O “problema” dos casais recasados I: comunhão espiritual e comunhão sacramental

Não existe nenhum problema com os ditos “casais em segunda união” serem privados da comunhão eucarística. Ou, olhando a questão por outro ângulo, há sim: o problema é a naturalidade com a qual, hoje em dia, encaram-se o adultério e a bigamia. Isso, sim, salta aos olhos e choca, isso é escandaloso, isso deveria provocar-nos repulsa e inspirar-nos lágrimas de reparação pela facilidade com que Nosso Senhor é ofendido. Que aos pecadores públicos sejam negados os sacramentos de vivos é a conseqüência mais óbvia da Doutrina Católica. Que a julguem “dura demais” e procurem por todos os meios desfigurá-la, este é o verdadeiro problema que merece toda a nossa atenção.

Em recente pronunciamento preparatório para o Sínodo dos Bispos que tratará sobre o tema da Família, diante do Papa e dos cardeais reunidos em consistório, o cardeal Kasper fez um discurso que ganhou grande repercussão na mídia. Li primeiro sobre ele aqui e trechos mais amplos da fala do cardeal podem ser encontrados aqui. Algumas conclusões a que parece conduzir o raciocínio do Kasper são tão escandalosas que merecem alguns contrapontos, os quais espero fazer firmes e claros.

Antes de qualquer coisa, é digno de nota que o cardeal, que começou a sua alocução afirmando não ter respostas e sim somente perguntas, tenha vindo com “soluções” tão concretas (e equivocadas, como veremos) para o “problema” dos casais recasados. Há diferenças entre um questionamento verdadeiro e uma pergunta retórica, que podem até confundir as massas mas não escapam aos ouvidos atentos. Por exemplo, o seguinte excerto não contém um questionamento sério, e sim uma pergunta retórica cuja resposta já se encontra implícita na própria formulação do período:

Efectivamente, quien recibe la comunión espiritual es una sola cosa con Jesucristo. […] ¿Por qué, entonces, no puede recibir también la comunión sacramental?

A resposta implícita – à qual o sofista experiente fatalmente conduz o ouvinte incauto – é óbvia: não há nenhuma razão para que uma pessoa que já é «uma só coisa com Jesus Cristo» não possa receber a Comunhão Sacramental. Existe, portanto, uma absurda contradição na praxis da Igreja que precisa ser corrigida o quanto antes. Afinal de contas, se alguém pode tornar-se um só com Cristo, que autoridade terrena poderia negar-lhe a Sagrada Eucaristia?

O sofisma grosseiro por detrás desse raciocínio é ocultar a enorme diferença existente entre a presença real e substancial de Nosso Senhor nas espécies eucarísticas e a Sua presença espiritual na qual o fiel se coloca por meio da oração. É eliminar por completo a diferença existente entre as orações individuais dos fiéis e os Sacramentos – sinais sensíveis e eficazes da Graça – instituídos por Cristo e ministrados por Sua Igreja. É colocar em pé de igualdade a subjetividade da alma que reza e a objetividade da Graça conferida ex opere operato pelos Sacramentos da Nova Aliança. É, em suma, subverter por completo toda a teologia sacramental católica.

É verdade que Deus também confere a Sua Graça por meios desconhecidos aos homens, e que Ele não está de nenhuma maneira preso aos Sete Sacramentos. Mas é igualmente verdade que o modo como se dá a Graça dos Sacramentos é distinto e especialíssimo. Ninguém pode ordinariamente estar certo da pureza de sua contrição perfeita; mas qualquer penitente pode ter certeza de que, quando o padre pronuncia o Ego te absolvo, o perdão de Deus é efetivamente concedido. Um protestante em ignorância invencível pode perfeitamente estar em estado de Graça; mas como esse juízo não pode ser feito senão por Deus, não é lícito participar-lhe a Santíssima Eucaristia. O Batismo de Desejo pode tornar um catecúmeno apto a entrar no Reino dos Céus, mas não lhe permite receber a unção do Santo Crisma.

Os exemplos se poderiam multiplicar à vontade, mas creio que já tenha ficado claro o que quero dizer: os Sacramentos, por sua própria natureza de sinais sensíveis, exigem certas condições igualmente sensíveis para que possam ser ministrados. As “disposições interiores” sozinhas não bastam: ao pagão é preciso que esteja batizado para receber a absolvição sacramental, por mais pungente e contrito que seja o seu arrependimento, e ao pecador (principalmente ao público!) é necessário que esteja confessado para que possa receber a Sagrada Comunhão, por maior que possa ser a sua união espiritual com Nosso Senhor.

Deus é sempre livre para conferir a Sua Graça. Já os homens, dispensadores d’Ele, não têm a mesma liberdade divina para ministrar os Sacramentos de um modo distinto daquele que o próprio Deus estabeleceu. A (chamemo-la assim) Graça sensível só pode ser ministrada sob circunstâncias objetivamente definidas; em particular, a Comunhão Eucarística só pode ser conferida aos católicos que se encontram em estado de Graça, não o subjetivo, mas o objetivo: o estado em que se encontra o fiel que, havendo pecado mortalmente após o Batismo, tenha confessado arrependido cada uma de suas faltas graves e recebido de um sacerdote a absolvição sacramental. Esta organicidade vital dos Sacramentos não pode ser rompida, e neste itinerário sacramental não é lícito tomar atalhos.

Não é portanto verdade que se negue a Graça de Deus a – p.ex. – um pecador impenitente que se aproxime da Mesa Eucarística. Na verdade, é ele próprio quem A nega a si mesmo, primeiro pelo seu pecado, depois pela recusa a valer-se dos meios instituídos por Cristo para a obtenção do perdão. O caminho para se aproximar dos Sacramentos é público e bem conhecido por todos. Quem se recusa a percorrê-lo na íntegra é o único responsável se não obtém aquilo a que esse caminho conduz.