Medievalista responde ao deputado Jean Wyllys

Há não muito tempo, em dezembro último, o ex-BBB e deputado-sem-votos Jean Wyllys provocou polêmica com o seu piti desaforado contra o Papa Bento XVI por conta das declarações do Pontífice a respeito do “casamento” gay. Entre incontáveis outras sandices, Sua Insselença disparou a seguinte pérola:

A “ferida grave infligida à justiça e à paz”, @pontifex (Bento XVI), foi a escravidão de negros e africanos, apoiada pela Igreja Católica.

[Aliás, li outro dia um comentário sensato sobre a escravidão, não me lembro onde. O articulista lastimava a leviandade anacrônica dos que a execravam em absoluto, ignorando que o próprio instituto da escravidão foi um profundo avanço nos direitos humanos em uma época em que o comum era matar os prisioneiros de guerra. Poupá-los, dizia ele, mesmo que fosse para explorar-lhes a força de trabalho, era um inegável avanço no reconhecimento da dignidade humana, um primeiro passo evidentemente necessário para que pudéssemos um dia chegar à DUDH. Mas isso é outra questão, e exigir este grau de sutileza da truculência da militância gayzista é pedir demais. Continuemos.]

À época da polêmica, enviei emails de protesto para o Gabinete do senhor deputado e para a Ouvidoria da Câmara. Do primeiro não recebi nada, como era de se esperar. Do segundo, recebi alguns dias depois a seguinte resposta:

Sr.JORGE FERRAZ
Recebemos sua mensagem, na Ouvidoria Parlamentar da Câmara dos Deputados, manifestando seu posicionamento a respeito de pronunciamento de parlamentar em exercício nesta Casa.
Em atenção a sua mensagem, esclarecemos que os eventuais embates de ideias entre os parlamentares em exercício nesta Casa e a sociedade não são objeto de tomada de posição da Câmara dos Deputados.
Informamos que é possível entrar em contato diretamente com o parlamentar de seu interesse por intermédio do sistema Fale com o Deputado, disponível na página da Câmara na internet, no endereço www.camara.lrg.br.
Atenciosamente,

Assessoria da Ouvidoria PArlamentar
Ouvidor-Geral Deputado Miguel Corrêa

Como eu já entrara em contato – sem resposta – “diretamente com o parlamentar”, resolvi que não valia a pena insistir. Muita gente já havia se levantado contra o preconceito catolicofóbico e o discurso de ódio religioso do Paladino Rosa, e a resposta da sociedade ressoa com muito mais força do que a burocracia do Planalto. Ao menos, a minha mensagem fora lida. Já era alguma coisa.

Mas de tudo o que se seguiu à arruaça provocada pelo Jean Wyllys, acho que o mais entusiasmante foi encontrar na Gazeta do Povo este texto do prof. Ricardo da Costa, historiador e medievalista, respondendo nominalmente ao excelentíssimo deputado. Foi de lavar a alma. Leiam-no na íntegra. Apenas cito, à guisa de exemplo:

Entrementes, a Igreja Católica, reiteradamente, condenava a escravidão. Há inúmeras bulas papais a respeito: na Sicut Dudum (1435), Eugênio IV mandou libertar os escravos das Ilhas Canárias; em 1462, Pio II instruiu os bispos a pregarem contra o tratamento de escravos negros etíopes, e condenou a escravidão como um tremendo crime; Paulo III, na bula Sublimus Dei (1537), recordou aos cristãos que os índios são livres por natureza (ao contrário dos negros, que praticavam a escravidão); em 1571, o dominicano Tomás de Mercado declarou desumana e ilícita a escravidão; Gregório XIV (na Cum Sicuti, de 1591) e Urbano VIII (na Commissum nobis, de 1639) condenaram a escravidão. Devemos estudar o passado, não inventá-lo.

Diante de tudo isso, o que dizer? Cale-se o ódio raivoso do deputado diante da serenidade do professor de história! Cale-se o preconceito gay diante dos estudos rigorosos sobre o passado da Igreja! Cale-se a cultura BBB diante do reconhecimento acadêmico sério! O Jean Wyllys bem que poderia ter dormido sem essa.

E é claro que o deputado não vai se retratar. Ele não tem decência suficiente para isso. Vai preferir obstinar-se no seu obscurantismo anti-clerical raivoso e decadente. Tudo bem. No que depender de nós, não vai faltar quem venha a público desmascará-lo.

Publicado por

Jorge Ferraz (admin)

Católico Apostólico Romano, por graça de Deus e clemência da Virgem Santíssima; pecador miserável, a despeito dos muitos favores recebidos do Alto; filho de Deus e da Santa Madre Igreja, com desejo sincero de consumir a vida para a maior glória de Deus.

9 comentários em “Medievalista responde ao deputado Jean Wyllys”

  1. Jorge, acompanho seu blog já faz anos. Gostaria de saber sua posição no que diz respeito a esta contestação ao prof. Ricardo Costa.

    “Todas essas bulas são verdadeiras. Mas note bem o que elas condenam: a escravidão de populações específicas, principalmente índios americanos e habitantes do novo mundo em geral. Não condenam a escravidão enquanto tal.

    A escravidão era prevista e justificada pelo direito canônico em vários casos: prisioneiros de guerra, filhos nascidos de mãe escrava, filhos vendidos pelos pais como escravos, condenados por algum crime, etc.

    Assim, décadas depois da Sicut Dudum, em 1452, o papa Nicolau V emitiu a bula Dum Diversas, que dava direito irrestrito aos portugueses de escravizar os mouros que habitavam a península ibérica. Em 1455, a bula Romanus Pontifex do mesmo papa repete a permissão de se escravizar todos os turcos e pagãos que o rei de Portugal encontrasse. A mesma bula faz uma referência aparentemente aprovante do comércio de escravos negros e da Guiné – http://www.nativeweb.org/pages/legal/indig-romanus-pontifex.html

    Por fim, é preciso notar que o próprio papado usava mão-de-obra escrava em suas galés (descobri, via John T. Noonan Jr. um dos melhores historiadores quando o assunto é variações no ensino moral da Igreja em pontos específicos ao longo dos séculos, que o mesmo papa que emitiu a Sicut Dudum citada pelo Ricardo Costa comprou, ele próprio, escravos).

    A referência a Tomás de Mercado, que é sem dúvida um nome que deve orgulhar todo o pensamento católico, não serve, contudo, como prova do ensino oficial da Igreja. Além disso, ao menos segundo o que diz a Wikipedia, ele não condenava a escravidão em si; ao contrário: ele a justificava em vários casos – em consonância, portanto, com o direito canônico. http://en.wikipedia.org/wiki/Tom%C3%A1s_de_Mercado – com citações e referências.

    Uma coisa é verdade: a hierarquia da Igreja nunca justificou os maus tratos e desumanidades cometidas contra os escravos. Queria que todos fossem catequizados e tratados de forma humana. Mas permitia a escravidão e o comércio de escravos; aliás, participava deles.

    Conheço (via “Atheist Delusions” de David Bentley Hart) UM santo padre que, já naqueles primeiros séculos do Cristianismo, condenou a escravidão enquanto tal: S. Gregório de Nissa. Certamente alguns moralistas e teólogos da Idade Média pra frente devem a ter condenado também, mas não representavam o ensino oficial.

    Enfim: as bulas citadas, embora louváveis em si, não representam, por si só, o ensino da Igreja em suas épocas.”

    Então, isso está correto? O ensino oficial da Igreja realmente mudou, como no caso da usura? Isto vislumbra a possibilidade de mudança na doutrina moral atual?

  2. Karla Cruz

    Você já deve ter percebido em tuas leituras dos documentos da Igreja que ao longo de muitos séculos a Igreja sempre se preocupou com o tratamento destinado aos escravos, isto já se encontra no pentateuco, mas esta mesma Igreja considerava como correta a escravização de derrotados em guerras, já se perguntou porquê?

    Simples, nunca houve um sistema prisional em larga escala para ser usado em guerras, não havia o que fazer com combatentes que fossem capturados, ou seriam soltos ou mortos ou uma saída até interessante pelo lado econômico a venda como escravos, a questão de soltar após vender, jamais seria considerado.

    Mesmo na África os escravos eram fornecidos por tribos vencedoras de guerras, que se não tivessem mercado, não os manteriam em prisões militares cumprindo penas em confortáveis celas pagas pelos erários da época.

  3. corrigindo … a questão de soltar após vender, jamais seria considerado. , leia-se … a questão de soltar após vencer, jamais seria considerado.

  4. Salvante engano, a Bula Romanus Pontifex não dá autorização para escravidão, mas sim para a servidão. Cito o trecho da Romanus Pontifex “Por isso nós, tudo pensando com devida ponderação, por outras cartas nossas concedemos ao dito rei Afonso a plena e livre faculdade, entre outras, de invadir, conquistar, subjugar quaisquer sarracenos e pagãos, inimigos de Cristo, suas terras e bens, a todos reduzir à servidão e tudo aplicar em utilidade própria e dos seus descendentes. Por esta mesma faculdade, o mesmo D. Afonso ou, por sua autoridade, o Infante legitimamente a adquiriram mares e terras, sem que até aqui ninguém sem sua permissão neles se intrometesse, o mesmo devendo suceder a seus sucessores. E para que a obra mais ardentemente possa prosseguir.” (http://www.histedbr.fae.unicamp.br/navegando/fontes_escritas/1_Jesuitico/annaes_da_biblioteca.htm). Também não há aprovação ao comércio de negros, apenas o relata que alguns guinéus e negros foram trazidos a força ou pacificamente por meio de contrato para o Reino, onde abraçaram a fé católica. Ali não se fala em escravidão e muito menos se dá validade ao comércio de escravos, mas apenas relata com felicidade que estes trazidos ao Reino se converteram ao catolicismo.
    Depois darei um lida na íntegra bula Dum Diversas, mas adianto que a mesma é reação contra os Sarracenos, que eram conhecidos e temidos pelos cristãos pela sua violência contra os povos conquistados, saber: o estupro de mulheres , a redução dos cristãos a condição de escravo ou mesmo aplicação da pena capital contra eles. Assim, a Bula não trata de uma situação normal, mas sim excepcionalíssima diante daquele contexto contra os sarracenos.

  5. De novo a propaganda da maçonaria esta aí Jorge. Só para te alertar.
    Quanto ao post, vale ressaltar que nem tudo que a Igreja publica em documentos é infalível e tampouco representa um ensinamento universal válido para todo o sempre. O papa ao se pronunciar ex-cathedra (com a intenção de ensinar em nome da Igreja para atestar uma verdade de fé) só é infalível quando proclama algo que não renega nenhum ponto anterior da fé.
    Vale também lembrar que a Igreja proclama a verdade de Cristo durante a história da humanidade. A verdade não muda, mas se aplica de formas diferentes ao contexto do mundo. Em um mundo de impérios, escravidão, penas de morte e torturas, permitir que um homem seja escravo ao invés de ser assassinado parece mais caridoso não acham? Como viver a caridade no contexto histórico é o que deve ser levado em questão. Não se esqueçam de que os próprios bispos deveriam ensinar o evangelho de acordo com o aplicado ao contexto da época. Repito: a mesma Verdade, ensinada de forma adaptada ao contexto. Não fosse assim, não haveria a necessidade da Igreja redigir novos documentos, tampouco ter convocado um novo Concílio (vaticano II) recntemente.

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