Envolta assim no tempo e no espaço pelos cuidados da Virgem Santíssima, podemos esperar que esta Carta aos Jovens tenha bom êxito e efetivamente consiga, pela poderosa intercessão da Mãe de Deus, atingir os corações e as mentes da juventude atual. É por isso que rezamos agora. Ó Maria Imaculada, velai pela Igreja do Vosso Filho, recebei este documento à Vossa honra consagrado, e tirei dele maior bem do que seriam capazes os esforços humanos que o produziram. Amen.

Calendário Quaresmal 2019

Mais um Carnaval tem seu fim, mais uma Quaresma nos é concedida pela Divina Providência — graças a Deus. Mais uma vez a Misericórdia do Altíssimo nos concede um tempo favorável para a conversão. Mais uma vez, embora o mundo não a mereça, a oportunidade de fazer as pazes com Deus. Mais uma vez Cristo estende ao mundo as mãos ensanguentadas, oferecendo amor e amizade. Será pedir demais as nossas lágrimas…?

Pois as choremos com coragem e valentia! Aproximemo-nos do Senhor enquanto Ele está perto; busquemo-Lo, enquanto Ele Se deixa alcançar. A Quaresma é este tempo de exercícios espirituais no qual a Igreja Militante se prepara para melhor servir a Cristo. Não é simplesmente um tempo de fugir do pecado — todo o tempo, insista-se, todo o ano, todos os dias, independente do tempo litúrgico, é tempo de se fugir do pecado! A Quaresma é mais que isso. Além de resistir ao mal, é tempo de praticar o bem. Além de não cometer novos pecados, é tempo de fazer penitência pelos pecados de outrora.

E, para isso, pode ajudar ter uma rotina de exercícios — um calendário que indique o que pode ser feito em cada um dos dias desta Santa Quaresma. Atenção, que se trata de simples sugestão: pequenos propósitos para ajudar a viver frutuosamente este tempo de graças. Não se trata de regra da Igreja — a regra eclesiástica é a da Paenitemini, “todos os fiéis estão obrigados pela lei divina a fazer penitência” (Chapter III, I. 1), reproduzida no Código de Direito Canônico: “Todos os fiéis, cada qual a seu modo, por lei divina têm obrigação de fazer penitência” (CIC, Cân. 1250).

Em suma, que temos que fazer penitência é certo. Tal decorre tanto da lei eclesiástica quanto da lei divina. Como havemos de fazê-la, excetuados o jejum e a abstinência dos dias prescritos para a Igreja Universal, aí já é coisa que cada fiel deve discernir por si. Dentro da diversidade dos deveres de estado particulares, cada católico deve eleger o modo específico de concretizar o dever comum da penitência, principalmente no tempo quaresmal.

É neste sentido que é apresentado o calendário abaixo. Nas palavras do Regnum Christi Recife, responsável por sua elaboração:

O Calendário traz sugestões diárias de propósitos para nos ajudar a viver uma Quaresma mais comprometida e agradável a Deus. Aliado a ele, recomendamos também as meditações do projeto “One Step Closer”, que serão divulgadas na página nacional do Regnum Christi @regnumchristibrasil. Que sejamos dóceis à graça divina e Nosso Senhor use destas ferramentas para converter e formar nosso coração.

Movimento Regnum Christi no Recife

Acesse-se aqui o calendário, ou clicando sobre a imagem abaixo. A todos, uma santa e profícua Quaresma! Que, ao longo destes dias de roxo, o trigo seja triturado para fazer-se pão branco imolado a Deus na Páscoa da Ressureição.

Calendário Quaresmal 2019

Adeus à carne

O Carnaval é a antessala da Quaresma. Isso, nós o aprendemos quase que por instinto, quase que por osmose, quase como um truísmo apanhado displicentemente no campo das verdades apodíticas. Nem discutimos. Está na nossa cultura, está no ciclo festivo a que somos expostos ano a ano, está nas máscaras dos palhaços e nas marchinhas de Carnaval. Ao Carnaval segue-se a Quaresma, à Terça-Feira Gorda segue-se a Quarta-Feira de Cinzas — e, aqui, talvez sejamos tentados a complementar: como ao pecado se segue a penitência.

A Missa de Cinzas é para quem cometeu pecados no Carnaval: também já ouvi isso algures. Por essa lógica, você pecaria no Carnaval para se purificar durante a Quaresma. E assim ficaria parecendo que as Cinzas — e, por extensão, toda a Quaresma — seriam uma benevolência da Igreja para com as ovelhas desviadas durante os festejos carnavalescos, um aceno misericordioso às viúvas de Momo.

Tudo isso, no entanto, é balela. É preciso ter coragem de afirmar com veemência, com firmeza, mesmo contra o senso comum que talvez impere entre os que desconhecem o Catolicismo: não, o Carnaval não está para a Quaresma assim como o pecado está para a penitência, não, a Igreja não instituiu as Cinzas para arrebanhar os foliões arrependidos. Não, a Quaresma não existe em função do Carnaval, é exatamente o contrário: é o Carnaval que existe em função da Quaresma. A Quaresma é que é o essencial; o Carnaval é acessório.

E a natureza do acessório deve ser proporcionada à do principal. Ora, a Quaresma é santa e santificante. O Carnaval, portanto, deve ser santo e santificante também. Já esbocei este raciocínio outras vezes aqui, em outros carnavais, mas vale a pena repeti-lo: o tempo do Carnaval é um tempo essencialmente bom, proporcionado à natureza humana, espiritualmente profícuo. Se sobreviesse à humanidade um período de trevas puritanas, e se os homens se esquecessem do que é o Carnaval, e se ao Tempo Comum após o Ciclo Natalino se seguisse a penitência quaresmal sem solução de continuidade, então a Igreja teria que inventar (de novo) o Carnaval, então Momo teria que ser trazido de volta à vida para servir a Cristo.

Porque é preciso dizer adeus à carne! É preciso reconhecer a beleza da música para amargar o silêncio, é preciso deleitar-se com as cores para enlutar-se com o roxo, é preciso apreciar a comida para oferecer a Deus o jejum. É óbvio. O Carnaval é a antessala da Quaresma não porque o pecado precede a penitência, mas porque a preparação da vítima precede o sacrifício. A fartura de hoje ressalta o jejum de amanhã. Nós comemos e bebemos para valorizar a nossa abstinência iminente. Neste tríduo profano, nós reafirmamos a bondade daquilo que, pelos próximos quarenta dias!, vamos oferecer em sacrifício ao Todo-Poderoso.

Se não fosse possível viver santamente o Carnaval então não seria possível viver de forma meritória a Quaresma, cuja penitência consiste em oferecer a Deus o que há de bom no mundo e não o que temos de ruim em nós. Os protestantes não entendem a penitência porque só valorizam o pecado e o arrependimento. Nós, católicos, sabemos que, para além do arrependimento, existe um longo e doloroso caminho de mortificação que deve ser palmilhado Calvário acima se quisermos um dia chegar à glória de Deus. Não se trata de pecar e depois se arrepender, trata-se de se mortificar dia a dia para cada vez mais se assemelhar a Cristo. Isso não é uma coisa que se faça de uma vez para sempre, é um processo que, enquanto estivermos respirando, precisaremos sempre enfrentar.

É exatamente por isso, aliás, que devem ser rejeitadas as mensagens (alegadamente) de Quaresma que dizem para fazermos “jejum de fofoca” (ou coisa parecida) no lugar de jejum de comida. Isso não tem sentido absolutamente nenhum. A fofoca é pecado e deve ser evitada sempre, o ano inteiro, todos os dias, e não apenas na Quaresma. Não se faz “jejum de pecado”, o pecado você evita e arranca da sua vida, contra o pecado você trava guerra sangrenta e incansável vinte e quatro horas por dia! O jejum, a penitência, são sacrifícios oferecidos a Deus, e você somente se abstém do que é bom e lícito, você apenas oferece a Deus aquilo que tem valor. A carne é boa e a fofoca é ruim: é por isso que nós comemos carne no Carnaval e jejuamos na Quaresma, ao passo que não nos é lícito fofocar nem na Quaresma, nem no Carnaval e nem em momento nenhum.

E é pela exata mesma razão que o Carnaval deve ser celebrado. Se a alegria carnavalesca fosse uma coisa má em si mesma, a penitência quaresmal ficaria esvaziada de sentido. Reduzir-se-ia a evitar o pecado, que é a tônica básica da vida cristã no ano inteiro (inclusive, evidentemente, no Carnaval). E, assim, os novos iconoclastas, ávidos por despedaçar bonecos gigantes de Olinda, poriam fim a todo um tempo do Ano Litúrgico.

O Carnaval não é o pecado pelo qual vamos fazer penitência na Quarta-Feira de Cinzas: não nos é lícito pecar nem no Carnaval nem em tempo algum. A licenciosidade dos costumes é algo reprovável e degradante, é coisa contra a qual temos que lutar no Carnaval como no resto do ano inteiro. Não nos é lícito entregar à licença no Carnaval para nos penitenciar na Quaresma — como, repetimos, não nos é permitido ser licenciosos em tempo algum! Mas, no Carnaval, por baixo da licenciosidade, da bebedeira, da maledicência, é preciso enxergar o núcleo que é bom, é preciso encontrar o sentido original da festa, é preciso identificar os prazeres lícitos que estamos aproveitando agora porque, já em breve, deles nos vamos abster. Carne, vale! É preciso saber dizê-lo; na boa compreensão desta despedida está o segredo de uma boa Quaresma.