Sobre o Carnaval III: o cilício e a fantasia

A despeito de tudo o que já falamos sobre o Carnaval, permanece o fato incontestável de que a festa concreta é uma ocasião de pecado para inúmeras pessoas; para além de quaisquer floreios de retórica que possam ser usados para compôr a elegia do período, o dado factual é que, no nosso Brasil do século XXI, Deus Nosso Senhor é ofendido durante estes quatro dias de um modo particularmente intenso. Isto posto, não seria melhor dedicar o Carnaval para rezar em desagravo? Não é uma exigência da caridade o sacrifício da alegria – ainda que a lícita! – para reparar (um mínimo que seja!) as ofensas feitas ao Todo-Poderoso durante este período?

Nem falamos sobre o dever de não pecar no Carnaval, pois este é óbvio. Como já dito e repetido, ninguém tem autorização para pecar ou para colocar-se desnecessariamente em ocasião de pecado, nem no Carnaval e nem em nenhuma época do ano. Mas nos referimos, aqui, àquela alegria lícita à qual todo mundo pode se permitir, àquela justa recreação que, em si, não tem nada de pecado. Não seria uma coisa boa abster-se desta alegria – lícita, repitamos, porque dos prazeres ilícitos todo mundo está obrigado a fugir – em desagravo pelos pecados cometidos no Carnaval?

Uma coisa boa sem dúvidas é. Não há quem o negue: é claro que é uma coisa boa passar o Carnaval, p.ex., em um retiro de oração ou em constantes visitas a Nosso Senhor no Sacrário. É claro que é uma coisa muito boa até mesmo ficar em casa, recolhido e em silêncio, quando se poderia estar confraternizando com amigos – e oferecer isto pela conversão dos pecadores. O que nós negamos é que isto seja uma coisa obrigatória para todo aquele que pretende ser cristão verdadeiro.

Entre as “frases dos santos” que as pessoas gostam de citar para demonizar o Carnaval está uma passagem de uma santa cujo nome eu não me recordo agora. A santa, diz-se, passava o Carnaval inteiro em oração diante de Nosso Senhor Sacramentado para implorar o perdão de Deus pelos pecados cometidos durante estes dias. Sim, a passagem é muito forte e é muito bonita. Sim, é verdadeiramente admirável que a mulher tenha se colocado de joelhos diante do Sacrário para rezar ao Altíssimo em desagravo. Eu sem dúvidas concordo que tal atitude é extremamente meritória e muito agrada a Nosso Senhor.

A questão, contudo, é que as pessoas são diferentes e cada uma tem um (chamemo-lo assim) “carisma específico”. É sem dúvidas uma coisa muito boa, muito santa e muito agradável a Deus, por exemplo, dar todos os seus bens aos pobres e fazer-se frade mendicante, levando uma vida de penúria e de entrega completa ao anúncio do Evangelho. É uma coisa belíssima! Quem, no entanto, ousará dizer que todo mundo está obrigado a vender todos os seus bens e levar uma vida de mendicância para poder salvar a própria alma?! Quem ousará dizer que isto é uma exigência do Evangelho da qual ninguém se pode furtar?

Vem-me à memória a passagem dos Atos dos Apóstolos, quando São Lucas fala sobre os primeiros discípulos que não tinham posses, sendo todas as coisas comuns entre eles. E a passagem, imediatamente subseqüente, de Ananias que mentiu a respeito do preço da venda de um campo: veio entregar aos Apóstolos menos do que efetivamente tinha obtido na venda. São Pedro fulminou: acaso tu não poderias ter mantido o teu campo para ti? Acaso estavas obrigado a vendê-lo?

A mesma passagem, mutatis mutandis, meio que ressoa nos meus ouvidos sempre que eu vejo alguém falar sobre a santa que passava os seus dias de Carnaval rezando em desagravo pelos pecados cometidos nesta época. Provavelmente ela era uma religiosa contemplativa; no entanto, as pessoas que gostam de citar a vida dela para condenar o Carnaval não fazem (e nem defendem que se faça) nem 10% daquilo que uma monja reclusa faz (ou fazia na época dela)! Por qual misterioso motivo a única parte da hagiografia de Santa Santa Teresa dos Andes (ou qualquer outra) que é apresentada como um imperativo categórico cristão consiste, precisamente, na adoração em desagravo durante os dias de Carnaval?

Houve quem dissesse que os cristãos têm, sim, o dever de colocarem em comum os seus bens, abolindo o direito à propriedade privada: trata-se exatamente da Teologia da Libertação. Aquilo que era mérito passa a ser uma inaceitável imposição que, aliás, de tão diabólica anula até mesmo o mérito que havia na pobreza voluntária. Vejo algo de muito parecido no discurso que eleva a penitência praticada no Carnaval ao patamar de exigência da vida cristã. Aquilo que era belo – belíssimo! – transforma-se em uma reles exigência à qual todos estão obrigados: aquilo que era um gesto extraordinário de amor a Deus transforma-se em uma obrigação corriqueira. A imposição da virtude não pode ser jamais virtuosa. Só há mérito em Ananias depositar o valor da venda do seu campo aos pés dos Apóstolos se considerarmos que ele pode perfeitamente dispôr do campo como melhor lhe aprouver – inclusive o mantendo. Só é admirável que os santos tenham passado os seus carnavais em penitência se for lícito aos cristãos brincarem-no de modo sadio.

Podem dizer que é melhor rezar, que a penitência em desagravo agrada mais a Deus, que o sacrifício durante os dias do Carnaval pode dar muitos frutos – tudo isto é verdadeiro. Concordo até mesmo facilmente que é mais meritório passar o Carnaval de joelhos dobrados diante da Santíssima Eucaristia do que atravessá-lo entre passos lentos de frevo atrás dos blocos líricos. Mas, digam o que disserem os igualitaristas dos nossos dias, nem todo mundo é chamado ao mesmo grau de santidade e nem todo mérito é igualmente e por princípio acessível a todo mundo. Quem puder passar o Carnaval rezando em desagravo, faça-o: faz muitíssimo bem! Mas que ninguém se obrigue (ou seja obrigado) a isso. E quem estiver de cilício durante estes dias, lembre-se de oferecê-lo um pouco também pelos outros que estamos de fantasia: não por conta do rosto pintado ou da camisa colorida, mas por nossos outros inumeráveis pecados. Pois, por debaixo da fantasia ou do cilício, a verdade é que pecadores todos somos e todos precisamos de orações.

Publicado por

Jorge Ferraz (admin)

Católico Apostólico Romano, por graça de Deus e clemência da Virgem Santíssima; pecador miserável, a despeito dos muitos favores recebidos do Alto; filho de Deus e da Santa Madre Igreja, com desejo sincero de consumir a vida para a maior glória de Deus.

5 comentários em “Sobre o Carnaval III: o cilício e a fantasia”

  1. Boa noite Jorge,

    Acabei de ler os três textos que você postou sobre o carnaval e eu os achei muitos bons. Não gosto de folia e multidão, mas passei um carnaval em família em um lugar frio, onde pude apreciar um bom vinho, comer fondue e estava tudo tão bom, agradável e saboroso que eu guardo esse momento como lembrança do meu carnaval com lícitos prazeres e agora, meditando os seus textos, vou vivenciar a quaresma com mais entendimento.

    Fique com Deus e que você tenha uma frutuosa e santa quaresma!

  2. Coitado do Jorge Ferraz.Arroga saber mais que santos e papas que condenaram os folguedos carnavalescos.E ainda tem a ousadia de dizer que Momo tem o direito de reinar durante 4 dias.Só há um rei e é Cristo.Momo não tem direitos.Quanto ingenuismo sr. Jorge! Como seria esse brincar carnaval licitamente ? Imagino como isso seria possível na Bahia ou em qualuer outro lugar em meio aos trios elétricos ao som de musicas sensuais regadas a bebida , promuiscuidade , mulheres seminuas rebolando, homens sambando desordenadamente, foliões eufóricos , velhos bêbados, blocos irreverentes ao extremo , etc.Não consegui imaginar um católico pular o carnaval em tal contexto sem risco grave de pecar.Imagine para quantas moças de bunda e peito de fora o sr se exporia a olhar, imagine quantos pensamentos vãos lhe passariam pela cabeça , quanta vontade de beber alem da conta, de extravazar , de desreprimir , de fazer catarse em meio a folia histriônica e louca desses dias? Ou o sr está cima disso sendo imune as tentações ? Só haveria um jeito de não pecar indo ao carnaval – sanbamdo de olhos vendados e de ouvidos tampados para não escutar as imoralidades musicais.Se o sr gosta de pular o carnaval fique a vontade.Mas não faça de seu gosto uma coisa aceitável e louvável e condizente com o espírito cristão.Não faça como fez quando tentou justificar a ida ao show do Paul.Tome vergonha na cara e pare de falar em nome da Igreja e de exibir um ridículo “Selo de ortodoxia Dom Jose”….Deus nos livre dos blogueiros “católicos”.

  3. Isto posto, vamos providenciar um camarote no galo do ano que vem?!?!?!?

  4. “Confusionismo.Soube que estava vacilando a retidão de teu critério.E , para que me entendesse , escrevi-te: O diabo tem a cara muito feia e , como é esperto, não se expõe a que lhe vejamos os cornos.Não vem de frente-Por isso quantas vezes aparece com disfarces de nobreza e até de espiritualidade”-São Josemaria Escrivá , In : Caminho, p.131.

  5. Acredito que o Jorge está defendendo o carnaval que não mais existe. O Carnaval folclórico dos maracatus, dos blocos, dos papagus e até mesmo do mela mela…não o da Bahia e nem tampouco o da terra dele como hoje se apresenta. Creio também que se ele deseja e gosta de brincar durante o carnaval só teve uma alternativa: reuniu alguns amigos católicos, alugou uma grande casa numa praia tranqüila, levou só refrigerante e também senhoras para ao som de marchas como as pastorinhas se alegrar nestes dias. Não creio estivesse no meio da multidão dos bonecos de Olinda…sinceramente acredito que não. Alerto de coração que não sendo irônico. Pois acredito que possa sim, se quiserem brincar o carnaval de forma sadia. Mas em canto restrito e bem longe das multidões enlouquecidas dos carnavais de rua de hoje.

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