Pais e filhos gays

Caiu-me às mãos um artigo de João Pereira Coutinho, intitulado “Pais, filhos e gays” (aqui para assinantes da FOLHA ou aqui para os demais), no qual o articulista tece algumas considerações sobre a homossexualidade enquanto fato natural e a licitude de se buscar, para ela, alguma espécie de tratamento terapêutico. Recomendo a leitura do artigo completo (em um dos links acima), sobre o qual eu pretendo fazer alguns comentários. Os itálicos deste post – retroativamente – são excertos do artigo ora em discussão.

Vou começar pelo fim, i.e., pela conclusão do Coutinho, com a qual eu concordo inteiramente: a vida humana é, em si, digna de respeito, e deve ser protegida da vaidade, soberba e tirania de seus progenitores. Isso é uma questão de princípio, que não pode ser negociada sob hipótese alguma, posto que a dignidade do ser humano – de todos e de cada um deles – é-lhe intrínseca, e não pode ser violada nem mesmo por uma boa causa. Assim, é imoral uma manipulação genética que ambicione “criar” artificialmente um ser humano ao gosto do freguês, montado pelos pais que, como clientes de um self-service, escolham as características que desejam e descartem as que não lhe apetecem.

Todavia, não dá para subscrever sem ressalvas todo o artigo. Nele, misturam-se coisas que não deveriam ser misturadas. Por exemplo: diz o articulista que a maioria das pessoas, se pudesse identificar a orientação sexual do filho por meio de um exame pré-natal, não hesitaria em recorrer ao ABORTO ou à “reprogramação” caso a sexualidade da criança apontasse para o lado “errado”. Oras, o aborto é clara e absolutamente imoral. Já o que é chamado de “reprogramação”, precisa ser melhor analisado.

João Pereira Coutinho refere-se a um estudo sobre diferenças de anatomia cerebral entre homossexuais e heterossexuais (provavelmente o mesmo estudo que já foi comentado aqui neste BLOG) e sobre a influência de certos hormônios (durante a gestação e pouco depois dela) na formação do sistema nervoso do indivíduo. E prossegue: se os hormônios desempenham papel principal, abre-se a porta prometida: “reorientar” os hormônios, “reorientar” a preferência sexual do bebê. Antes de continuar, é preciso deixar claro que não pode ser aceitada simpliciter a tese segundo a qual [a] homossexualidade é um fato natural -como a cor dos olhos, a pigmentação da pele. Um bebê, embora evidentemente tenha cor de olhos, não tem preferência sexual nenhuma. O que ele pode ter é uma certa configuração biológica que o predisponha a, no futuro, quando se interessar sexualmente por alguém, fazê-lo por pessoas do mesmo sexo. No mesmo artigo, Coutinho diz que outros aspectos da personalidade humana – como para a depressão, para a liderança, para a criatividade – podem ser explicados da mesma forma que a homossexualidade. E bebês não têm nada disso, embora possam desenvolver essas características depois. Da mesma maneira que é preciso considerar em todo ato humano, onde entra o livre-arbítrio de cada um – ao contrário de coisas como cor de olhos e pigmentação da pele -, uma coisa é a predisposição e, outra, o determinismo. É aceitável que haja predisposição para o homossexualismo, mas é simplesmente falso que a configuração genética determine sozinha quem é gay e quem não é, porque as pessoas sempre podem (à exceção de alguns casos mais críticos) agir em desacordo com os seus impulsos e instintos imediatos. Nós fazemos isso o tempo todo, e é isso que nos diferencia dos animais irracionais.

Concedendo que certos comportamentos – entre eles, o comportamento homossexual – possa sofrer influências neurobiológicas (como, aliás, eu concedo facilmente), é forçoso incluir neste conjunto também coisas como a depressão, a cleptomania, a ninfomania ou a pedofilia (sobre este último, aliás, recomendo esta leitura, que traz confissões interessantes). Se é assim, então, por que alguns destes comportamentos são moralmente passíveis de tratamento e outros devem permanecer protegidos da “violência de terceiros”? Por acaso dar anti-depressivos a pessoas que sofrem de depressão é condená-las a habitar vidas que não lhes pertenceriam? Por que uma ninfomaníaca pode ser tratada e um homossexual não pode? O critério colocado pelo articulista é arbitrário: a homossexualidade não é impeditiva de um funcionamento pleno do indivíduo nem põe em risco a sua sobrevivência futura. E é arbitrário por pelo menos dois motivos.

Primeiro: o que é “funcionamento pleno”? Na plenitude da realização de um indivíduo, não deveria estar – pelo menos em possibilidade de escolha – a formação de uma família? Homossexuais não podem fazê-lo de maneira natural. Por que esse aspecto naturalíssimo da vida humana foi retirado do funcionamento pleno do indivíduo que Coutinho defende como o critério que diferencia aquilo que é passível de interferência terapêutica daquilo que não o é?

Segundo: existem coisas que não se enquadram no supradito critério e que sempre foram feitas sem maiores questionamentos pela medicina. Por exemplo, cirurgias estéticas. “Ah, mas uma cirurgia estética é de responsabilidade do sujeito sobre si mesmo, pois é ele que escolhe fazer”, poderia alguém argüir. Não necessariamente. Por exemplo, os pais de uma criança que tenha lábio leporino estariam porventura fazendo alguma violência contra o seu filho se lhe fizessem uma cirurgia corretiva? É claro que não.

O homossexualismo é anti-natural, ainda que se possa observar “na natureza” atos sexuais entre animais do mesmo sexo, e ainda que ele tenha raízes n’alguma configuração neurobiológica do indivíduo. E a razão para isso é que ele vai contra a própria natureza do ato sexual, pois este nos mostra que há complementaridade entre o homem e a mulher, e que esta complementaridade é necessária à perpetuação da espécie humana. Isto não é um pressuposto do catolicismo, é um fato que está ao alcance da razão natural. É um valor objetivo, e justifica a intervenção terapêutica para se corrigir as predisposições à homossexualidade que porventura existam já num recém-nascido ou num nascituro, sem que isso seja violar-lhe a dignidade intrínseca (como no caso do aborto), porque o que detém a dignidade é o ser humano, e não a homossexualidade. A manipulação genética é condenável, se tiver como fim a criação do “super-homem”; mas a razão humana pode e deve ser utilizada para que o ser humano – parafraseando João Pereira Coutinho e dando um sentido diverso à expressão dele – possa ter uma vida plena. E uma pessoa vive tão mais plenamente quanto menos ela se desvia daquilo que ela deve ser, quanto mais ela se conforma à Lei Natural – da qual podemos, no tocante ao que se está discutindo aqui, encontrar uma eloqüente expressão lá no início da narrativa bíblica: et creavit Deus hominem ad imaginem suam ad imaginem Dei creavit illum masculum et feminam creavit eos (Gn 1, 27).