Pescadores de Homens

Há uns dias, expus aqui algumas reflexões sobre a morte, surgidas de um triste acidente que eu havia presenciado na véspera. Dentre os comments, o André Víctor mencionou um filme produzido pela Conferência Episcopal Americana, chamado Fishers of Men (Pescadores de Homens), no qual era exibida uma cena parecida. Vi o vídeo no youtube (acima, está apenas a cena do acidente; vale a pena mesmo para quem não entende inglês) e, à exceção de um ou outro ponto (estranhíssimos, reconheço; a casula aos 5:49 da parte 1, a estola aos 1:16 da parte 2…), é recomendável. Os links vão abaixo

Parte 1

Parte 2

Uma sugestão enfática, mesmo para quem se canse por não conseguir entender o inglês: gravaram o rosto do menino que aparece na cena do acidente, acima? Vejam o que acontece na segunda parte, a partir dos 7:14

Marta, Marta…

Martha Martha sollicita es et turbaris erga plurima porro unum est necessarium Maria optimam partem elegit quæ non auferetur ab ea.
[Evangelium secundum Lucam 10, 41-42]

Duas irmãs receberam o Senhor em sua casa. Marta preocupa-se em servir a Jesus; Maria, empenha-se em ser servida por Ele. Marta é figura da vida ativa; Maria, da vida contemplativa. Gosto de ver também Marta como figura da ascese e, Maria, da mística; e, por fim, também enxergo Marta como figura da vocação leiga e, Maria, da vocação religiosa.

Sobre a vida ativa e a contemplativa, há comentários muito bons na Catena Aurea. Em particular, a seguinte explicação de São Gregório Magno é de uma magnífica clareza:

El cuidado de Marta no se reprende, pero se alaba el de María; son grandes los méritos de la vida activa, pero son mayores los de la contemplativa.

Até porque todos temos, em uma certa medida, necessidade de ação e de contemplação. Enquanto seres humanos, precisamos ter os olhos voltados para o exterior, para as nossas necessidades naturais; enquanto cristãos, precisamos ter os olhos voltados para o interior, para a nossa alma e a sua relação com Deus. Somos seres vivos, e precisamos cuidar do nosso corpo; somos filhos de Deus, e precisamos cuidar de nossa alma. Não há maniqueísmo na Doutrina Católica, nem mesmo na aparente “dicotomia” entre a vida ativa e a vida contemplativa, entre Marta e Maria: Jesus não repreende o cuidado de Marta – tanto que, como comenta Teofilato na Catena Aurea, Jesus nada disse quando chegou e viu que Marta estava trabalhando, somente a corrigindo quando ela foi interferir na contemplação da irmã – apenas elogia o cuidado de Maria.

Acontece que Maria deve ser grata a Marta, porque Jesus provavelmente não viria à sua casa se não houvesse quem O recebesse. Marta “prepara” a casa para que Maria possa ouvir o Senhor – esta verdade torna-se ainda mais evidente se olharmos para a ascese e a mística. Se a ascese pode ser vista como o esforço da alma que busca elevar-se a Deus, a mística seria, então, a contrapartida: o Deus que Se abaixa para chegar até a alma. Uma ascese que não esteja direcionada para Deus é vã; mas a mística de Deus – salvo raríssimas exceções – também não prescinde dos esforços ascéticos da alma. Maria não estaria aos pés do Senhor se Marta não estivesse cuidando da casa. A graça pressupõe a natureza, a mística pressupõe a ascese, a vida contemplativa pressupõe a vida ativa, Maria pressupõe Marta.

Mas os exercícios ascéticos não são um fim em si mesmo, devendo ter em Deus o seu objetivo. Os cuidados do corpo devem ser tomados na medida em que possibilitem os cuidados da alma, não devendo jamais esta ser descuidada por causa daquele. O objetivo de receber Jesus em casa é ouvi-lO falar, e não simplesmente recebê-lO; o papel de Marta é sem dúvida necessário, mas perde completamente a razão de ser sem o de Maria. Por isso o Senhor repreende Marta, não quando ela estava cuidando da casa – pois a vida ativa, a ascese, são necessárias – mas quando ela quis retirar Maria do seu lugar – pois a união mística com Deus, a vida contemplativa, são mais importantes.

Não obstante coexistam em cada um de nós a vida ativa e a vida contemplativa, as vocações específicas de cada um – à vida religiosa ou à vida leiga – direcionam a maneira correta de viver cada uma delas. Um religioso que descuide da sua contemplação para resolver os problemas temporais está sem dúvidas vivendo mal a sua vocação; mas a recíproca é também verdadeira, porque um pai que tanto se dedique à vida contemplativa que descuide de sua família também não está vivendo bem a sua paternidade. Cada um é aquilo que é; Marta é Marta, e Maria é Maria. Não queira Maria fazer aquilo que compete a Marta, nem deixe Marta de fazer o que deve para agir como Maria.

No final, pode-se ficar com a impressão de que Marta é a “gêmea má” da história. Mas tal impressão é falsa; Marta e Maria são necessárias, e dizer que a parte escolhida por Maria é a melhor [optimam partem] não é a mesma coisa de afirmar ser ruim a parte de Marta. Para dissipar os equívocos e acabar com todo dualismo que possa haver, a Igreja enalteceu a vida ativa, corroborou a ascese e glorificou a vocação leiga canonizando Marta. Não apenas Maria é chamada à santidade, pois Marta também tem a honra dos altares.

Hoje é dia de Santa Marta! Que ela possa interceder a Deus por nós, para que saibamos cuidar corretamente do nosso corpo e da nossa alma, esforçando-nos nos cuidados de nossa casa para que possamos estar aos pés de Jesus – e por nenhum outro motivo! – ouvindo as palavras de Vida Eterna que somente Ele tem para nos oferecer.

Sancta Martha,
ora pro nobis!