A falta de sentido como objetivo do discurso

O nosso mundo padece de uma falta crônica de rigor terminológico. O fenômeno se reproduz e manifesta nos mais variados âmbitos da vida, dos debates presidenciais à catequese dos párocos, das falas dos sedizentes formadores de opinião à informação dita imparcial da imprensa. É certo ser muito difícil negar a existência da textura aberta da linguagem; contudo, muitas vezes as pessoas agem como se se tratasse de um abismo intransponível e como se, na comunicação interpessoal, nada importasse mesmo porque qualquer coisa dita poderia, sempre e necessariamente, ser entendida de um sem-número de maneiras.

As pessoas perderam, completamente, a sua confiança na capacidade da linguagem de transmitir o pensamento: só isso explica a proliferação generalizada de discursos sem sentido que nos bombardeiam o tempo inteiro. O introito, fi-lo porque queria comentar, algo ligeiro, esta matéria sobre o padre que afirmou ter sido Jesus “revolucionário e comunista”. Há diversos absurdos aqui.

Há, antes de mais nada, o absurdo de semelhante sandice constituir manchete jornalística corriqueira. Por um lado, não provoca estupor que um sacerdote católico seja capaz de proferir tal absurdo; por outro lado, a própria notícia é escrita sem paixão, com três parágrafos mornos, como se o repórter estivesse redigindo a coisa mais desinteressante do mundo. A blasfêmia nos lábios do sacerdote – eis o que quero dizer – não provoca nem revolta e nem júbilo; nem os protestos dos bons, nem a exaltação dos maus. Permanece naqueles círculos das notícias banais, publicadas somente para “bater meta” e que, ao que parece, não interessam suficientemente a ninguém.

Há o próprio absurdo do conteúdo da declaração: Nosso Senhor Jesus Cristo, é evidente, não pode ser comunista nem propriamente e nem por analogia. Não o pode propriamente por patentes limitações de ordem historiográfica: o comunismo só surgiu muitos séculos depois de Cristo. E não o pode ser por analogia porque a doutrina cristã não é, nada, em nenhum aspecto, comparável à pregação comunista. Os princípios básicos desta são – para ficar apenas nos dois mais gritantes – a igualdade absoluta entre todos os homens (com todos eles dissolvidos na massa desindividualizada da qual é feito o Estado Onipotente) e a rejeição do direito de propriedade. E mostrar como o Cristianismo se opõe a ambas é a coisa mais fácil do mundo.

Quanto à primeira, basta lembrar a estrutura hierárquica que Jesus claramente impingiu ao grupo dos Seus seguidores: Ele ensinava às multidões, mas enviava em missão apenas a alguns que chamou discípulos («setenta e dois», segundo São Lucas) e só a Doze constituiu Apóstolos, Seus mais próximos colaboradores, como bem o sabemos. Quanto à última, seria desnecessário e até meio ridículo arrolar as passagens todas onde o próprio Cristo defende, sim, que as pessoas tenham posses; contentemo-nos, tão somente, com este breve versículo, horror dos que pugnam contra o direito de propriedade:

O Reino dos céus é também semelhante a um tesouro escondido num campo. Um homem o encontra, mas o esconde de novo. E, cheio de alegria, vai, vende tudo o que tem para comprar aquele campo. (São Mateus 13, 44)

Ousando comparar as coisas mais sublimes – o Reino dos Céus! – a um vil comércio de terras, mais lógico seria que Nosso Senhor fosse chamado de latifundiário que de «comunista». Mas a lógica, percebe-se, não é mesmo o ponto forte dos que gostam de inventar nescidades à revelia do Magistério da Igreja Católica.

Por fim, há o absurdo da fala do padre. Veja-se a confusão do discurso:

Jesus é revolucionário, é super-revolucionário, vai além dos seres humanos, é amor, a sua ação é socialista, é comunista, compartilhou com uma comunidade de seres humanos.

Por todas as revoluções, o que raios isso poderia significar?! Não satisfeito em simplesmente assertar o revolucionarismo de Cristo, o padre vai além e afixa-Lhe um superlativo. Não fica claro, de nenhuma maneira, nem em quê, exatamente, se distingue o “super-revolucionário” do reles revolucionário comum e nem por qual misteriosa razão Jesus Cristo pertenceria a uma classe ou a outra. Ao dizer que Ele “vai além dos seres humanos”, mais uma vez não se percebe onde o reverendíssimo sacerdote quer chegar: sim, Cristo, “vai além” dos homens porque é Deus, mas isso não tem nada a ver, à primeira vista, com os dois adjetivos precedentes. Segue o discurso, sem a mínima conexão das partes seguintes com as antecedentes: “é amor”, diz o padre. Deus caritas est, de fato, verdade cristã incontrastável. No entanto, o discurso decai novamente da alta teologia para a revolta materialista chinfrim e, de repente, sem ter nem pra quê, a ação de Cristo é, de novo, comunista e socialista. Mais uma vez, nem uma única explicação é dada. Por fim, como se até então não fosse suficiente, vem o grand finale: “compartilhou com uma comunidade de seres humanos”.

Quem compartilhou? Cristo? A ação? Compartilhou o quê? A ação? Cristo? O amor? Com qual comunidade? A “dos seres humanos”? E, se a comunidade não fosse “de seres humanos”, seria de quê? É inútil procurar qualquer sentido: o padre não quer dizer absolutamente nada. Trata-se de pura verborragia, de um pretenso “falar bonito” que, na verdade, de bonito não tem nada, porque amputa a linguagem exatamente daquilo que é a sua função precípua: transmitir o pensamento.

Ninguém sabe o que o pe. Molina quer dizer com a sua tagarelice, e é proposital: ele não quer, mesmo, ser entendido. Quer apenas jogar palavras soltas que evoquem sentimentos atualmente benquistos – “socialista”, “amor”, “partilha”, “comunidade”, “Jesus Cristo” – num saco de gatos onde cada parte é uma unidade semântica autônoma e não tem qualquer relação com o todo. É isso o que acontece, com assustadora freqüência, nos dias de hoje: o próprio objetivo do discurso é não ter sentido algum, é não se comprometer, é não transmitir nada e apenas evocar estados de espírito de algum modo agradáveis. Que os que assim agem não consigam ver o quanto isso degrada o ser humano é somente a conseqüência previsível de trocar o pensamento claro e rigoroso pelos arroubos emotivos provocados por palavreados vazios.

É por isso que o Papa pode dizer que ninguém faz mais que a Igreja contra a pedofilia

Por ocasião da recente Visitação Apostólica à Diocese paraguaia de Ciudad del Este, a questão do pe. Carlos Urrutigoity veio à tona. A sua nomeação como Vigário-Geral (ocorrida em fevereiro último) provocou a fúria da opinião pública: como é possível que a um sacerdote acusado de abuso de menores (independente de ser culpado ou inocente dessas acusações – todos sabemos que essa é a caça às bruxas moderna), que pingou de diocese em diocese até se encastelar nas fronteiras do Paraguai, seja concedida a honra de exercer as funções do Bispo Diocesano? Que ele seja nomeado seu representante direto?

A cronologia dessa história precisa ficar bem clara. Primeiro, veio a nomeação do pe. Urrutigoity como Vigário-Geral de Ciudad del Este. A este fato reagiu a SNAP, uma ONG de vítimas de abuso sexual por membros do clero e devotada a expôr publicamente aqueles que ela considera “predadores”. SNAP conseguiu que um bispo americano (Mons. Joseph Bambera, de Scranton) enviasse uma carta à Santa Sé onde expunha as suas “preocupações” com a nomeação. A mídia, naturalmente, fez o maior escarcéu com a notícia. Depois, só depois, veio a Visitação Apostólica.

Disso decorrem duas coisas:

1. Com os holofotes todos voltados para o Sucessor de Pedro, é evidente que o Papa Francisco não poderia tomar outra atitude. Há um sem-número de coisas que podem ser censuradas aqui: primeiro, a imprudência de nomear Vigário-Geral um sacerdote manchado pela sombra de uma acusação de pedofilia. Segundo, a ingerência de um bispo de outro continente em uma diocese com a qual ele pouco ou nada tem a ver, tornada pública através do site de uma ONG abertamente hostil à Igreja. Terceiro, o histriônico e espalhafatoso rasgar de vestes de certa mídia, muito mais compromissada com a difamação de uma instituição séria do que com a justiça do caso concreto. Contra isso, sim, é justíssimo protestar; não contra a intervenção pontifícia.

2. A situação anterior era objetivamente daninha à imagem da Igreja Católica, única instituição do mundo da qual é lícito sempre pensar o pior possível, única ré que é sempre culpada até prova em contrário. Pouco importa que a culpa do escândalo de pedofilia não seja da Igreja e sim do degenerado mundo moderno, é como se diz no chiste: “a culpa é minha e eu ponho em quem quiser”. A atitude do Santo Padre, portanto, era não só legítima como uma verdadeira exigência de justiça. Julgar diferente disso é não dar a devida importância ao ethos anti-clerical em meio ao qual se vive nos dias de hoje.

Há poucos meses, em uma de suas entrevistas – cujas partes dignas de lembrança parecem ser unicamente as passíveis de serem instrumentalizadas em desfavor da Igreja Católica… -, o Papa Francisco se permitiu soltar esta profunda e tonitruante verdade (original aqui):

As estatísticas sobre o fenômeno da violência contra as crianças são impressionantes, mas também mostram com clareza que a grande maioria dos abusos ocorre no ambiente familiar e na vizinhança. A Igreja Católica talvez seja a única instituição pública que se moveu com transparência e responsabilidade. Ninguém mais fez mais. No entanto, a Igreja é a única a ser atacada.

Ganhou também manchete nacional: «Papa afirma que ninguém faz mais que a Igreja contra a pedofilia». E se trata de verdade evidente, tão incontestável que ninguém ousou então contradizer o Soberano Pontífice. Ora, não foi o Papa Francisco quem estabeleceu tal estado de coisas: a página sobre a resposta da Igreja ao abuso de menores está há anos no site da Santa Sé, por exemplo. No entanto, a nenhum outro Romano Pontífice foi jamais permitido anunciá-lo pelos meios de comunicação de massa seculares. Nenhuma análise do modus agendi do Papa que se pretenda séria pode olvidar fatos como esse.

Para preservar essa conquista pode ser necessário desagradar alguns; não se pode nem mesmo negar a priori a possibilidade de que terminem por ocorrer algumas injustiças de fato. Penso, por exemplo, na hipótese do pe. Urrutigoity ser inocente como sempre se declarou… O sofrimento dos justos, contudo, sempre redunda no bem da Igreja: eis um fato que católico algum pode ignorar. Vivemos num mundo que está longe de ser perfeito e, nele, a imagem tem um preço: muito desgaste teria sido evitado se a Mitra de Ciudad del Este tivesse levado isso a sério em primeiro lugar. Para além de quaisquer percalços ocorridos nos campos de batalha pela glória da Igreja, contudo, paira reconfortante uma sentença contra a qual nada podem as hostes de Satanás: diligentibus Deum omnia cooperantur in bonum (Rm VIII, 28). Amar verdadeiramente a Deus, portanto, deve ter a primazia entre as nossas preocupações. Uma vez que o consigamos, o resto não nos deve perturbar.

Solicitada abertura de inquérito por ultraje a culto na Catedral da Sé

Já não deve ser novidade para ninguém o recente vandalismo perpetrado por um indivíduo na Catedral da Sé de São Paulo, desfilando pelo interior da igreja com vestes dignas de uma Parada Gay. Muito satisfeito e muito orgulhoso do seu gesto libertador e revolucionário, o celerado em questão – que atende pelo nome de Yuri Tripodi – vinha se vangloriando em seu Facebook da “performance”. A depender dos desdobramentos que o caso tomou, é de se esperar que ele em breve ponha de lado o sorriso zombeteiro ora estampado no rosto.

Na última segunda-feira (28/07), foi protocolado junto ao 1º Distrito Policial da Capital (SP) um pedido de abertura de inquérito policial para a averiguação dos possíveis crimes de ultraje a culto e ato obsceno praticados pelo sr. Tripodi (cf. aqui). A notícia alvissareira me foi enviada pelo caríssimo Rodrigo Pedroso, um dos requerentes, a quem duplamente agradeço: em primeiríssimo lugar pela própria atitude tomada junto aos órgãos competentes de polícia e, em seguida, pela sua divulgação.

Não é de hoje que acontecem esses gestos covardes contra a Igreja, motivados por uma falta de respeito ao próximo que transcende qualquer credo religioso ou mesmo ausência de credo: esse tipo de agressão gratuita, tenho certeza, é percebido não apenas pelos que têm Fé, mas por qualquer pessoa capaz de um mínimo de empatia, tanto como ofensivo aos católicos quanto como de mau gosto e desnecessário. Ninguém precisa ser religioso para entender que expôr as partes íntimas dentro de um templo católico é profundamente agressivo: aliás, o próprio fato do “artista” tomar isso como um libelo contra a opressão religiosa ou o que seja já demonstra, por si só, que ele tem completa consciência do significado do seu gesto. Não se trata, portanto, de nenhum pobre-coitado sobre cujo “jeito de ser” a Igreja está lançando censuras descabidas e injustos vitupérios: trata-se, isso sim, de alguém que deliberadamente se comporta de modo a ofender e escandalizar católicos que estavam pacificamente reunidos no seu lugar próprio de culto. Não é questão de melindre religioso, e sim de civilidade pura e simples.

Não é de hoje, eu dizia, que gestos covardes assim encontram quem os realize alegremente; mas o número desses “corajosos”, estou certo, seria bastante diminuído se eles sofressem na pele alguma mínima conseqüência pelas suas ações. Se ao lado dos tapinhas amigáveis nas costas e das manifestações rasgadas de admiração despejadas nas redes sociais caíssem-lhes alguns pedidos de esclarecimentos por parte das autoridades públicas, estou certo de que os desocupados arranjariam rapidamente outras coisas para fazer: quando menos para não ter que perder tempo às voltas com delegacias e fóruns de justiça. Porque atitudes assim têm o espírito de corpo de um punhado de baratas: basta acertar uma delas para as demais fugirem, desorientadas e perdidas, para todas as direções.

Se por um lado é de se lamentar profundamente a leniência das autoridades religiosas no tocante a estas questões, que nelas parecem não ver nenhum problema de suficiente monta, por outro merecem louvores as atitudes dos fiéis particulares que, em seu próprio nome, gastam um pouco de tempo e de energia para tornar um pouco mais difícil a zombaria das coisas sagradas. Oxalá o exemplo do sr. Rodrigo Pedroso e colegas possa levar outras pessoas a tomarem a mesma iniciativa. Não somos em menor número do que os vândalos e baderneiros. Não é justo que assistamos, inertes, a esses ataques ao sentimento religioso, que escarnecem da própria civilização.

Sobre forma e conteúdo: maus comentários e o caso Ciudad del Este

A respeito do último texto do Blogonicvs, que comenta um post daqui do blog, eu gostaria de esclarecer quanto segue:

1. Não foi o Danilo quem comentou aqui no Deus lo Vult! (e nem eu disse que tinha sido), e sim o Renato, um sedevacantista que já é figurinha conhecida e carimbada entre os leitores do blog, conhecido por simplesmente cuspir links aleatórios com frases do tipo “veja isso, Jorge!”, “abra os olhos enquanto é tempo, Jorge!” e congêneres, quase sempre sem nenhuma propensão ao debate ou à crítica construtiva, quase sempre com mero animus de semeador do caos e arauto sorridente de más notícias, pouca diferença fazendo se supostas ou verdadeiras.

2. Por conseguinte, também não foi o texto do Blogonicvs (nem na íntegra e nem no excerto aqui citado) que apodei de “exemplo de mau comentário”, e sim o referido comentário do Renato, que consistia simplesmente em copiar-e-colar um link de pertinência (no mínimo) controversa. Eu o disse no próprio texto, ao esclarecer (logo no início) que recebera comentários (cito-me recursivamente, pedindo perdão pelo excesso de aspas) «exatamente naquele estilo que eu deplorei aqui de «mera reprodução de conteúdo»». E o que tem neste link, a que me referia, é o seguinte:

Contudo, procurarei ser também mais criterioso: se o texto principal não é espaço para mera reprodução de conteúdo, tampouco a área de comentários deve ser usada para simples divulgação do que quer que seja.

O “exemplo de mau comentário”, portanto, não era o texto do Blogonicvs (nem nenhum dos outros textos citados no post). Os maus comentários eram os do Renato, copiando e colando links aleatórios, sem nenhum comentário, sem nada, e despejando-os em posts daqui do Deus lo Vult! com os quais aqueles pouco tinham a ver. A questão, destarte, é e sempre foi precipuamente de mera forma, sem entrar no mérito do conteúdo divulgado.

3. Eu não comento em quase nenhum outro blog fora este aqui, mas os leio. Não com a maior fidelidade do mundo, mas leio. O Danilo, aliás, desde os tempos do Igreja Una. Inclusive aqui, no rodapé do Deus lo Vult!, entre outros blogs, estão o próprio Blogonicvs e o Fratres in Unum, de onde saíram dois dos três textos criticados naquele post que ensejou esta celeuma. Não subscrevo tudo o que eles escrevem (na verdade, as únicas coisas que eu subscrevo sem reservas são as que eu escrevo de próprio punho ou as que digo explicitamente subscrever); do Fratres, a propósito, eu discordo muito mais do que com ele concordo. Não obstante, no contexto da internet católica contemporânea têm inegável relevância. Por mais que se possa (e em alguns casos até se deva) discordar deles, é importante conhecê-los. Penso que somos todos crescidos o suficiente para conviver em relativa harmonia. Oremus pro invicem.

4. Entrando por fim no mérito dos textos, com a devida vênia, extrapolar de um anúncio de uma visitação apostólica a uma Diocese que abriga um sacerdote acusado de abuso sexual de menores (tema particularmente candente nas últimas décadas cujo combate mereceu atenção, digamos, “midiática” (no sentido de que se percebeu a importância, mais do que simplesmente fazer, de também dizer ao mundo que se estava fazendo) nos dois últimos pontificados) um suposto revanchismo do Papa Francisco e (outro) exemplo de seu combate acirrado contra tudo o que é tradicional é, convenhamos, um pouco paranóico sim. Os motivos da visitação até onde eu saiba não foram anunciados, os seus resultados não podem ser conhecidos antes de decorrerem do fato que ainda não se deu e, portanto, todo o texto que pinta o Papa Francisco – Sumo Pontífice gloriosamente reinante – com as cores de um Bicho-Papão devorador de tradicionalistas é especulativo e infundado. Enseja uma atitude de desconfiança do fiel católico simples para com o Vigário de Cristo, estado de espírito absolutamente inconveniente para o católico e que não deve, portanto, ser incentivado. Merece esta crítica, sim, que fiz en passant no outro texto (uma vez que o foco lá era desencorajar a prática de copiar-e-colar links na caixa de comentários do Deus lo Vult!), mas que detalho um pouco mais agora.

5. Por fim, ainda sobre Ciudad del Este, pouco ou nada sei sobre a exuberante vida tradicional abrigada na Diocese, mas sei de uma coisa: é óbvio que existe hoje em dia um enorme preconceito (inclusive e infelizmente eclesial) contra o catolicismo sério. Quem portanto toma sobre os ombros o fardo de ser um facho bruxuleante de luz que seja em meio ao caos generalizado em que nos encontramos não pode, de nenhuma maneira, abrir flanco a ataques dos inimigos de Cristo. À mulher de César não basta ser mulher de César, sabe-se muito bem, e ao católico que quer ser exemplo no meio da crise (ou mesmo que não queira – quem se encontre de repente como exemplo, ainda que por conta da generalizada aridez ao redor!) não basta ser católico exemplar, tem que o parecer também. Assim, é de uma imprudência sem tamanhos acolher um sacerdote acusado de pedofilia e – pior ainda! – conferir-lhe cargos de importância. Não importa se o acusado é inocente, não importa se a Diocese não tem nada a ver com as coisas das quais ele é acusado: importam as cores tétricas com as quais esta Diocese torna-se passível de ser pintada diante da opinião pública e, junto com ela, todo o catolicismo tradicional que ela encarna, que é difícil de distinguir dela própria e, por isso mesmo, que sai injustamente enlameado dessa história. As filhas do Pe. Maciel são muito mais daninhas ao catolicismo do que os de Fernando Lugo, exatamente por causa da imagem de católico que o primeiro detinha e com a qual o último nunca se preocupou. Exposto isso, é de dar graças a Deus que seja um Visitador Apostólico a chegar em Ciudad del Este. Muito pior seria se fosse um Roberto Cabrini.

A Igreja não pode ser pautada pelos que a Ela se opõem

Pediram-me um comentário a respeito da notícia de que o Papa Francisco estaria “sinalizando” a nomeação de mulheres para cargos importantes na cúria. Vejam, o que realmente importa nesta pergunta – assim interpreto eu os sentimentos dos que se sentem angustiados com este tipo de notícias – não é o que ela denota objetivamente. A rigor e analisada em si mesma, essa notícia (1) não possui substância alguma e, (2) ainda que possuísse, seria algo de extremamente banal e corriqueiro.

Por que digo que a notícia não possui substância? Porque ela faz todo um escarcéu em cima de uma frase solta numa entrevista à qual provavelmente nem o próprio Papa Francisco deu a importância que os microscópios da mídia artificialmente lhe conferem. Existe uma mulher concreta cujo nome está sendo cogitado pelo Papa? Não. Existe um cargo concreto que o Papa pretende conceder a uma mulher? Não. Existe um prazo definido dentro do qual passará a haver mulheres – ou pelo menos uma mulher – nomeadas para os dicastérios romanos? Não. Existe ao menos a certeza de que o Papa vai realmente fazer isso? Também não. Não há absolutamente nada, portanto, exceto o Papa dizendo em uma conversa privada com outro padre que “deve” nomear uma mulher «porque [elas] são mais inteligentes que os homens». Isso, sim, é literal: por que não apareceu ninguém, então, para criticar a novidade doutrinária de que as mulheres possuem uma inteligência metafisicamente superior à dos homens?

“Porque isso é besteira”, alguém haverá de dizer, “mas o empoderamento das mulheres em uma instituição tradicionalmente conduzida por homens tem um importante valor simbólico para a luta dos movimentos feministas”. E este é o ponto relevante aqui.

Os que se preocupam com essa notícia (e outras análogas) estão, na verdade, preocupados não com ela, mas sim com o “valor simbólico” do (possível) gesto noticiado. Mais ainda: estão, na verdade, preocupados com a instrumentalização, por parte de grupos revolucionários tradicionalmente avessos à Igreja, do (possível) gesto, conferindo-lhe um valor simbólico que ele absolutamente não possui e utilizando-o para justificar um sem-número de barbaridades (no caso em pauta, ordenação feminina e abolição das diferenças entre os sexos, p.ex.) que ele absolutamente não justifica. O problema, portanto, não está com o Papa, o problema não está nas mulheres trabalhando ou deixando de trabalhar nos órgãos da Santa Sé: o problema está naquelas pessoas que não estão nem um pouco preocupadas com a Doutrina Católica, mas são ávidas em pinçar palavras, atitudes e gestos do Romano Pontífice para dar (aparência de) força à sua concepção de mundo particular. O problema, em suma, não é o Papa nomear mulheres para cargos importantes na cúria. O problema é as pessoas usarem indevidamente uma coisa banal e corriqueira dessas em benefício de sua própria agenda ideológica.

E por que digo que é uma coisa banal e corriqueira? Por diversas razões. Primeiro, porque o trabalho administrativo nos órgãos da cúria não tem nada a ver, nem remotamente, com nada da doutrina (ou mesmo da disciplina) da Igreja Católica. Segundo, porque as mulheres ocupam desde sempre um lugar de especialíssima proeminência dentro do universo doutrinário católico – basta pensar na Santíssima Virgem Maria, referência de todo fiel, do menor dos leigos aos Papas. Terceiro, porque historicamente já foram concedidas a mulheres posições de poder totalmente inimagináveis mesmo pelo mundo laico contemporâneo. Quarto, porque já existem mulheres trabalhando nos dicastérios romanos, é óbvio, sempre devem ter existido: se elas não ocupam os cargos mais altos – de prefeitos, secretários etc. – é por razões de ordem sacramental e não sexista: a reserva é aos sacerdotes em preferência aos leigos, e não aos homens em preferência às mulheres. Quinto, porque isso é uma mera convenção em si indiferente que poderia ser de um sem-número de outras maneiras.

O problema, em suma, é a tentativa de enquadrar a Igreja – ou, melhor dizendo, aspectos desconexos da Igreja – em uma clave que A deforma e termina por A retratar de uma maneira totalmente infiel à realidade. Há uma quantidade potencialmente infinita desse expediente pouco criterioso: se um Papa não permite a ordenação de mulheres então é um misógino, se cogita dar algumas responsabilidades a uma mulher então é porque é um feminista revolucionário, se é contra a camisinha favorece a AIDS, se diz que o uso de preservativos por parte de um prostituto é o menor dos problemas morais nesta situação envolvidos então é um libertino querendo entronizar a revolução sexual na Igreja, se celebra versus populum é um modernista, se celebra versus Deum é um tridentino retrógrado, se condena o comunismo é um porco capitalista, se protesta contra as injustiças sociais é porque é um agente da KGB infiltrado.

Isso acontece, isso é feito o tempo inteiro pelos inimigos da Igreja e pior: isso tem dado certo. Há hoje muitas e muitas pessoas que odeiam a Igreja por Ela ser misógina, por ser esquerdista, por ser antiquada em excesso, por ser modernosa demais, por ser muito rígida, por ser muito lassa, por oprimir os ricos, por desprezar os pobres, por tudo: e só uma minoria ínfima odeia a Igreja por Ela ser o que Ela de fato é. Fulton Sheen dixit. E ele estava certíssimo. As pessoas via de regra não são contra a Igreja Católica. São contra a imagem desfigurada que elas têm da Igreja Católica.

O texto já vai longo, e arremato: a solução desse problema não passa por se abster de fazer as coisas em atenção às leituras distorcidas que pessoas ignorantes ou mal-intencionadas farão dessas coisas feitas. Isso é um erro monumental e absolutamente injustificável. Ninguém pode deixar de venerar a Santíssima Virgem para não ser acusado de idolatria, ninguém pode deixar de celebrar a Santa Missa com decoro e diligência para evitar ser olhado como a um fariseu. E, pela mesmíssima razão, para não ser confundido com um TL não é legítimo a ninguém esquecer que negar ao trabalhador o salário justo é um pecado que clama aos Céus vingança. Pela mesmíssima razão, ninguém pode determinar o que vai fazer ou deixar de fazer em função das reações do movimento feminista a esta ação ou omissão.

Se a Igreja tem que preservar a Sua independência, Ela a precisa preservar também (e talvez até principalmente) contra esses reducionismos maniqueístas tão em moda hoje em dia. A Igreja não pode ser pautada pelos que a Ela se opõem, isso é bastante evidente. Mas não é tão evidente assim que há formas mais sutis de pautar o comportamento de outrem, e também contra estas é preciso se precaver. A Igreja não pode ser coagida pelos “católicos” de esquerda a sancionar as teses já condenadas da teologia da libertação, é óbvio. Mas Ela também não pode negar que a pobreza evangélica seja um valor – ou que existam deveres de caridade para com os pobres que são mandatórios para todo cristão, por exemplo. É preciso combater o lobby modernista que é feito diuturnamente contra Igreja. Mas é igualmente preciso perceber que evitar fazer coisas em si legítimas para não ser visto como modernista é também uma forma de se ser influenciado. E a liberdade de anunciar o Evangelho não pode conhecer esses limites. Os inimigos da Igreja não podem ditar o que Ela pode fazer, é claro. Mas também não podem determinar – nem mesmo indiretamente – o que Ela não deve fazer.

Exemplos de maus comentários

Três comentários maçantes – exatamente naquele estilo que eu deplorei aqui de «mera reprodução de conteúdo», e neste caso com o agravante de serem mau conteúdo – foram postados (e não aprovados) nos últimos dias. À guisa de resposta, somente algumas linhas.

O primeiro deles, São Pio X “descanonizado” pelo Vaticano, parece acreditar (i) que o site da Santa Sé é o rol oficial dos santos canonizados da Igreja, (ii) que, nele, a ausência de um título é igual à negação do status de bem-aventurança daquele a quem o título falta e (iii) que alterações no conteúdo do site têm o condão de mudar a Fé e o Culto oficiais da Igreja de Cristo. Em suma, delírio puro e simples. Pra responder à besteira, basta remeter à página de S. Pio X como ela se encontra atualmente: lá, é possível ler, com todas as letras, «S. Pius PP. X», e este “S.” no início outra coisa não significa que São (Santo). Causa finita.

O segundo, Vaticano promoverá “pastoral de misericórdia” para os divorciados e casais do mesmo sexo, é outro delírio, dessa vez decorrente de péssimo jornalismo. A notícia fala da apresentação do Instrumentum Laboris para o próximo sínodo sobre a família; acontece que (i) no texto não existe o termo “pastoral de misericórdia”, (ii) a parte que nele fala «sobre as uniões entre pessoas do mesmo sexo» (nn. 110-120) na verdade se opõe à união civil homossexual («Todas as Conferências Episcopais se expressaram contra uma “redefinição” do matrimónio entre homem e mulher, através da introdução de uma legislação que permita a união entre duas pessoas do mesmo sexo», IL 113), (iii) ela merece uma consideração à parte daquela reservada às outras “situações pastorais difíceis” (como uniões de fato, mães solteiras e divorciados recasados), o que torna portanto (no mínimo!) impreciso falar numa suposta “pastoral” que englobe ao mesmo tempo as uniões homoafetivas e os casamentos adulterinos, como consta na manchete; e (iv) a única coisa que se pode minimamente afirmar como “favorável” a estas uniões é a idéia de que «caso as pessoas que vivem nestas uniões peçam o baptismo para o filho, (…) o filho deve ser acolhido com as mesmas atenção, ternura e solicitude que recebem os outros filhos» (IL 120) – uma posição, convenhamos, bastante defensável. Ainda uma coisa: já existe atendimento pastoral para divorciados recasados, e isso nunca teve nada a ver com uma condescendência institucional para com os que não honraram os votos do Sagrado Matrimônio: a Igreja ainda é contra o divórcio. E mais: este documento não é prescritivo, não se trata de “diretrizes” para nada, mas tão-somente da consolidação das posições dos diversos bispos e Conferências a respeito de um assunto que há-de ser debatido no sínodo vindouro. Por fim: “casais do mesmo sexo” é uma contradição em termos.

O terceiro, por fim, Visitação Apostólica à diocese de Ciudad del Este, traz até uma informação relevante – o fato de que haverá uma Visitação Apostólica a Ciudad del Este; mas se perde em elucubrações e devaneios que raiam às teorias da conspiração. O único dado concreto e objetivo do qual dispomos é o de que, no final deste mês, haverá um Visitador Apostólico no Paraguai. Ponto. Daí a afirmar que isso seja porque, no atual pontificado, «[t]udo o que é tradicional deve ser neutralizado» é no mínimo paranóico.

Uma das principais razões para as quais eu pretendo cobrar maior qualidade nos comentários aqui postados é exatamente esta: acusações disparatadas são muito fáceis de serem cuspidas, mas demandam um razoável esforço para serem respondidas a contento. A verdade sempre teve esta espécie de desvantagem diante da mera “opinião”: por conta de sua solidez precisa mover-se mais lentamente, e para ser ela mesma precisa honrar certos compromissos que os achismos de todos os naipes se sentem no direito de desrespeitar. Faz parte da natureza das coisas. Não pensem, assim, que certo eventual silêncio por parte do autor dessas linhas implique necessariamente em concordância tácita com o que é dito: às vezes pode significar simplesmente que a resposta, escalonada junto com um sem-número de outras atividades concorrentes e analisada em termos de custo-benefício, simplesmente não possui prioridade alta o bastante para ser executada. É uma pena, eu realmente gostaria de responder sempre tudo. Mas às vezes é humanamente impossível. Peço desde já perdão por essas minhas limitações. Espero melhorar.

Pela historicidade de São Jorge, mesmo com o dragão

Hoje é-me um dia particularmente festivo: 23 de abril é festa de São Jorge, meu onomástico e também do Papa Francisco gloriosamente reinante. É um privilégio compartilhar com o atual Vigário de Cristo o nome de Batismo; neste dia de São Jorge, peço ao mártir que nos dê – a nós, jorges em honra e dívida a ele – a sua têmpera e a sua firmeza.

São-Jorge

São conhecidas as lendas modernas a respeito da festa de hoje. Muitos dizem que o santo não existiu de fato ou que a sua celebração foi suprimida pela Igreja. Nada disso procede. A festa litúrgica continua sendo celebrada, sim, no dia de hoje, 23 de abril, nos dois calendários (tradicional e reformado). Sobre os detalhes históricos da biografia tradicionalmente atribuída ao santo, é na minha opinião elucidativo escutar o que já foi dito por D. Estêvão sobre o assunto:

A respeito de São Jorge, portanto, apenas se pode dizer com segurança que nasceu em Lida (Lydda) na Síria por volta de 270 e foi martirizado em Nicomédia no ano de 303. São considerados como incertos ou mesmo lendários os pormenores habitualmente narrados: Jorge, como soldado do Império Romano, teria participado de uma campanha na Pérsia, após a qual haveria residido em Beirute (Síria); nesta cidade, teria lutado contra um dragão; depois disto, dizem que Diocleciano o enviou em expedição à Grã-Bretanha; Jorge atravessou então o mar da Irlanda, hoje também dito «Canal de São Jorge», e desembarcou em Porta Sistuntiorum; daí dirigiu-se para Glastonbury em peregrinação ao túmulo de seu compatriota José de Arimatéia…

Estamos falando de um santo que morreu há dezoito séculos. É claro que não temos hoje uma reconstituição precisa de sua vida, e nem isso é importante. A ausência de dados biográficos detalhados não implica na inexistência de ninguém. Para fins de culto litúrgico, basta saber que o santo existiu e praticou heroicamente a Fé (no caso, ao menos dando o supremo testemunho Martírio).

Naturalmente, se vamos nos espelhar no exemplo de São Jorge (ou de qualquer outro santo), ser-nos-ia muito útil conhecer mais detalhes da sua vida. As tradições piedosas que nos foram legadas pelo seu culto multissecular podem não ter a garantia férrea das fontes historiográficas incontestáveis, mas nem por isso nos é lícito afastá-las como se fossem “estórias” sem fundamento. Repetimos: nem tudo o que não é cientificamente demonstrado é, por conta disso, falso ou mítico. A biografia rigorosa de São Jorge pode ser extremamente lacônica, mas o santo tem também uma biografia passível de ser reconstituída a partir das tradições cristãs que, embora não possa pretender o mesmo grau de certeza daquele minimum ao qual D. Estêvão já aludiu, não obstante é ao menos possível e não é sensato descartá-la por mero preconceito tecnicista.

Que lições podemos tirar da vida do santo que hoje se celebra na Igreja? Para responder a esta pergunta, é interessante a leitura deste artigo sobre ele, que reconstrói os aspectos tradicionais da sua história a partir do que nos foi legado pela piedade cristã. Traz-nos tudo, naquela riqueza de detalhes tão caras às narrativas hagiográficas, inclusive as transcrições dos diálogos entre o mártir e as autoridades romanas que o condenaram nas longínquas perseguições anteriores ao Edito de Milão. “Que é a Verdade?”, pergunta o cônsul ao soldado cristão, parafraseando Pilatos. “É Jesus Cristo, meu Senhor, a quem perseguis”, arremata o grande Jorge. Bravo!

Por fim, vamos ao que todo mundo quer saber: e o dragão? O sr. Luís Azevedo – no texto acima linkado – diz que a história do dragão «não encontra fundamento real em sua vida». Não é tão simples assim. Na prestigiada Legenda Aurea de Jacobus de Voragine, sob o título de “São Jorge, Mártir”, é possível ler tudo, tintim por tintim: a cidade assolada pelo dragão, o povo reunido para matá-lo sem o conseguir, os sacrifícios feitos à fera – primeiro de animais, depois humanos – para a manter satisfeita, a sorte certa vez recaindo sobre a filha do rei, a princesa amarrada fora da cidade, prestes a ser devorada pela besta.

Milagres da Divina Providência: eis que por lá passa São Jorge! A nobre garota tenta dissuadir o valoroso cavaleiro de salvá-la, mas os seus rogos não são capazes de esmorecer o guerreiro. O dragão aparece e interrompe o diálogo, arremetendo contra ambos. São Jorge persigna-se e se lança à luta contra o monstro, conseguindo enfim prostrá-lo por terra. Amarra-o pelo pescoço com o cinto da princesa e a faz conduzi-lo de volta à cidade. À vista da fera todos se desesperam; mas São Jorge, imponente, pede àquele povo a profissão da Fé e o Batismo, que então ele mataria o dragão. O rei batiza-se com todo o povo – quinze mil homens, sem contar mulheres e crianças, a narrativa faz questão de quantificar – e São Jorge mata o dragão. Em agradecimento, o monarca oferece incontáveis riquezas a São Jorge, que as manda distribuir aos pobres e, deixando ao rei alguns conselhos, despede-se dele e parte. C’est fini.

Incrível? Sem dúvidas. De onde surgiu tão fabulosa história? Ela remete ao menos à Idade Média, há uns sete ou oito séculos atrás. O que há de verdade nela? Difícil dizer. Por favor, não me venham com os truísmos de “dragões não existem”, coisa que é evidente. Mas existem feras selvagens, povos rudes e maus, sacrifícios humanos, homens covardes e corajosos, lutas e conversões. O dragão é o que menos interessa na narrativa, e pode perfeitamente ser substituído por um urso feroz ou um cavaleiro poderoso sem alterá-la em praticamente nada. Impugnar a historicidade do santo por conta desse detalhe é tão sem sentido quanto negar a independência do Brasil por causa dos erros do quadro de Pedro Américo.

O problema aqui se situa em pelo menos dois níveis. Primeiro, não é – absolutamente! – necessário afirmar que é mítica a existência inteira de um personagem por causa de um trecho de sua biografia que nos soa inverossímil. Segundo, não é necessário nem mesmo, por causa da mescla de elementos fantásticos e plausíveis que se encontra nas narrativas sobre ele que nos foram legadas, reduzir toda a sua biografia a um minimum passível de ser criteriosamente estabelecido. Dá para descontar o dragão e mesmo assim haurir da controversa passagem virtudes heróicas capazes de nos aumentar a piedade cristã; e sem dúvidas é possível obter fruto, e muito, de outras passagens clássicas da vida do santo que ficam entre a inverossimilhança manifesta e o rigor documental, como as narrativas do seu martírio. E, claro, dá pra contar com a intercessão do valoroso São Jorge, cuja vida só conheceremos em detalhes quando nos encontrarmos na Glória de Deus. Que o glorioso mártir rogue por nós.

Sobre o “Noé” de Aronofsky que ainda não assisti

Eu não assisti ainda ao Noé de Aronofsky, mas acompanhei ultimamente muitas discussões sobre o filme entre os mais diversos círculos de amizade. De todas elas o que mais me chamou a atenção foi este texto – cuja leitura eu recomendo na íntegra. A tese do autor (Brian Mattson) é a de que o cineasta não tomou “liberdade artística” nenhuma com a história de Noé que nós conhecemos do Antigo Testamento, mas simplesmente a contou sob a ótica bem exata e bem fidedigna da Cabala. A despeito de ser um pouco longa, a originalidade da análise é cativante e perspicaz.

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Mesmo sem ver o filme, eu próprio já havia notado que todo mundo estava falando dele de maneira estranha: fosse pelo fato de Noé ser vegetariano, fosse por se tratar aparentemente de uma espécie de nômade que vivia longe da civilização, fosse por não agir com suficientemente docilidade à voz de Deus. Em poucas palavras: a história que me contavam do filme que eu ainda não vira não tinha nada a ver com a história de Noé cujos traços mais marcantes todo mundo guarda no subconsciente quando menos como reminiscência das aulas de Catequese – e todo mundo percebia isso. Havia algo de não muito católico na película que ainda está em nossas salas de cinema.

Diante dessa primeira universal impressão, chocou-me o fato de eu ter assistido ao trailer de “Noé” em duas ocasiões católicas. A primeira, foi na première de Blood Money aqui em Recife; a segunda, na Jornada Mundial da Juventude do Rio de Janeiro. Como era possível que depois de credenciais de tanto peso o filme me saísse como esta catequese às avessas da qual todo mundo estava falando? Infelizmente, parece que é mesmo verdade. No fim das contas, parece que o Brian Mattson estava certo quando escreveu:

Eu acho que Aronofsky se propôs a experiência de nos fazer de bobos: “Vocês são tão ignorantes que eu sou capaz de colocar Noé (Russell Crowe!) nas telas e retratá-lo literalmente como a ‘semente da serpente’ e, mesmo assim, todos vocês vão assistir e apoiar”.

Aronofsky está dando risada. E todos os que caíram no trote deveriam se envergonhar.

Fiquei, sim, com a sensação de que fomos enganados. E isso deve nos fazer atentar doravante para alguns pequenos detalhes.

O primeiro, que Hollywood não merece carta branca e um livro não deve ser julgado pela sua capa – nem um filme pelo seu trailer. Acho que não cheguei a recomendar “Noé” aqui no Deus lo Vult! simplesmente porque não é do meu feitio resenhar filmes antes de assisti-los, mas podia perfeitamente tê-lo feito dando crédito às boas pessoas que, em situações distintas, me “venderam o peixe” fazendo publicidade da produção em eventos voltados para o público católico. E provavelmente eu falei positivamente do filme em conversas informais, com base no que ouvira sobre ele aqui em Recife e na JMJ.

O segundo, que é humano ser enganado, mas uma vez percebido é mister denunciar o engodo. Vi ultimamente muitas pessoas descascarem o o filme do Aronofsky manifestando o seu desgosto e afirmando a incompatibilidade da película com a história que nos foi legada pelas Escrituras Sagradas. Cumpro aqui um pouco esse papel, trazendo à baila – enquanto o assunto ainda está “quente” – as repercussões do blockbuster dentro do orbe católico, mesmo sem fazer muitas contribuições de minha própria lavra. Acho que o momento é propício para registrar aqui este “estado da arte”.

O terceiro, que é preciso ter profundidade na crítica que se faz, e é justamente nesse aspecto que o texto linkado no início desse post pareceu-me tão particularmente meritório. Indo além do lugar-comum “ah, não é a história que tá na Bíblia”, o autor foi procurar a tradição religiosa que dá sentido e coerência a toda a narrativa, o que é muito útil tanto para entrever as motivações por trás da produção do filme quanto para aumentar o nosso conhecimento geral a respeito dos inimigos clássicos do Cristianismo – informações essas que, nos tempos que correm, não nos é prudente dispensar.

Faço, por último, uma última colocação de caráter estritamente pessoal, não necessariamente aplicável a este “Noé” ao qual, repito, não assisti. Eu gosto de ficção e não penso que toda obra precise ser biblicamente fidedigna para que seja apreciável. Acho que há muito espaço, sim, para se produzir uma obra de arte digna sem que se precise fazer paráfrase de histórias já contadas e bem estabelecidas. Não é este o cerne da crítica ao filme de Aronofsky.

Mas quando um diretor de cinema divulga um filme com um pano de fundo premeditadamente anti-católico através de meios católicos… aí já é caso de perguntar se não houve intenção de enganar, de conseguir para a obra a boa-vontade da publicidade católica, por meio de se lhe deixar ser aplicado um rótulo – o de filme católico – que de saída o produtor já sabia não ser cabível, mas não achou relevante avisar isso aos divulgadores do filme. Aqui, sim, já se pode falar em comportamento censurável. Liberdade artística não é um problema. Induzir as pessoas ao erro é que é.

Aborto, pena de morte e contradições

Está surpreendentemente bom este artigo sobre pena de morte publicado por Aleteia. Aborda um tema candente dos últimos tempos – a questão da pena de morte – com uma clareza de raciocínio e capacidade de exposição de idéias fascinante. Mais ainda, ele o faz sem se furtar ao sofisma talvez mais calhorda que existe no debate pró-vida contemporâneo: o que pinta como uma monstruosa contradição alguém se dizer ao mesmo tempo contra o aborto e a favor da pena de morte.

A resposta definitiva à questão é dada imediatamente após a manchete, antes mesmo de começar o texto em si: Defender o inocente não implica renunciar à punição do culpado. Claro, conciso, irretocável. Mas o argumento vai ser melhor desenvolvido ao longo das linhas do texto, as quais valem muito uma leitura.

A defesa da vida tem um objeto muito específico. O que se afirma é a inviolabilidade da vida humana inocente. Os dois adjetivos são essenciais para a correta compreensão do assunto.

O que é inviolável, em primeiro lugar, é a vida humana, e não simplesmente a “vida”. O ser humano se utiliza de seres vivos em seu benefício o tempo inteiro: colhendo o milho para engordar o pintinho, matando o frango para assar o galeto. Independente do que possam dizer os vegetarianos radicais, tudo isso é perfeitamente razoável e legítimo. Há certas diferenças essenciais entre o ser humano e os outros animais, e tais diferenças justificam que haja um tratamento diferenciado entre estes e aquele.

[Isto obviamente não autoriza que os demais seres vivos sejam usados de forma desumana e irresponsável; não é porque podemos matar uma galinha para fazer uma canja que nos é igualmente permitido esfolar um gato, e não é porque é legítimo capinar a frente da nossa casa que não existe nunca nenhum problema moral com o desmatamento. Os ecoterroristas estão para o uso legítimo da natureza como os vegans para a alimentação humana. Ninguém precisa defender o esfolamento de felinos para provar a imoralidade do vegetarianismo radical, como ninguém precisa extinguir a Mata Atlântica para entender que os catastrofistas ambientais estão errados. O parêntese talvez seja necessário.]

Em segundo lugar, é preciso ter em conta que indiscutivelmente inviolável é a vida humana inocente. Discutir a pena de morte para um criminoso não é a mesma coisa que trair o ideal da defesa da vida, da mesma forma que discutir a cadeia para quem comete crimes não é igual a contradizer o direito de ir e vir. E da mesma forma que há uma diferença muito grande entre o ser humano e os animais irracionais que justificam as diferenças de tratamento dispensadas a ambos, há também uma diferença – menor que a primeira, por certo, mas também diferença – entre um inocente e um criminoso, que justifica pelo menos defender um tratamento desigual para ambos sem que isso implique em nenhuma contradição.

Ao contrário do que acontece com os promotores do aborto, são pouquíssimos os católicos para os quais a pena de morte é propriamente uma bandeira. Trata-se muito mais de uma questão acadêmica, especulativa, de salvaguardar a coerência da Doutrina Moral da Igreja, de compreender melhor a Justiça que se esconde para além dos costumes sociais vigentes na sociedade contemporânea – e não de introduzir a figura da pena capital no ordenamento jurídico pátrio. Todos os defensores do aborto querem que o aborto seja legalizado; nem todos os (assim chamados) “defensores da pena de morte” querem que ela seja efetivamente implantada. Isso permite ao John Zmirak (autor do texto acima indicado) fazer a seguinte genial provocação:

Eu já propus o seguinte aos liberais pró-escolha, que chamavam de hipócrita quem era pró-vida e ao mesmo tempo favorável à pena de morte: “Caros liberais pró-escolha, vamos fazer um acordo: eu deixo de apoiar a pena de morte e vocês param de apoiar o aborto. Se vocês pararem de matar os inocentes, nós concordamos em parar de matar os culpados”. Ninguém aceitou a minha proposta (…).

E o mesmo trato vale para qualquer abortista hipócrita que venha despejar erística vazia por aqui.

Há uma última coisa que o Zmirak não faz, mas que eu gostaria de fazer. Não há contradição entre ser contra o aborto e a favor da pena de morte, como foi mostrado acima, mas a recíproca não é verdadeira: há, sim, contradição, uma aberrante e clamorosa contradição, uma contradição inescapável e vergonhosa, em ser ao mesmo tempo contra a pena de morte e favorável ao aborto. É insofismavelmente contraditório e hipócrita defender ao mesmo tempo que os criminosos não podem ser condenados à morte pelos tribunais, mas as crianças inocentes podem ser mortas por suas mães sem nenhum problema. E, disso, não dá para fugir.

Todo mundo que é a favor do aborto, portanto, não tem envergadura moral alguma para se dizer contra a pena de morte. E todo mundo que é contra a pena de morte deveria, por força de coerência, opôr-se também e visceralmente à legalização do aborto, esta particular forma de pena de morte que é direcionada aos mais inocentes e indefesos dos seres humanos: as crianças no ventre materno. Agir diferente disso é que é contradição e hipocrisia.

Outros textos muito bons do John Zmirak podem ser lidos em português no próprio Aleteia. O blog dele em inglês (que eu também só conheci agora) é este The Bad Catholic’s Bingo Hall.

A canonização de santos não virtuosos

Uma «canonização» de um santo é um ato jurídico por meio do qual a Igreja atesta fundamentalmente duas coisas: que o canonizado está no Céu gozando de visão beatífica e que é modelo de virtudes a ser imitado pelos fiéis. Cumpre entender corretamente os limites desse ato canônico, a fim de não expôr a Igreja ao ridículo sustentando certas concepções dos santos canonizados que a Igreja, absolutamente, não reconhece como Suas.

Quanto à primeira garantia da canonização, que o santo goza de visão beatífica, basta para defender a posição da Igreja que tal seja possível, uma vez que o seu contrário não poderá jamais ser provado. Ora, é certamente possível que qualquer pessoa, rigorosamente qualquer pessoa, esteja no Céu, independente da vida que tenha levado, uma vez que um arrependimento in articulo mortis é sempre suficiente para a salvação eterna. A soteriologia cristã não é uma função matemática relacionando indiscriminadamente os atos da vida terrena com a sorte da vida eterna. Em última instância, o que conta é o estado da pessoa no momento em que ela se apresenta diante do Justo Juiz. É evidente que os hábitos de vida da pessoa influenciam sobremaneira o referido estado – e dessa maneira uma pessoa acostumada a levar uma vida virtuosa tem maior facilidade de se encontrar voltada para Deus no momento em que for colhida pela morte, e de modo inverso alguém que tenha levado uma vida de crimes só a muito custo conseguiria um amor verdadeiro a Deus e um sincero desprezo por seus pecados no instante derradeiro -, mas não há nenhum determinismo aqui e não se pode negar a possibilidade de que mesmo um pecador empedernido seja tocado pela graça de Deus ao último alento.

A segunda garantia da canonização é um pouco mais excludente e não abrange todos os homens do mundo. Ao propôr alguém como modelo de virtudes, a Igreja está certamente atestando a existência de virtudes na vida do canonizado, e de virtudes públicas, uma vez que as disposições interiores e ocultas não poderiam servir para ninguém nelas se espelhar. Se qualquer pessoa passaria no primeiro escrutínio da santidade, neste segundo muitos são deixados de fora. O “Mau Ladrão” pode perfeitamente ter chegado ao Céu, mas a Igreja não o pode canonizar porque não há virtude pública que ele tenha exercido e, portanto, não há em quê ele possa ser modelo proposto à imitação dos católicos.

Dizer que alguém é detentor de virtudes a serem imitadas é diferente de dizer que este alguém exercitou todas as virtudes possíveis em grau máximo. No meu entender, apenas a primeira proposição é fiel ao que a Igreja entende por «santo canonizado». Há uma miríade de virtudes nos santos de Deus: em alguns deles é possível que resplandeça mais a sua humildade, noutros o seu zelo apostólico, em um a sua Teologia, em outro ainda a sua caridade para com os pobres, etc. Um santo pode ser um modelo por algumas virtudes e não por outras. Alguém pode merecer a honra dos altares por conta de sua dedicação apaixonada à expansão do Evangelho, ainda que não tenha se destacado na virtude da humildade. Vou mais além e digo: ainda que tenha sido orgulhoso, desde que este defeito não seja objeto de imitação. Do mesmo modo e inversamente, alguém pode ser proposto pela Igreja como modelo por conta da sua resplandecente humildade, ainda que não se tenha destacado no zelo apostólico. E de novo acrescento: ainda que tenha sido negligente nesse específico dever cristão, contanto que a negligência não seja indissociável do seu caráter a ponto de se tornar escandalosa.

Do exposto, segue-se que a nenhum santo canonizado exige-se que «sua teologia dev[a] ser impecável, até o mais mínimo detalhe», como pretendeu recentemente um sacerdote da FSSPX. Não, não deve. Contanto que o candidato à honra dos altares tenha virtudes – quaisquer verdadeiras virtudes – a serem imitadas, ele não precisa ser “impecável” em nenhuma delas em particular. A teologia de qualquer santo só precisa ser católica, não lhe sendo estritamente necessário nenhum refinamento acima do comum, nenhuma sensibilidade extraordinária.

A João Paulo II (e a qualquer outro) basta, portanto, não ser herege para que possa ser proposto pela Igreja à imitação dos fiéis. Assim, os argumentos que tornam possível a sua canonização são rigorosamente os mesmos que defendem ter ele sido Papa legítimo. Se a sua Teologia possuísse problemas que o impedissem de ser canonizado, ele estaria pela mesmíssima razão impedido de ser verdadeiro Papa. Dizer que ele foi efetivamente Papa até o fim da vida e ao mesmo tempo considerar a sua Teologia um óbice verdadeiro à sua canonização é uma posição contraditória e que não tem nenhum sentido.