A Igreja universal e as Igrejas particulares

Creio na Igreja, Una, Santa, Católica e Apostólica – assim reza o Símbolo Niceno-Constantinopolitano que professamos nas nossas missas. Uma dúvida pode ocorrer a quem se demore a meditar um pouco sobre o assunto: ao que parece, «Igreja» pode significar duas realidades (interdependentes, sem dúvidas, mas a rigor distintas) com as quais os católicos travam contato em sua vida espiritual. Uma, a Igreja particular, concreta, à qual territorialmente pertencem; outra, a Igreja universal, “Católica” propriamente, da qual fazem igualmente parte todos os católicos de todas as partes do mundo. A uma Igreja particular pode pertencer um católico e, outro, não; à Igreja Universal, contudo, pertencem todos os membros (católicos, evidentemente) de toda e qualquer Igreja particular do orbe.

Consideradas as coisas dessa maneira, poderia ser tentador pensar que a Igreja universal fosse formada pela reunião de todas as Igrejas particulares – as quais, em seu conjunto, constituiriam a Única Igreja de Cristo. A relação entre Igreja Universal e Igreja Particular seria, assim, uma relação todo-parte. A ordem de constituição da Igreja seria “de baixo para cima”, do mais concreto ao mais abstrato, do particular ao genérico: das Igrejas particulares para a Igreja universal.

Este assunto foi abordado recentemente no blog do pe. Hunwicke, e a resposta do conhecido sacerdote é taxativa: na verdade, quem vem primeiro é a Igreja Universal. Ela vem primeiro temporalmente, porque já nasce Una em Pentecostes; vem primeiro teologicamente, porque é Ela que é o Corpo Místico de Cristo; e, por fim, vem primeiro ontologicamente, porque as Igrejas particulares provêm d’Ela e não o contrário. Não é exato, portanto, afirmar que a Igreja universal seja a soma das Igrejas particulares: são estas, na verdade, que são realizações d’Aquela.

Não se trata de mero preciosismo: o tema tem relevância, uma vez que (ainda) ganha espaço uma eclesiologia que pretende “construir” a universalidade da Igreja a partir das especificidades das Igrejas particulares. Assim, por exemplo, poderia haver espaço para certo desacordo – mesmo em temas morais ou doutrinários… – entre o Bispo de uma Igreja particular e o Papa, Pastor da Igreja universal. É a antiga tese de Kasper esposada pelo pe. Libânio (p. 127): a “precedência ontológica e temporal” da Igreja universal sobre a particular seria uma “eclesiologia (…) anterior ao Vaticano II”. A perspectiva na qual “a Igreja local está no centro de modo claro e decisivo”, por sua vez, seria a “virada eclesiológica do Concílio Vaticano II”.

Sabe-se bem que essas tentativas de opôr o Vaticano II ao (dito) Magistério pré-conciliar carecem de fundamento: são, sempre, retórica vaniloquente de falsos mestres, cuja propriedade para ensinar a Doutrina Católica é sempre inversamente proporcional aos arroubos com os quais alardeiam as maravilhosas novidades teológicas das últimas décadas. Neste caso, contudo, é ainda mais fácil demonstrar a falsidade da tese: há um documento da Congregação para a Doutrina da Fé, assinado pelo então Card. Ratzinger e aprovado por São João Paulo II, que a refuta específica e pormenorizadamente.

Trata-se da Communionis notio, que vale uma leitura na íntegra, e da qual cito (destaques no original):

  • «Por isso, a Igreja universal não pode ser concebida como a soma das Igrejas particulares nem como uma federação de Igrejas particulares. Ela não é o resultado da sua comunhão, mas, no seu essencial mistério, é uma realidade ontologicamente e temporalmente prévia a toda Igreja particular singular» (n. 9).
  • «Na verdade, ontologicamente, a Igreja-mistério, a Igreja una e única segundo os Padres precede a criação e dá à luz as Igrejas particulares como filhas, nelas se exprime, é mãe e não produto das Igrejas particulares» (id. ibid.).
  • «O Bispo é princípio e fundamento visível da unidade na Igreja particular confiada ao seu ministério pastoral, mas para que cada Igreja particular seja plenamente Igreja, isto é, presença particular da Igreja universal com todos os seus elementos essenciais, constituída portanto à imagem da Igreja universal, nela deve estar presente, como elemento próprio, a suprema autoridade da Igreja: o Colégio episcopal “juntamente com a sua Cabeça, o Romano Pontífice, e nunca sem ele”» (n. 13).

Não há portanto espaço para tergiversar: até os termos são os mesmos. Ao contrário do que diz o pe. Libânio (e outros), portanto, a Igreja universal ainda «é uma realidade ontologicamente e temporalmente prévia a toda Igreja particular singular», e isso é a única eclesiologia “vigente” – é a boa eclesiologia “moderna” da Igreja “pós-conciliar”, redigida pelo então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (depois Papa) e chancelada por São João Paulo II. É assim que a Igreja  entende-Se a Si mesma. É esta a verdadeira eclesiologia católica. Qualquer coisa que se oponha a isso deve ser prontamente rechaçada como doutrina espúria e já condenada pelo Magistério – inclusive recente! – da única e verdadeira Igreja de Nosso Senhor: a única que pode, com propriedade, dizer ao mundo como Se compreende.

Os caminhos sem Deus d’O Domingo da Paulus

Eu me recordo da primeira vez que ouvi a palavra “retórica”. Eu tinha por volta de quinze anos e estava lendo Dom Casmurro. Em um certo momento do livro, Bentinho vai descrever os “olhos de ressaca” de Capitu (aliás, a expressão evocava-me então olhos inchados e olheiras profundas de quem passou a noite tomando um porre) e faz então a célebre súplica: «Retórica dos namorados! Dai-me uma compreensão exata do que foram para mim aqueles olhos de Capitu!». A despeito das aspas, cito de memória: não fui procurar no livro a citação literal. Mas o vocativo inicial é exatamente este, tenho certeza. E eu não fazia a menor idéia do que era retórica…

Fiz a digressão porque me lembrei hoje da passagem machadiana, na qual fica evidente a reconhecida incapacidade do protagonista de descrever a contento os olhos da mulher amada – razão pela qual ele pede auxílio à “Retórica dos Namorados”, assim mesmo, personificada. E me lembrei da passagem porque li a mais recente coluna d’O Domingo [esta, que vai ao lado] e me senti um pouco como Bentinho: ele, incapaz de descrever os olhos de Capitu e, eu, incapaz de expressar o propósito do artigo do pe. Libanio no semanário católico. E senti um ímpeto de gritar: “Retórica dos excomungados! Dai-me uma compreensão do que foram aquelas palavras do pe. Libanio!”. Porque, se é talvez necessário enamorar-se para entender o fascínio que provocam os olhos de ressaca de Capitu, talvez seja também necessário colocar-se sob a ótica de quem não tem Fé para que façam algum sentido as palavras do jesuíta na coluna de ontem d’O Domingo.

Porque, sinceramente, o texto me parece mal escrito, sem coesão, sem encadeamento de idéias, sem deixar claro a quê ele se propõe. Começa o jesuíta invocando uma outra “via sem Deus” [?], que “não apela à ciência, mas à mera sabedoria e experiência humanas, feitas à margem de toda tradição religiosa e de fé”. O conceito vem assim mesmo, jogado, sem dizer se isso é uma constatação, um programa a ser buscado, a expressão da própria opinião ou o que seja. Além disso, o conceito é totalmente nonsense simplesmente porque a “sabedoria e experiência humanas” estão necessariamente imbuídas de “tradição religiosa e de fé”, na absoluta totalidade dos povos e das culturas existentes. Simplesmente não existe sabedoria ou experiência humanas que tenham sido construídas “à margem” (!) de “toda” (!!) “tradição religiosa ou de fé”. Por completa impossibilidade de existência do objeto descrito no início do texto, o parágrafo não tem o menor sentido prático.

Também é impossível saber onde se encaixam, nisto, as referências ao Carpe Diem. Não fica claro por qual misterioso motivo a tal “via sem Deus” deveria se preocupar somente com o presente. Aliás, colocando as coisas sob a correta perspectiva católica, o verdadeiro carpe diem encontra-se exatamente no chamado à conversão do Evangelho: é hoje o dia que tu tens para te converteres, é hoje o tempo favorável, e portanto tu deves hoje buscar o Senhor, enquanto Ele está perto. O verdadeiro Carpe Diem se encontra na clássima imagem do santo esmagando um corvo – cras, cras – enquanto ostenta uma cruz na qual está escrito hodie. Acusar o Cristianismo de ser uma religião “do passado” é não fazer a menor idéia do que seja o Cristianismo, é não ter nunca lido uma página sequer do Evangelho, é nunca ter passado cinco minutos observando uma imagem de Santo Expedito.

Seguem-se as loas a um presente vislumbrado de uma maneira hedonista: “então nos resta somente o presente conhecido, no qual escolhemos o que nos traz felicidade”. E, embora esta visão de mundo seja contraposta a um vislumbre de absoluto – “Existem valores que não inventamos. Estão aí diante de nós: amor, beleza, justiça, convivência” -, em momento algum ela é rechaçada com a veemência que deve. Muito pelo contrário. O que o pe. Libânio parece querer fazer é sacramentar esta opção pela vida apenas no tempo presente, é legitimar o “caminho da sabedoria humana sem Deus” (título do artigo). Retórica dos desesperados, dai-me compreender os insondáveis propósitos do velho jesuíta! A conclusão do artigo parece absurda para estar presente em um semanário católico, mas está lá com todas as letras. Transcrevo:

Não se trata de nenhum “presentismo” desregrado, nem de balbúrdia existencial, mas de honestidade humana que nos traz a felicidade. Não faz falta nenhuma transcendência além da história. A civilização ocidental, ao longo do século, está a preparar tal caminho. Cabe-nos trilhá-lo.

E c’est fini. No final, não dá para saber se tal “caminho” foi inventado pelo pe. Libânio ou se ele o está tomando emprestado de outros, e – neste último caso – em momento algum aparece o menor juízo de valor do jesuíta sobre uma filosofia de vida tão estranha à Doutrina Católica. Por completa ausência de aspas indicando citações ou de qualquer exposição textual de refutações às idéias apresentadas ao longo do texto, não resta ao leitor da coluna senão considerar que, para o pe. Libanio, a transcendencia não faz mesmo falta nenhuma, que esta é a marcha inexorável da civilização diante da qual a única atitude que podemos ter é… a de acompanhá-la. Retórica dos “civilizados”, dai-me captar a lógica de certos colunistas “católicos”! Porque certos artigos estão para muito além de minha vã compreensão.

Como pode um jesuíta – logo um jesuíta! – conclamar os católicos a trilharem os caminhos ateus de uma civilização esquecida do Altíssimo? Como pode um filho de Santo Inácio capitular diante dos tolos do mundo moderno que dizem que Deus não existe e – pior ainda! – pretender que esta sua atitude covarde seja a única coisa que resta a ser feita? Como podem idéias desta jaez serem veiculadas impunemente em um folheto de ampla circulação de uma conhecida editora católica?

Parece que a Editora Paulus não está satisfeita. Mas ela não está satisfeita – pasmem! – é com os protestos descontentes dos católicos que, perplexos, ousaram cobrar explicações sobre este artigo ateu d’O Domingo. No Twitter, um amigo meu (o @tht) foi bloqueado pela @EditoraPaulus por conta das denúncias inconvenientes que teve a pachorra de fazer:

A Editora Paulus, responsável pel’O Domingo, carrega o nome do grande Apóstolo São Paulo. Exatamente o Apóstolo dos Gentios, o guerreiro da Fé responsável por levar a mensagem do Evangelho aos povos pagãos! Nos dias de hoje, São Paulo parece estar muito mal representado. O Apóstolo arrastou os povos pagãos para os pés de Nosso Senhor. É revoltante ver que, no século XXI, a Editora Paulus parece querer convencer os católicos a trilharem os caminhos da “civilização” para a qual não faz falta nenhuma Transcendência.