O que diz a Igreja sobre as sociedades secretas?

Um leitor do blog pergunta:

E além do tema do Comunismo, o que diz a Doutrina da Igreja sobre a adesão de batizados às sociedades secretas e relacionado a esse tema da excomunhão?

Pode esclarecer a respeito?

É o seguinte:

I. O Código Pio-Beneditino previa, no seu cânon 2335, explicitamente, excomunhão automática, reservada à Sé Apostólica, para quem aderisse à maçonaria:

Can. 2335. Nomen dantes sectae massonicae aliisve eiusdem generis associationibus quae contra Ecclesiam vel legitimas civiles potestates machinantur, contrahunt ipso facto excommunicationem Sedi Apostolicae simpliciter reservatam. [“Quem inscrever seu nome na seita maçônica ou em outras associações, do mesmo gênero, que conspiram contra a Igreja ou contra as legítimas autoridades civis, incorre ipso facto em excomunhão reservada à Sé Apostólica” — tradução livre minha.]

II. Em 1981, antes da entrada em vigor do novo Código, a Congregação para a Doutrina da Fé emitiu uma declaração onde dizia que «não foi modificada de algum modo a actual disciplina canónica» e, portanto, que não foi tampouco «ab-rogada a excomunhão nem as outras penas previstas». O antigo cânon, então, «veta[va] aos católicos, sob pena de excomunhão, inscreverem-se nas associações maçónicas e outras semelhantes».

Ou seja: nesta época, embora houvesse um cuidado (que se pode dizer pastoral) para distinguir as responsabilidades individuais em cada caso concreto, a Igreja absolutamente não mudara nem estava em vias de mudar o seu «juízo de carácter geral sobre a natureza das associações maçónicas», que permanecia negativo.

III. No final de 1983, no ano em que foi publicado o novo Código de Direito Canônico, a mesma Congregação para a Doutrina da Fé emitiu uma segunda declaração onde dizia que continuava «imutável o parecer negativo da Igreja a respeito das associações maçónicas, pois os seus princípios foram sempre considerados inconciliáveis com a doutrina da Igreja e por isso permanece proibida a inscrição nelas». Ainda, acrescentou que os «fiéis que pertencem às associações maçónicas estão em estado de pecado grave e não podem aproximar-se da Sagrada Comunhão».

Há aqui uma mudança de direito eclesiástico: ab-rogado o antigo cânon 2335 sem que se lhe tenha colocado no novo Codex dispositivo correspondente, permanecia contudo a proibição aos católicos de ingressarem na maçonaria, sob pena não mais de excomunhão, mas de pecado grave.

Continuava e ainda continua vigente, não obstante, o cânon que prevê excomunhão automática para «o apóstata da Fé, o herege e o cismático» (CIC 1364). Portanto, se a adesão a uma loja maçônica ou a qualquer outra associação análoga importar em um pecado contra a Fé, o sujeito queda excomungado automaticamente: não mais pela inscrição na maçonaria (pena do antigo cânon 2335), mas pelo pecado contra a Fé Católica (pena do atual cânon 1364). É o mesmo raciocínio aplicável à questão da excomunhão dos comunistas.

IV. Pouco depois de um ano, em 1985, foi emitida pela CDF uma terceira declaração, mais longa que as anteriores. Esta é muito interessante e vale uma leitura na íntegra, porque distingue bem as questões morais (aquilo que é pecado) das penais (o subconjunto dos pecados ao qual são impostas determinadas penas pelo Direito Canônico). Além disso, explica detalhadamente os princípios que norteiam o parecer negativo da Igreja sobre a maçonaria:

Mesmo quando, como já se disse, não houvesse uma obrigação explícita de professar o relativismo como doutrina, todavia a força “relativizante” de uma tal fraternidade, pela sua mesma lógica intrínseca[,] tem em si a capacidade de transformar a estrutura do acto de fé de modo tão radical que não é aceitável por parte de um cristão, “ao qual é cara a sua fé” (Leão XIII).

Esta solução canônica, conclua-se, é a que está atualmente vigente: participar da maçonaria ou de outras sociedades secretas é pecado grave e, na medida em que esta participação leve a um pecado contra a Fé, conduz à excomunhão por heresia, apostasia ou cisma do cânon 1364.

V. Para fins informativos — pois os aspectos normativos vigentes são os que foram acima expostos — é interessante anotar o seguinte: um recente “questionário sobre a descrença” coloca a maçonaria (cf. q. 3.4) entre os «fenômenos ou movimentos para-religiosos»; e o Papa Francisco, quando esteve em Turim no ano passado, fez uma referência bem pouco positiva aos maçons:

[E]m finais do século xix a juventude crescia nas piores condições: a maçonaria estava no auge, até a Igreja nada podia fazer, havia o anticlericalismo, o satanismo… Era um dos momentos mais obscuros e um dos lugares mais tristes da história da Itália

VI. Em resumo, é possível sintetizar o que segue:

  • A mera inscrição na maçonaria ou em outras sociedades secretas não implica mais em uma pena de excomunhão automática.
  • Todavia, mesmo a mera inscrição é matéria de pecado grave, conforme reiteradas manifestações da Congregação para a Doutrina da Fé o afirmam (naturalmente, aplicam-se aqui os critérios morais genéricos dos pecados mortais, para cuja concretização exige-se conhecimento e livre consentimento).
  • Os princípios da maçonaria são irreconciliáveis com os da Fé Católica, de tal sorte que a adesão àqueles «tem em si a capacidade de transformar a estrutura do acto de fé» católico.
  • Na medida em que o católico inscrito na maçonaria tenha a sua fé deturpada, aplica-se-lhe a pena de excomunhão do cânon 1364 — não mais pelo mero ingresso na loja maçônica, mas sim pela deturpação da sua fé provocada por ela.

Com isso respondem-se as dúvidas colocadas sobre o assunto.

O Reino de Deus não é comida nem bebida

Um leitor desafia:

Aliás, por que não comenta a diferença [nas regras do jejum e da abstinência] do Código de Direito Canônico de 1917 com o atual?

Façamos melhor! Comparemos o Código Pio-Beneditino com a praxis ortodoxa e com a cristã primitiva. Que tal?

Para o Código de 1917, de acordo com esta excelente sistematização:

  • faz-se abstinência toda sexta-feira do ano;
  • faz-se jejum todos os dias da Quaresma;
  • faz-se jejum e abstinência em algumas datas específicas («na Quarta feira de Cinzas, em toda Sexta-feira e Sábado da Quaresma e das Quatro Têmporas, nas vigílias de Pentecostes, da Assunção da Mãe de Deus ao Céu, de Todos os Santos e da Natividade do Senhor»).

Para os ortodoxos:

  • faz-se «jejum normal às quartas e sextas-feiras» do ano todo (com algumas exceções: p.ex., «entre o Domingo do Fariseu e do Publicano e o do Filho Pródigo»);
  • seguem-se complicadas regras de abstinência para a Quaresma (v.g. na primeira semana, além do jejum, é permitido «comer apenas vegetais cozidos com água e sal, e também coisas como frutas, nozes, pão e mel»; na Quinta-Feira Santa, «uma refeição é permitida com vinho e óleo»; no Sábado Santo, «ao fiel que permanecer na igreja para a leitura dos Atos dos Apóstolos, para sustentar suas forças é dado um pouco de pão e frutas secas, com um copo de vinho»; etc.).

Para os primitivos cristãos:

  • fazia-se jejum toda semana, na quarta-feira e na sexta-feira;
  • o jejum «consistia na abstenção de todo o alimento e de toda a bebida até a hora nona, isto é, até o meio da tarde»;
  • além destes, os «jejuns que precediam a Páscoa (…) foram fixados em quarenta dias, em memória do jejum que Cristo fez no deserto».

Que conclusões podemos tirar dessas informações? Que os cismáticos ortodoxos são os que mais se aproximam da Igreja fundada por Nosso Senhor? Que o Código Pio-Beneditino era de um relaxamento modernista criminoso em comparação com as regras do jejum praticadas em outros tempos e lugares? Que a Igreja vem passando, ao longo dos séculos, por um gradual processo de degeneração no que concerne à pureza das práticas penitenciais que os Apóstolos legaram aos primeiros cristãos?

Nada disso. A única coisa que é legítimo concluir desse ligeiro excurso histórico-geográfico é que a Igreja de Cristo, naquilo que não é de direito divino, sempre teve o poder de moldar a Sua disciplina às diversidades dos tempos e lugares, aos usos e costumes legítimos, tendo em vista o que julga mais propício a conduzir as almas a Deus – este, sim, que é o fim mediato de toda a penitência cristã.

Em si mesmo, não adianta passar um terço do ano a pão e água, não adianta comer apenas nozes e lentilhas em determinados dias do ano, não adianta passar cinco dias com somente duas refeições. Não adianta, porque «o Reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, paz e gozo no Espírito Santo» (Rm 14, 17). E atenção, que com isso não se está negando a importância da penitência na vida cristã; mas se está, sim, atacando a mentalidade que parece querer reduzir a ascese ao número anual de dias de abstinência obrigatória de carne no calendário oficial da Igreja.

Se o Código de Direito Canônico de 1983 for modernista e ilegítimo meramente porque prescreve uma disciplina mais relaxada do que a do Código de 1917, então o Pio-Beneditino também o é porque dispõe regras de jejum e abstinência muito mais brandas do que as mantidas – até hoje! – pelos cismáticos orientais. E os cismáticos orientais, ao complicar o jejum seguido pelos cristãos dos primeiros séculos (ao mesmo tempo, aliás, ao que parece, em que o abrandava em muitos dos dias da Quaresma), também são réus da corrupção da pureza dos costumes antigos e, por conseguinte, cabe-lhes a mesma censura. A seguir tal lógica, então, nunca houve fidelidade entre as autoridades eclesiásticas de nenhuma parte do mundo, e a história da Igreja é um enorme suceder de progressivas conspurcações da mensagem evangélica. Semelhante raciocínio, por óbvio, não tem o menor cabimento, é aliás ímpio e blasfemo, e ofende aos ouvidos pios que ele seja sequer cogitado.

Contra essa mentalidade neo-farisaica que julga encontrar a graça divina no mero cumprimento material de normas disciplinares, levantam-se, vigorosas, as palavras de S. Paulo: non est regnum Dei esca et potus! O valor das penitências não se mede pela magnitude daquilo que é sacrificado, mas pelo espírito com o qual se o sacrifica. Afinal de contas, a razão última de toda penitência é o conformar-se a Cristo, é o aproximar-se de Deus. Para quem ainda não se apercebeu dessa verdade elementar, infelizmente, nem todos os jejuns e abstinências do mundo haverão de servir.