Fé na esfera pública: remédio ao ateísmo das massas

Eu li bem en passant uma notícia de ZENIT hoje, onde o Papa diz que os católicos devem participar da vida pública. O conselho não é estranho a quem tem noções mínimas de catolicismo; mas, nos dias de hoje, talvez valha a pena falar um pouco sobre o assunto.

Hoje eu também vi em algum lugar (acho que numa chamada da “Folha de São Paulo” – não importa) a expressão “ateísmo de massas” empregada por (acho) um bispo. E o que existe de estranho no fenômeno é que, salvo grave engano da minha parte, nunca houve na história um “ateísmo de massas”. Como já tivemos a oportunidade de dizer outras vezes, o fenômeno religioso é inerente ao ser humano e, por isso, todos os povos e culturas sempre tiveram necessidade de externar, em alguma forma de culto, a sua admiração pelo transcendente e o seu reconhecimento a um ser superior. Se for verdade que, hoje em dia, as massas são atéias… cabe investigar um pouco quais poderiam ser as causas de tão inusitado fenômeno.

Há uma outra expressão que penso ser correlata a esta. Foi empregada por João Paulo II ao se referir à Europa. Trata-se de uma expressão extremamente dura mas nem por isso (infelizmente) menos verdadeira. Estou falando da expressão “apostasia silenciosa”.

Um “apóstata” é alguém que renega a Fé Católica uma vez que a tenha recebido. Como a religião em geral (e a Igreja em particular) é e sempre foi pública, visível, a apostasia sempre foi, também, pública. O fenômeno referido por João Paulo II consiste, assim, em uma maneira particularmente maliciosa de defecção da Fé: Ela é tratada com um desprezo tão grande que não merece sequer ser publicamente negada. Dá-se tão pouca importância a Deus que se passa, simplesmente, a viver como se Ele não existisse. Não se trata, assim, de uma apostasia consciente e deliberada, de uma negação na esfera da inteligência e da vontade: estamos falando de uma “apostasia prática”, daquela “tentativa – diz o Bem-Aventurado João Paulo II – de fazer prevalecer uma antropologia sem Deus e sem Cristo”.

Ora, estamos falando aqui precisamente do confinamento da religião à esfera privada, subjetiva, como se ela fosse algo que pouca ou nenhuma contribuição tem a dar à sociedade ou – pior ainda – que só pode ter nesta influências deletérias e nefastas. E isto – o que é mais espantoso – praticado por católicos! Somente com uma profunda perda de consciência da própria identidade religiosa é possível a um católico defender semelhante subjetivismo em matéria religiosa que é, ele próprio, um suicídio para a religião. Afinal, o que é subjetivo tem pouco ou nenhum valor para fora do sujeito. E, se a religião é subjetiva, não faz sentido sair pelo mundo inteiro anunciando o Evangelho a toda criatura, como disse Nosso Senhor.

O Evangelho não tem meramente valor subjetivo – ao contrário, as Escrituras nos ensinam que ele serve a toda criatura. E o que serve a todos não pode ser uma questão meramente privada, mas sim definitavemente pública. Aquilo pelo que toda criatura anseia não pode ser nunca algo de natureza particular, senão universal. Quem quer que acredite na autenticidade dos Evangelhos (e todos os católicos estão obrigados a fazê-lo) precisa acreditar neste caráter público, universal, da Sã Doutrina da Igreja. Não fazê-lo é trair a Igreja; é ser, pelo menos já em gérmen, apóstata.

E a apostasia silenciosa sem dúvidas começou com a perda da identidade católica. Com o confinamento da Fé à esfera particular, subjetiva. Com a (estúpida) idéia de se procurar entender o ser humano desvinculado de Deus e de Cristo e – pior ainda! – de construir sociedades em cima de tão frágeis alicerces. O resultado da apostasia silenciosa é, portanto, o “ateísmo de massas” do qual se falava acima.

Porque o homem tem necessidade de Deus e a Igreja de Cristo é a resposta aos anseios últimos de todos os homens; e se o sal perde o sabor, para nada mais há de servir senão para ser lançado fora e calcado aos pés dos homens. Se a religião católica é uma questão meramente privada, subjetiva, então ela não pode responder aos anseios universais de todos os homens. Se ela não é a resposta a estes anseios, então ela para nada serve e deve ser lançada fora. E, se é falsa a Igreja – a Igreja que é a Igreja, a Igreja que estabeleceu os alicerces morais sobre os quais foi construída a virtual totalidade do mundo que conhecemos, a Igreja que foi fundada por um Homem que morreu e ressuscitou, a Igreja que existe há dois mil anos enfrentando inimigos de dentro e de fora sem mudar uma vírgula do ensinamento do qual Ela afirma ser Guardiã, a Igreja da miríade de santos e de milagres no decurso dos séculos – se é falsa a Igreja, repetimos, então são falsas todas as religiões, pois nenhuma há que se Lhe equipare ainda que minimamente. Eis a gênese do ateísmo das massas! E eis porque, desde então, o catolicismo é calcado aos pés dos homens ímpios: se ele não servir à vida pública, então ele não serve para nada. Como o sal sem sabor.

O Santo Padre sabe perfeitamente disso, e é por isso que ele insiste na importância de que os católicos vivam a sua Fé publicamente. E, portanto, cabe a todos nós fazermos o que nos pede o Vigário de Cristo. Não podemos aceitar o confinamento da Fé à esfera privada, pois isto é o mesmo que esvaziar a Fé. Importa que testemunhemos publicamente a Cristo, que vivamos como cristãos, que lutemos contra os que zombam de Deus e da Sua Santa Igreja. Importa – como pediu o Papa – viver publicamente a Fé. Este é o único remédio à apostasia silenciosa e ao conseqüente ateísmo das massas. E somente assim estaremos correspondendo fielmente à nossa vocação cristã.

A heresia dentro da Igreja

João Paulo II já disse em 1982 que a heresia se espalhou abundantemente dentro da Igreja.
[Dom Fellay, in Fratres in Unum]

Este texto, da mais recente entrevista do superior geral da FSSPX, aponta uma dolorosa ferida dos nossos tempos modernos: a heresia abundantemente espalhada dentro da Igreja! Não sei – é uma pena! – qual é o pronunciamento original do Papa João Paulo II sobre o assunto; mas sei que é na Ecclesia in Europa que ele fala sobre “apostasia silenciosa” (n. 9). A idéia de fundo é a mesma: refere-se à crise do mundo moderno, à crise do homem, à crise da Igreja.

Falar em “crise da Igreja” exige um grande esforço de precisão de termos. A rigor, a Igreja, o Corpo Místico de Cristo, é Santa e  Santificante, indefectível e, por conseguinte, não é passível de “crises”. Ao se falar em “crise da Igreja”, está-se falando não de um (aliás impossível) defeito da Esposa sem ruga e sem mancha de Nosso Senhor, e sim da, digamos, discrepância entre o que ensina a Igreja e o que crêem (ou fazem) os católicos. A Igreja segue resplandecente a despeito dos pecados dos Seus filhos; no entanto, quando os católicos não agem como deveriam, tudo vai mal, porque os seus pecados acabam por, num certo sentido, impedir que a Igreja seja encontrada tal como Ela é. Os maus católicos não “mancham” a Igreja, mas de certo modo “escondem” a Igreja por debaixo de suas falhas.

O assunto é particularmente grave quando se fala em heresia, porque nós sabemos que ela destrói a Fé e, sem Fé, é impossível agradar a Deus. No estado de heresia generalizada no qual nos encontramos nos nossos dias, é importante (1) entendermos o que isso significa, (2) quais as conseqüências disso e (3) o que pode ser feito para vencer a crise.

À luz do que foi dito acima sobre a Igreja Indefectivelmente Santa e os pecados dos membros da Igreja, a única maneira na qual julgo possível entender a heresia abundamentemente espalhada dentro da Igreja é, primeiro, por meio de uma metonímia, verdadeira sem dúvidas, mas que é uma figura de linguagem e não uma sentença escolástica, onde a Igreja é tomada pelos Seus membros (não é possível haver heresia na Igreja, propriamente, e sim nos membros da Igreja) e, segundo, considerando heresia material e não formal. É possível – e, aliás, é a minha opinião sobre a situação atual – que uma grande parte dos católicos esteja em heresia material, graças à confusão doutrinária reinante nos nossos dias.

“Matéria” e “Forma” são conceitos da filosofia escolástica relativamente simples, mas que são muito confundidos hoje em dia porque o sentido corrente destes termos é o inverso daquele que o Aquinate estabeleceu. “Forma” não é o formato, não é o exterior, e sim – ao contrário – o “interior”, aquilo que faz uma coisa ser o que ele é e não outra coisa diferente; por exemplo, ser formalmente católico é ser verdadeira e propriamente católico, enquanto que o ser materialmente é só – digamos – “aparentar” sê-lo. Hoje em dia, para a maior parte das pessoas, um “católico formal” seria justamente alguém que é católico só exteriormente…

Um herege material católico que profere uma heresia material [p.s.: favor ler estes textos trazidos pelo Felipe Coelho nos comentários, para melhor compreender a questão] seria, portanto, um católico que professasse algum absurdo herético – por exemplo, que todas as religiões têm igual valor salvífico – sem que, contudo, tivesse a pertinácia na negação do dogma que é exigida para que se configure verdadeiramente uma heresia (ou seja, sem aquilo que é necessário para que ele seja propriamente um herege, um herege formal). E é exatamente esta, a meu ver, a situação de muitos católicos hoje em dia, que não são catequizados como convém. Um católico que passou a vida inteira em uma paróquia modernista ou da Teologia da Libertação, e que está sinceramente convencido de que (p. ex.) Nosso Senhor é uma espécie de prelúdio de Che Guevera e o comunismo foi pela primeira vez ensinado na Galiléia há 2.000 anos, sem dúvidas é um herege material profere uma heresia material; mas, muito provavelmente, falta-lhe a pertinácia no erro para que ele seja formalmente herege. Muito provavelmente ele quer ser bom católico; como, no entanto, teve péssimos pastores, ele assimila aquilo que lhe ensinaram e, portanto, não lhe pode ser imputado o delito de negar o ensino da Igreja, exatamente porque o “ensino da Igreja” que lhe foi passado é falsificado e ele provavelmente não o sabe. Em uma palavra, este católico não está excomungado por causa disso.

[Faço um adendo: a heresia pode estar – e, na minha opinião, está de fato – abundantemente disseminada na Igreja neste sentido: membros da Igreja, heresia material. Mas isso não conta para o Papa; não me parece razoável postular que o Papa possa ser herege material e não formal proferir uma heresia material inadvertidamente, salvo algum caso absurdo de perda da razão ou de eleição ao Trono de Pedro de um católico qualquer que já era materialmente herege professava heresias materiais desde sempre. Não sei se uma “Ignorância Doutrinária Invencível” para o Sumo Pontífice é uma impossibilidade teológica, mas é sem sombra de dúvidas uma enorme inverossimilhança; afinal, parece-me lógico que um Magistério [Invencivelmente] Ignorante não poderia produzir senão ignorantes, como um professor que não saiba física não poderia jamais produzir um Stephen Hawking. E uma Igreja Docente que ignorasse a Fé Católica soa-me profundamente absurdo, e implicaria obviamente na perda da Fé Católica no mundo – salvo um caso particularíssimo em que a Fé Católica se encontrasse em algum outro lugar que não na Igreja Docente, o que também considero, se não errôneo, ao menos ofensivo aos ouvidos pios.]

Pois bem, dada esta situação calamitosa, quais são as conseqüências disso? A primeira e mais assustadora, é que as almas vão para o Inferno. “Ah – pode-me dizer alguém -, mas as pessoas não têm culpa de desconhecerem a Doutrina da Igreja”, e com isso pode-se facilmente concordar. Mas as pessoas têm outras culpas e, se não conhecem a Igreja, se não conhecem o Evangelho, se não sabem as coisas que precisam fazer para se salvar, terão muito maior dificuldade em endireitarem as suas veredas. Ao contrário do que parece ser senso comum, parece-me uma evidência gritantemente evidente que não pode, de nenhuma maneira, ser mais fácil salvar-se na Ignorância do que no conhecimento do Deus Verdadeiro. E, se as pessoas não têm conhecimento do Deus Verdadeiro, ainda que não tenham culpa disso, têm menos acesso aos meios ordinários que Deus dispôs para a sua salvação e, por conseguinte, têm maior dificuldade para se salvar.

Além disso, o mundo fica (ao menos parcialmente) privado dos influxos benéficos da Igreja, posto que Ela é sempre, necessariamente, apresentada à humanidade mediante os homens que d’Ela fazem parte. Não Se torna estéril a Esposa de Cristo, mas os frutos que Ela poderia dar simplesmente não vêm aos homens porque os homens não vão até Ela. “Tempo houve” – escreveu Leão XIII – “em que a Filosofia do Evangelho governava os Estados” (Immortale Dei, 28); privando-se as sociedades da Doutrina Cristã, o mundo degenera em barbárie, e então temos a degradação moral da sociedade que hoje contemplamos atônitos.

E, por fim, o que pode ser feito? Em primeiro lugar, rezar, e rezar muito, e fazer penitência pelos nossos pecados, para que o Altíssimo Se compadeça de nós. Sofrer, em segundo lugar, com resignação as adversidades, oferecendo as nossas lágrimas ao Deus Altíssimo em união aos sofrimentos de Nosso Senhor Jesus Cristo na Cruz do Calvário. Combater, em terceiro lugar, mas combater os inimigos verdadeiros, nas posições que a Divina Providência assinalou para nós no grande campo de batalha da História, e não em outras; combater o que precisa ser combatido. Só assim a heresia poderá ser extirpada, a Igreja poderá ser conhecida, e o mundo poderá – como disse Nossa Senhora em Fátima – ter um pouco de paz. Só assim as almas poderão ser salvas, e Deus poderá ser glorificado. Que São Miguel Arcanjo nos proteja sempre no combate.