A má formação do clero e a validade dos Sacramentos

Uma leitora me perguntou por email se a falta de Fé dos sacerdotes poderia macular a eficácia dos sacramentos ministrados por eles. Por exemplo, se um sacerdote que não acredita na Transubstanciação poderia celebrar uma Missa válida (ou seja, uma Missa na qual a Hóstia Consagrada se tornasse, real e substancialmente, no Deus Vivo e Verdadeiro), ou se um bispo que descrê na Igreja Hierárquica poderia ordenar verdadeiros sacerdotes (ou seja, homens capazes de “confeccionar” os Sacramentos da Nova Aliança).

A resposta curta e direta para a pergunta é que os ministros celebram validamente os Sacramentos ainda que particularmente não tenham Fé. É o que consta nos manuais de teologia sacramental: “La validez y eficacia de los sacramentos no dependen de la ortodoxia ni del estado de gracia del ministro” (OTT, Manual de Teologia Dogmática, Livro IV, Parte III, Seção I, Cap. IV, §9., 1., b.). Quanto a este ponto não parece haver polêmica digna de nota, estando as posições donatistas já derrotadas há muitos séculos pela Igreja.

Mas há uma outra questão afim. É que todo Sacramento exige matéria, forma e ministro com intenção de fazer o que faz a Igreja. Sabe-se que a intenção suficiente para a validade dos sacramentos é a mera intenção virtual (Summa, IIIa, q.64, a.8, ad.3); no entanto, mesmo esta precisa ser minimamente qualificada. O próprio Aquinate, dois artigos depois, diz que se alguém quiser realizar não um sacramento, mas uma paródia, este anula o sacramento (id. ibid., a.10, Resp.). E o mesmo Ludwig Ott afirma poucos parágrafos depois (id. ibid., 2., b., c’.) o seguinte (tradução livre):

Segundo a opinião hoje quase geral dos teólogos, para a administração válida dos sacramentos requer-se [da parte do ministro] a intenção interna, isto é, uma intenção tal que não apenas tenha por objeto a realização externa da cerimônia sacramental, mas também o seu significado interno. É insuficiente a intenção meramente externa que foi considerada como suficiente por numerosos teólogos da escolástica primitiva (…) e muitos teólogos dos séculos XVII/XVIII.

Esta intenção meramente externa tem por objeto a realização da cerimônia religiosa com seriedade e nas circunstâncias devidas, porém deixando de lado o seu significado religioso interno. Como é natural, essa intenção não responde ao dever de fazer o que faz a Igreja, nem ao papel do ministro como servidor de Cristo, nem à finalidade do signo sacramental que em si é ambíguo e recebe sua determinação da intenção interna; nem tampouco está de acordo com as declarações do Magistério (cf. Dz 424, «fidelis intentio»).

A distinção é relevante. A lhe dar crédito, parece que é preciso matizar a resposta anteriormente dada. Parece, assim, que a mera falta de Fé do ministro não é suficiente para invalidar o Sacramento ministrado; no entanto, é possível cogitar de invalidade por defeito de intenção (não meramente “por falta de Fé”) se o ministro deliberada e conscientemente descrer da realidade sacramental.

Alguns exemplos. Certo padre nutre dúvidas sobre a realidade da transubstanciação; não consegue crer na Presença Real, mas sofre por conta disso, e celebra reta e zelosamente a Santa Missa. O Sacramento é válido; tal é, precisamente, a história do milagre de Lanciano. A intenção, neste caso, era reta, ainda que faltasse ao padre, em certa medida, a fé eucarística.

Outro exemplo. O sujeito rompe formalmente com a Igreja Católica. No entanto, incoerente mas honestamente, continua acreditando em Nosso Senhor Jesus Cristo. Batiza, respeitando a fórmula trinitária. O Sacramento é válido, sem dúvidas: esta é uma das definições doutrinárias mais antigas, da época do Cristianismo Primitivo.

Terceiro exemplo. O indivíduo é um simplório, tem uma profunda limitação intelectual, ou quem sabe pertence a uma cultura estranha (digamos, é um silvícola em seu primeiro contato com o europeu), mas se encantou com a pregação dos missionários, largou tudo o que tinha e se fez ordenar sacerdote. Não entende, absolutamente!, todos os detalhes da teologia sacramental católica, mas decorou os ritos da Santa Missa e, quando a celebra, entende estar praticando o culto dos católicos. Ainda neste caso o Sacramento é válido pela retidão do sacerdote.

Ou seja, o sacramento é válido, ainda que o ministro não acredite nele, se essa descrença for uma mera fraqueza; é válido, ainda que o ministro negue o dogma católico, se a negação do dogma versar sobre um ponto alheio ao Sacramento que se está ministrando; e é válido, ainda que o ministro não compreenda direito o que está fazendo, se essa incompreensão for fruto de uma formação insuficiente e não-culposa. Não há, nestes casos, defeito de intenção capaz de invalidar o Sacramento.

Caso diferente ocorre quando o padre conhece o ensino da Igreja sobre determinado sacramento e, conscientemente, com malícia, quer fazer algo diferente do que a Igreja entende com o sacramento. Por exemplo, se o padre sabe que a Igreja ensina ser a Missa a renovação incruenta do Sacrifício do Calvário, mas acha que a Igreja está errada, e quando ele “preside a Eucaristia” o que ele efetivamente quer celebrar é um banquete simbólico festivo, então neste caso o Sacramento é inválido. Não porque — atenção! — falte-lhe Fé, mas porque lhe falta a intenção de fazer o que faz a Igreja neste caso específico. No mesmo exemplo, se este mesmo padre acredita ter o poder de perdoar os pecados, e se ao ouvir confissão ele quer realmente absolver o penitente de suas faltas, então a sua confissão é válida mesmo que a sua Missa não o seja.

Pelo que vejo, eu acredito que o problema da má-formação dos sacerdotes, no geral, enquadra-se no exemplo da formação insuficiente que referi acima. São pessoas de reta intenção que podem até ter idéias bem equivocadas sobre o dogma católico; mas não o fazem com o animus específico de agir contra o que a Igreja ensina, o que faz toda a diferença. Na pior das hipóteses, têm a intenção de celebrar a cerimônia cristã que (acreditam que) a Igreja celebra, e isso é suficiente para garantir a intenção virtual capaz de conferir validade aos sacramentos. Com esses não é preciso se preocupar.

Ao contrário, é preciso se acautelar dos padres orgulhosos, rebeldes, que negam conscientemente o ensino sacramental da Igreja; e dos que celebram de maneira debochada, ou mecânica. Um e outro podem ministrar sacramentos inválidos por defeito de intenção. Não simplesmente por conta de má formação, mas de uma formação má. Porque para invalidar um sacramento não é suficiente ser ignorante, é preciso saber que está fazendo errado, é preciso querer fazer errado. Por mais que a situação do clero atual seja deplorável, não me parece que haja entre ele tanta perversidade a ponto de transformar a validade dos sacramentos em uma questão exageradamente preocupante.

Publicado por

Jorge Ferraz (admin)

Católico Apostólico Romano, por graça de Deus e clemência da Virgem Santíssima; pecador miserável, a despeito dos muitos favores recebidos do Alto; filho de Deus e da Santa Madre Igreja, com desejo sincero de consumir a vida para a maior glória de Deus.

10 comentários em “A má formação do clero e a validade dos Sacramentos”

  1. Prezado Jorge Ferraz,

    Mas considerando outro caso concreto.

    Um candidato ao sacerdócio, mesmo que tenha os melhores mestres, tendo em vista que o processo para a ordenação é longa, nas várias etapas – de candidato até o momento do sacramento da ordem – pôde dirimir todas as sua dúvidas. Porém não se convenceu e escondeu sua falta de fé em muito das verdades ensinadas pelo seu mestre Padre Reitor. Mesmo assim, apesar de suas disposições interiores contrárias a fé, recebe validamente o Sacramento da Ordem? Seus votos foram validos?

    Já me foram coladas essas questões, dada a minha falta de competência para julgar o eventual fato. O que me diz? Pode me ajudar?

    Robson.

  2. “Por mais que a situação do clero atual seja deplorável, não me parece que haja entre ele tanta perversidade a ponto de transformar a validade dos sacramentos em uma questão exageradamente preocupante.”

    Lamento, sinceramente, discordar, Jorge. Bastou voce dizer que “se o padre sabe que a Igreja ensina ser a Missa a renovação incruenta do Sacrifício do Calvário, mas acha que a Igreja está errada, e quando ele “preside a Eucaristia” o que ele efetivamente quer celebrar é um banquete simbólico festivo, então neste caso o Sacramento é inválido” , bastou isso pra podermos dizer que pelo menos 50% dos padres que conheci até hoje se enquadram nisso.

    E quando voce diz que “é preciso se acautelar dos padres orgulhosos, rebeldes, que negam conscientemente o ensino sacramental da Igreja; e dos que celebram de maneira debochada, ou mecânica. Um e outro podem ministrar sacramentos inválidos por defeito de intenção.” aí bota mais uns 30%.

    Sobra uns 20% então. Tá feia a coisa! não tá bonita não. Claro que depende do lugar, da diocese, onde se está. Talvez haja pessoas mais sortudas que eu mas esse meu cálculo engloba Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, e pelo menos 45 anos de vivência eclesial e participação em várias encontros, grupos, movimentos, dioceses e paróquias.

    Só Jesus na causa.

  3. Robson,

    A Fé (ou a falta dela) não tem, absolutamente, o condão de invalidar os sacramentos. O que os pode invalidar é o defeito de intenção, que não é a mesma coisa, nem de longe, da simples falta de Fé.

    As únicas “disposições interiores contrárias à fé” capazes de tornar inválida uma ordenação são as que repudiam consciente e voluntariamente a própria Igreja. Se o cara acha que Nosso Senhor não existe e aquilo tudo é um teatro, então ele de fato não se ordena de forma válida; agora por que razão uma pessoa assim se sujeitaria a passar anos se preparando para o sacerdócio?

    De outra sorte, se o cara simplesmente tem uma noção equivocada do sacerdócio católico, mas o faz de boa-fé, recebe o Sacramento validamente. Não dá para exigir de todo mundo a compreensão perfeita e absoluta da ortodoxia católica sob pena de se invalidar os sacramentos; Deus só exige na medida da capacidade das pessoas.

  4. Teresa,

    Não acho que uma parte considerável dos sacerdotes ache, com maldade, que a sua Missa é um ato de rebeldia individualista contra o que a Igreja sempre ensinou em matéria sacramental.

    O padre pode achar honestamente que a Missa é um banquete festivo porque crê em consciência que Nosso Senhor estabeleceu dessa maneira, e porque crê que é isso — celebrar um banquete festivo — o que a Igreja quer que os padres façam. Como lhe acusar de defeito de intenção?

    Lembre-se de que os sacramentos exigem matéria, forma e ministro com intenção de fazer o que faz a Igreja, e não ministro com a mais perfeita expressão da Fé da Igreja. Defeito de Fé não invalida sacramentos; defeito de intenção, sim.

  5. Antes, agradeço a consideração em me responder. Também faço nota de que me satisfaz suas postagens e respostas sempre bem ponderadas e embasadas.

    “agora por que razão uma pessoa assim se sujeitaria a passar anos se preparando para o sacerdócio?”

    Respondo. É que coloquei a pergunta na melhor das hipóteses quanto às situações imperfeitas. Mas também queria chegar à pior.

    Pois uma das razões da minha pergunta foi a cogitação de – nas minhas imaginações – vários casos. Por exemplo, que alguém queira fugir de um país. E que o meio mais eficaz no seu plano seria passar-se por sacerdote. Tendo aí oportunidade para sair de seu país em missão. “Andar o mundo.” Tal pessoa seria capaz – e por quer não o esforço já que há tantas circunstancias que valeriam tal empreendimento – dado que se imagine essa pessoa com formação de alto nível em qualquer campo das ciências – ou mesmo que seja um simplório. Ou ainda um inimigo mesmo da Igreja. Teria aí muitas outras oportunidades, ao aprender tudo(doutrina) sobre seu inimigo(Igreja). Nestes casos, vejo que respondeu no seu primeiro parágrafo: “o defeito de intenção” sendo que, nos casos, não há qualquer motivação que seja de Fé. Mas mais de pura má-fé.
    Indo um pouco mais na minha imaginação, pensaria, eu, em outras situações. Como em maçons, comunistas, pedófilos…. Com a intenção mesmo de dar prejuízo moral e material à Igreja. De depreciá-la ou obter vantagens materiais. Quanto a esses eventuais acontecimentos, como depreendo da sua reposta, não há qualquer chance mesmo dessa suposta pessoa receber o sacramento da Ordem. Por consequência seria impossível administrar qualquer Sacramento. Apenas simular. Certo?

    Quanto às disposições interiores, cheguei mesmo a pensar no sacramento do Matrimonio. Quando qualquer um dos noivos, nas promessas matrimoniais jura ter tantos filhos quanto Deus queira? E os noivos juram, mas no interior: “se passar de três, abortarmos ou vai ter que fazer vasectomia”. Haveria, aqui, de fato matrimonio válido?

    São quereles talvez banais quando se sabe que a Igreja já tem respostas para todas elas e também já estão superadas. E há gente competente para apurá-las sempre. Certo?

    Agradeço mais uma vez a sua atenção e a disposição em me responder.

    Robson.

  6. “São querelas…”

    E acho que essas coisas serão vistas mesmo quanto se der os fatos em concreto e alguém, como provas, as denunciem.

  7. Robson,

    Por exemplo, que alguém queira fugir de um país. E que o meio mais eficaz no seu plano seria passar-se por sacerdote. (…)

    Bom, nestes casos entendo que há simulação, que é óbice à validade do sacramento. Aí não é o caso de as Missas serem inválidas por defeito de intenção, mas por defeito de ministro mesmo: o próprio sujeito não foi validamente ordenado. Daí pra frente pode ter as melhores intenções do mundo, que não adianta.

    Quanto às disposições interiores, cheguei mesmo a pensar no sacramento do Matrimonio. Quando qualquer um dos noivos, nas promessas matrimoniais jura ter tantos filhos quanto Deus queira? E os noivos juram, mas no interior: “se passar de três, abortarmos ou vai ter que fazer vasectomia”. Haveria, aqui, de fato matrimonio válido?

    Entendo que a vida matrimonial perfeita não é exigida como objeto atual da vontade para a validade do Sacramento. Ou seja, tal mentalidade antinatalista seria pecado, mas não teria o condão de invalidar o Matrimônio. Se a pessoa apenas desejar genericamente os fins do Matrimônio (= viver com uma pessoa e ter filhos com ela), penso que contrai matrimônio válido, ainda que relute em abandonar a vida de devassidão e/ou pense em limitar artificialmente o número de filhos.

  8. Caro senhor Jorge Ferraz, aqui pra mim não disseram nada com nada, a má formação tem que ser corrigida, tanto dos padres quanto dos bispos ministros comunidade assembléia, a hierarquia a disciplina da igreja segundo o IGMR tem que ser seguida com fé e disciplina alteridade respeito, a maiorias dos padres tem medo até de se apresentarem como padre em público, muitos estão mais preocupados com a coleta e arrecadação que com o comportamento, tanto de si próprios como da comunidade assembléia, o povo necessita de um guia que os oriente na fé com disciplina e os disciplinado um pastor que não permita wue seu rebanho não venha ser atacados por lobos, estão fazendo das entradas da igrejas e paroquias estacionamento de aluguel, não a vaga nem para fiéis, fazendo das cantinas e dos bazares verdadeiras feiras de doações produtos de revenda estão fazendo dos fiéis comerciantes ministros coletores, sem disciplina sem postura, a fé a esperança pregada com fé e esperança, a caridade vira por si só, alguns querem espressar a sua própria óptica de vida quando as escrituras nos é dada como manual eterno.

    Que a paz de Jesus e o amor de Maria esteja com nosco.

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