[OFF] Eu, com câncer (XII): Um ano se passou…!

Ontem eu completei um importante aniversário. Há exato um ano, era um sábado e eu me dirigia, pela manhã, à emergência do Hospital Português, com irritante e persistente dificuldade de respirar… O resto da história vocês já conhecem, mas chega a ser impressionante olhar para trás, agora, e ver o local privilegiado em que me encontro hoje, depois de tudo o que passei.

Um câncer é um câncer e não tem lá muito o que se fazer: é combater a doença em ato, precaver-se contra a recidiva e mudar o estilo de vida. Quanto ao primeiro desses itens, não posso classificar estes últimos doze meses senão como uma vitória completa: no final de maio eu fiz a última sessão de QT, e todos os exames então realizados mostraram uma resposta extraordinária. Após oito ciclos de R-CHOP, os mais minuciosos exames davam «negativo para neoplasia linfoproliferativa em atividade». Os bens temporais – entre os quais a saúde ocupa um lugar proeminente – as mais das vezes não estão sob nosso controle. Com relação a eles, o Senhor dá e o Senhor tira, ensina-nos o livro de Jó, e mesmo do fundo do poço é importante que se bendiga o nome d’Ele. Mas a história continua, e é reconfortante notar que, às vezes, Ele os concede novamente. Sit nomen Domini benedictum.

Um câncer tem toda aquela história de um período de monitoramento, mais ou menos longo, estendendo-se desde a última quimioterapia até (via de regra) cinco anos adiante: é a fase em que me encontro. Faço “manutenção”, como disse da última vez que escrevi sobre o assunto, o que significa que a cada dois meses eu tomo uma dose de medicamentos que objetiva acabar com qualquer resquício de células cancerígenas que porventura ainda existam em meu organismo, impedindo assim o linfoma de se restabelecer. O Rituximab é uma droga de altíssima qualidade: trata-se de anticorpos artificiais, que reagem especificamente contra as células doentes do meu tipo de linfoma, destruindo-as. Alguém perguntou certa feita se era como se fosse uma vacina para imunizar contra o câncer, mas é exatamente o contrário: é como se fosse um sistema imunológico artificial que destrói as células cancerígenas tão-logo apareçam, não dando a elas a chance de se multiplicarem.

Que Deus abençoe os responsáveis por este avanço da medicina! Sem ele, o meu tratamento seria muitíssimo mais complicado; além disso, essa manutenção que faço bimestralmente não me prejudica em nada. Lembro-me dos dias mais complicados da quimioterapia, em que eu ficava tonto, vomitando de madrugada, com o cabelo caindo, com o sistema imunológico baixo… nada disso acontece quando faço a manutenção. Vou à clínica depois do almoço, passo a tarde tomando o soro e, à noite, já inclusive saí de lá direto para a Faculdade, novo e sem maiores complicações. Não tenho nenhum efeito colateral, nada de náuseas, sem comprometer o sistema imunológico, nada, nada. Claro, há o incômodo do tempo passado na clínica, do cateter subcutâneo (que ainda mantenho) etc.; mas, perto das corredeiras bravias que tive que descer, isso é uma marola insignificante. Não dá nem para reclamar.

Ter uma doença como câncer faz você mudar o seu estilo de vida: já falei sobre isso aqui com talvez irritante frequência. Mais algumas poucas palavras, somente, sobre o assunto. Ter se debruçado sobre o abismo e praticamente sentido a vertigem da queda faz você retornar para o chão firme de um modo diferente: é como se as coisas não fossem tão firmes assim e, no fundo, como se a segurança não fosse assim tão importante. Na verdade, o que acontece é que você sabe que o chão pode voltar a se abrir sob os seus pés – e isso, depois de um tempo, tira-lhe o medo de cair. Mais do que a garantia paranóica pela firmeza do solo, você aprende a valorizar a caminhada com mais leveza e desenvoltura. Certamente alguém já falou em carpe Diem, naquele «Carpe Diem» barroco que é um eco daquela exortação de São Paulo de que «agora é o tempo favorável» (cf. IICor 6, 2), e é exatamente isso: o dia corre, e importa que ele seja bem vivido. Não dá para saber o futuro; dá pra saber, contudo, que o presente está aí e precisa ser aproveitado. O resto, como sempre, está nas mãos de Deus – e a experiência do último ano deixa essa impressão ainda marcada com vívida nitidez em minha alma. Que ela não se apague.

Muitos foram os que rezaram (e rezam ainda!) por mim, aos quais não posso senão agradecer do fundo do coração e oferecer-lhes as pequenas contrariedades – agora já tão raras…! – da minha doença em agradecimento pela caridade. Que o bom Deus os recompense com maior generosidade do que eu. Quanto a mim, que Ele não me deixe desperdiçar o “tempo extra” que me concedeu sobre esta terra; que eu saiba, sempre, na doença como na saúde, tudo ordenar para a glória d’Ele, é o que mais sinceramente desejo e o que peço aos que teimam em não se esquecer de mim em suas orações.

Hoje vivo diferente: alimento-me melhor e preocupo-me menos, por exemplo, e é realmente uma coisa extraordinária trocar a dispnéia do derrame pleural pela respiração ofegante dos exercícios físicos necessários para baixar o colesterol. Tudo já voltou ao normal; mas num nível mais alto, como numa espiral ascendente, onde me encontro no mesmo lugar de antes de adoecer, sendo que em um patamar mais elevado. Daqui dá para olhar para trás – para baixo! – e para adiante – para o Alto! – e, com um sorriso nos lábios, dar graças a Deus por este ano que já finda. Obrigado, Senhor! Superaste as minhas expectativas. E sigamos vivendo. Vejamos o que ainda posso fazer por Cristo enquanto estou cá por estas paragens. Vejamos que outras maravilhas Ele ainda tem reservadas para mim.

[OFF] Eu, com câncer (XI): A nova fase da vida

Volto a escrever depois de um bocado de tempo, tendo-me ocupado com uma miríade de outras coisas. O paulatino voltar ao ritmo do trabalho, as atividades acadêmicas de um primeiro período universitário após alguns anos longe da Graduação, as sessões de Quimioterapia que ainda fiz, os cinqüenta dias de Páscoa. Foram muitas coisas, nem todas as quais eu tive a oportunidade de registrar aqui ou alhures. Mas penso que já posso voltar.

Do final de abril para cá (quando escrevi pela última vez) passaram-se outras duas sessões de quimioterapia. No início do meu tratamento, naquele já longínquo e tenebroso dezembro, seis ciclos haviam sido o meu prognóstico inicial. Findo eles, no final de abril e em maio último, eu fiz mais dois exames: uma TC de tórax e abdômen + um PET-CT. Os 21 dias entre ciclos esgotaram-se mais depressa do que os exames puderam ser realizados e ficarem disponíveis os seus resultados; no dia 06 de junho eu tomei a sétima QT. A TC (recém-saída) era bem animadora. Quinze dias depois, eu fiz o PET-CT. Os resultados foram ótimos. Sexta-feira última, dia 30 de maio, tomei a oitava dose de quimioterapia. Ontem voltei à minha hematologista. E ela se mostrou extremamente feliz com os resultados.

O PET é um exame muito interessante. Grosso modo, o que ele objetiva é identificar as áreas do seu corpo onde está havendo maior consumo celular de açúcar. Para fazer isso, ele injeta um Flúor radioativo (18F, ou FDG) na sua corrente sanguínea (é um análogo da glicose) que, depois, a máquina capta onde está sendo consumido. A relevância disso? Células tumorais apresentam um elevado consumo de glicose. Sabe-se que certas células (como as cardíacas e as cerebrais, v.g.) apresentam normalmente alto metabolismo glicolítico; no entanto, caso o PET identifique “focos” de consumo do 18F em locais inusitados, isto pode indicar atividade cancerígena. A combinação entre a imagem tomográfica e a obtida do PET (o “-CT” de “PET-CT” significa justamente “Computerised Tomography” – é uma tomografia computadorizada simples, que é feita simultaneamente com o PET e permite a composição das duas imagens) é capaz de localizar a área do corpo onde está acontecendo o consumo de glicose suspeito e, assim, identificar tumores em atividade (ou mesmo – o que é mais interessante ainda – que estejam apenas ensaiando entrar em atividade, i.e., cujas características morfológicas não são ainda suficientes para os caracterizar como tais). Trata-se, em suma, de uma coisa linda, obra-prima do engenho humano.

O resultado do meu PET-CT foi extremamente animador. As únicas coisas “acesas” foram as rigorosamente esperadas: cérebro e coração (graças a Deus), rins e bexiga (por causa do metabolismo do FDG). Nenhum consumo anormal de glicose ao longo do meu sistema linfático, o que me valeu o seguinte alvissareiro laudo médico:

pet-ct

Ontem estive com a minha hematologista querida; fui levar-lhe os exames. Ela mostrou-se extremamente feliz com os resultados. Uma sua colega de trabalho entrou no consultório, para lhe falar sobre não-sei-o-quê; ela mostrou-lhe orgulhosa o laudo do PET, acrescentando: “linfoma folicular”, como se para enfatizar o quanto o resultado era admirável. Nos olhos dela, a alegria e o orgulho do trabalho bem-sucedido; nos meus, a gratidão pela vida nova descortinada.

O que acontece agora? Bom. câncer é uma doença muito chata, e o meu tipo específico de linfoma – o linfoma folicular – parece ser mais chato do que a média. As buscas no Google são unânimes em lhe apontar as seguintes duas características: indolente e incurável. Desisti delas logo no início do tratamento, por uma razão muito simples: que minha doença fosse indolente era uma clara inverdade empírica e, que fosse incurável, eu não queria acreditar (até pela patente inadequação do primeiro adjetivo). A Dra. Rosa, claro, é cautelosa: disse-me que em casos como o meu fala-se mais que o linfoma está controlado do que propriamente curado. Independente de tudo isso, o fato é que a minha resposta ao tratamento é extraordinária, nada compatível com a baixa efetividade da resposta terapêutica que costuma ser apresentada como obstáculo à cura efetiva da doença. Revisões acadêmicas à parte, neste instante em que escrevo essas linhas, o fato é que eu não possuo mais nenhuma neoplasia linfoproliferativa em atividade detectável; e isso é uma grande vitória e uma grande graça. É o melhor e mais animador dos mundos, dado o meu quadro original.

O que acontece agora? Entro em “manutenção”, como se costuma chamar: uma dose de Rituximab a cada 60 dias pelos próximos dois anos, para evitar a recidiva. Sem dúvidas é bastante chato, mas é incomparavelmente melhor do que os ciclos de R-CHOP a cada 21 dias que eu vinha tomando desde o Ano-Novo. Os anticorpos monoclonais não são tão agressivos quanto as outras drogas quimioterápicas; entre outras coisas, minha imunidade não deve baixar, por exemplo. De agora em diante, posso paulatinamente me desvencilhar dos cuidados dos quais me cerquei nos últimos meses e dos problemas menores cuja solução protelei para depois da quimio: largar os antibióticos preventivos, reavaliar a trombose, consultar-me com a endocrinologista para fazer o acompanhamento da minha antiga disfunção tireoidiana – saudades dos tempos em que os meus únicos problemas de saúde eram a levotiroxina matinal! Como é saudável ter as coisas em perspectiva. Nunca vou cansar de dizer o quanto a perda de algo precioso é capaz de nos tornar mais gratos pelo que já tínhamos e a que não dávamos tanto valor assim. Oxalá todos o soubessem.

De agora em diante, posso voltar ao normal. Já venho voltando: o meu quadro clínico geral está ótimo, como atestam todas as pessoas que convivem comigo, em casa e na vizinhança, no trabalho e na faculdade: meu aspecto é muito melhor, assim como minha disposição. Perdi o semblante pálido e cadavérico que adquirira nos últimos tempos: minha aparência é excelente. Os exames corroboram o que se percebe exteriormente. À guisa de exemplo, segue abaixo o laudo do Raio-X que tirei ontem mesmo: é a primeira vez, desde dezembro, que nele não aparecem palavras como “derrame pleural”, “atelectasia” ou “seios costofrênicos obliterados”. É verdadeiramente um troféu.

raio-x

De agora em diante, a vida pode voltar a seguir. Ainda sob a sombra ameaçadora da doença insidiosa, é verdade: mas pode seguir. A nossa vida nessa terra não é um céu perpetuamente sem nuvens, mas sim a possibilidade de caminhar mesmo quando o tempo está ruim. E, definitivamente, o tempo agora está muito melhor do que nos últimos meses. Ainda não são os prados e campinas verdejantes e a estrada diante de mim ainda se apresenta bastante escarpada; mas, como escrevi outro dia no Facebook, daqui do alto onde ora me encontro já posso olhar orgulhoso para o caminho percorrido e dizer sem medo de engano: veni, vidi, vici. É admirável e animador. É gratificante e pleno de esperança. O horizonte alarga-se novamente. O futuro volta a acenar luminoso e promissor.

Agradeço de todo o coração a todas as pessoas que estiveram comigo ao longo de toda essa luta. Aos parentes e amigos e mais próximos, aos colegas de trabalho e aos novos amigos da Faculdade, aos vizinhos e aos amigos mais distantes, aos desconhecidos com os quais tive a oportunidade de travar contato, aos médicos e enfermeiras que cuidaram de mim: o momento que estou vivendo agora é devido à dedicação de todos vocês, e a vitória ora alcançada é fruto da generosidade da cada um. Que o bom Deus lhes recompense em abundância, mais e melhor do que me permitem as minhas misérias e indigências, é o que sinceramente desejo. Muitíssimo obrigado por tudo.

Uma nova fase da vida se inicia. Vou continuar precisando de todos. Até aqui tem me ajudado o Senhor; daqui em diante Ele há de me continuar auxiliando. Até aqui, agradeço-Lhe por tudo; peço-Lhe perdão pelo (tanto!) que desperdicei desse tempo de graças, e suplico-Lhe que me ajude a bem viver dora em diante. Doravante, viver melhor: para outra coisa não valeria a pena ter passado por tudo pelo que passei. Há agora uma vida nova para mim, que cumpre ser bem vivida, que deve ser aproveitada. Aux armes, ao combate, à guerra. À cruz. À glória!

[OFF] Nota de Falecimento

Não vi, de manhã, as manchetes dos jornais locais noticiando um «Médico (…) morto a tiros na BR-101». Só quase à hora do almoço recebi a ligação da minha pneumologista, ainda chocada, com a notícia de que Artur morrera.

– Que Artur, o meu cirurgião torácico?!
– Foi, ele saiu do Português ontem à noite e depois ninguém sabe o que aconteceu.

Só depois eu entrei na internet e fiquei sabendo dos detalhes. Vários tiros de pistola; carteira roubada; carro encontrado queimado em outro lugar, distante do corpo. Uma verdadeira tragédia. Não se sabe ainda ao certo o que aconteceu.

artur-azevedo

Foi Sandra quem me apresentou Artur quando, ainda em dezembro, eu cheguei no hospital completamente dispnéico. Ele ia drenar o meu líquido acumulado na pleura. Só o vi pessoalmente já no bloco cirúrgico: jovem e sorridente, explicou-me o que ia fazer e esteve conversando comigo durante todo o procedimento (a toracocentese a gente faz apenas com anestesia local). Pessoa agradabilíssima.

Em janeiro eu tive que me submeter a uma segunda drenagem. De novo Artur esteve comigo, e é a última lembrança que eu tenho dele. Dessa vez, dos dois lados das costas, a mini-cirurgia foi feita no próprio apartamento onde eu estava internado. Conversávamos sobre as nossas profissões; ao saber que eu trabalhava com informática, ele me saiu com não lembro qual chiste de computação. Acho que foi «a informática surgiu para resolver os problemas que antes dela não existiam», ou coisa parecida. Eu disse que ia contar também algumas anedotas sobre médicos, mas só depois que ele fechasse as minhas costas. Rimos. Não esperei tanto e soltei, de memória, aquela quadra de Bocage (acho que é de Bocage):

Aqui jaz um homem rico,
nessa rica sepultura.
Escapava da moléstia,
se não morresse da cura.

Ele riu a plenos pulmões. Ainda conversamos um pouco até eu começar a ficar tonto e ele decidir encerrar o procedimento, após três litros drenados. Deitei e fui descansar; depois disso não me lembro se voltei a me encontrar com ele, casualmente pelos corredores, ou n’alguma visita de rotina. Mas essa foi a última vez – disso tenho certeza – em que conversamos mais demoradamente.

Todos os dias, no espelho, ainda vejo dos dois lados das costas as pequenas marcas dos furos das duas drenagens às quais me submeti; e, respirando incomparavelmente melhor, ainda me lembro dos momentos angustiantes dos pulmões obliterados. Artur muito me ajudou para que eu chegasse até aqui, e é estranho; agora não me lembro se eu o agradeci devidamente, e me bate uma profunda tristeza por ele não ter podido acompanhar o desfecho do meu caso ao qual se dedicou desde o começo. Tenho ainda no meu corpo as marcas do seu trabalho médico, e ele não está mais aqui para se orgulhar dos frutos que me proporcionou. As minúsculas cicatrizes duraram mais do que o homem que as produziu. É assustador; somos mesmo pó e nada.

Artur tinha quase a minha idade: 35 anos. Deixa uma esposa e um filho pequeno. Aos que por aqui passarem, peço que rezem uma Ave-Maria por ele e pela sua família; que o Bom Deus leve em conta a dívida de gratidão que eu tenho para com ele, e que o possa recompensar por toda a atenção que dedicou a mim e à minha família nos piores momentos do meu câncer. Não sei por quê, vêm-me à mente agora duas estrofes de Augusto dos Anjos, escritas pelo poeta paraibano – conterrâneo do Dr. Artur – a um seu amigo falecido. A última delas é assim:

A água quieta do Tejo te abençoa.
Tu representas toda essa Lisboa
De glórias quase sobrenaturais,
Apenas com uma diferença triste,
Com a diferença que Lisboa existe
E tu, amigo, não existes mais!

E aqui existem coisas ainda muito mais perecíveis do que Lisboa – este próprio convalescente que escreve estas linhas, as ainda mais efêmeras cicatrizes que Artur legou às minhas costas -, e o jovem cirurgião não existe mais…! É muito triste. Só não posso concordar em absoluto com o niilismo do controverso poeta. Entendo-lhe a dor, sem dúvidas, mas vejo-a em perspectiva: Artur pode não estar mais entre nós, mas ainda existe, distante daqui; e rezo para que o Bom Deus lhe seja propício e o faça receber, lá, o meu preito de gratidão e minhas preces de sufrágio. Hoje é Treze de Maio, dia de Nossa Senhora de Fátima; que a Senhora do Céu possa valer-lhe e abrir-lhe as portas à Jerusalém Celeste.

Requiem aeternam dona ei, Domine,
– et lux perpetua luceat ei.

Requiescat in Pace,
– amen.

[OFF] Eu, com câncer (X): Eu já cheguei até aqui

A maior parte dos meus leitores já sabe que eu tive a honra de passar o último Tríduo Santo em tratamento de Quimioterapia. Na tarde da Quinta-Feira eu estava na clínica hematológica, de onde saí ao cair da noite; pude, assim, passar os últimos dias da Semana Santa sob os efeitos da medicação contra o câncer.

A melhor Quaresma da minha vida – iniciada com uma QT no dia seguinte à Quarta-Feira de Cinzas, encerrada com outra QT na Quinta-Feira Santa… – chegava assim ao seu término. Tenho medo de não a ter aproveitado tanto quanto poderia; que Deus tenha misericórdia das minhas muitas limitações e fraquezas. Mas sou ao mesmo tempo grato e confiante pelo tempo que me foi concedido. Não é sempre que nos vêm ventos favoráveis à santificação e a penitência; quando eles nos vêm, é preciso pois aproveitá-los.

Será que os aproveitei bem…? É difícil se furtar ao exame de consciência. Tenho aquele problema (sobre o qual já devo ter falado aqui) de, às vezes, não saber ao certo se estou sendo muito rigoroso ou muito condescendente comigo mesmo. Há decerto muito espaço entre o escrúpulo e a lassidão; mas, em se tratando da nossa vida espiritual, às vezes parece que esse espaço é mínimo e muito difícil de nele se equilibrar! Ó almas que se dilaceram entre o reclamar muito e o aceitar demais, eu vos entendo. Isso não é um problema exclusivamente espiritual. Apenas adquire contornos mais vívidos quando é encarado sob o prisma da nossa salvação ou danação eterna.

Quais as notícias que tenho para dar? Em dezembro, a minha hematologista prescreveu-me um tratamento composto de seis ciclos de quimioterapia (R-CHOP). E na quinta-feira passada eu tomei a sexta dose. Cheguei até aqui; graças ao bom Deus, eu cheguei até aqui. E cheguei muito bem: não tive nenhuma doença oportunista ao longo desses quatro meses em que estou em tratamento, a minha imunidade somente uma vez baixou para níveis preocupantes, o meu hemograma sempre esteve bom, a minha alimentação, idem, meus rins mantiveram-se funcionando. O maior contratempo foi mesmo a trombose que sigo tratando. Já é tempo de se perguntar: e agora?

E agora… vamos precisar ver. Na próxima semana farei outra tomografia com contraste do tórax e do abdômen. A partir dela verei a minha ascite, o meu derrame pleural e os meus linfonodos; se isso ainda existe e em que medida. Com base nisso é que será refeito o meu prognóstico e serão determinados os próximos passos.

Quais as possibilidades? Na mais otimista, não tenho mais nada. Sim, é possível. Se isso acontecer, entro na fase de manutenção (com não sei quantas doses de Rituximab para prevenir a recidiva), e depois é só monitorar pelos próximos anos. E aí, com um pouco de sorte, eu termino a segunda graduação em 2020 com a mesma expectativa de vida que possuía quando me formei pela primeira vez. É o que todos esperamos.

Mas pode ser, ao contrário, que ainda haja alguma coisa. Aí tudo se complica e tudo depende. Então eu posso tomar mais dois ciclos de QT (completando oito, ao invés dos seis originalmente previstos). Ou posso iniciar um outro ciclo de quimioterapia, com seis ou oito ciclos (ou outro número qualquer, sei lá). Posso tomar o mesmo R-CHOP ou iniciar outro protocolo. Ou qualquer outra coisa. Tudo isso é também possível.

O que será, sabe-o Deus. De qualquer modo, eu já cheguei até aqui. O futuro ainda é incerto; mas qual o futuro que se pode dizer “certo” nessa vida? Volto a agradecer a todos os que me acompanham e perguntam notícias, que me dedicam as suas orações e a sua torcida, a todos enfim os que estão caminhando comigo nesses últimos meses com muito mais dedicação e amor do que eu mereço: e peço que fiquem comigo ainda mais um pouco! Keep praying, que ainda preciso de orações. Foram alcançadas, sem dúvidas, vitórias espetaculares nessa minha luta; recebi, indiscutivelmente, graças extraordinárias durante esse tempo. Mas, agora como há quatro meses, ainda sou um pecador miserável que suplica a caridade de todos vocês.

Cheguei aqui: Deo Gratias! Vamos em frente. Os próximos passos, não sei ainda quais serão. Mas sei que quero caminhá-los como aprouver ao Bom Deus. De fronte erguida, como tenho feito até aqui. Aliás, melhor do que tenho feito até aqui. Sim, é o que quero. É o mínimo que posso fazer.

[OFF] Eu, com câncer (IX): as últimas boas notícias

Tive na última quinta-feira uma agradável visita à minha pneumologista. Fazia quase um mês que eu não batia nenhum raio-x do pulmão e, portanto, que eu não acompanhava clinicamente a evolução do meu querido derrame pleural. Já estava em tempo de fazer um check-up.

É incrível a capacidade humana de adaptação: a gente se acostuma. Tenho um cateter subcutâneo no tórax, do lado direito, que me impede, por exemplo, de deitar de bruços. Desde há muito apenas durmo de papo para cima ou no máximo de lado, e sinceramente não me faz mais falta. Poder dormir já é motivo suficiente para se dar graças a Deus. O resto é luxo.

Tinha que fazer uma análise mais clínica dos meus pulmões, eu dizia. Do ponto de vista dos sintomas, eu não tinha do que me queixar já há algumas semanas. Não respiro como atleta e ainda não posso voltar a fazer atividades físicas, mas é claro que eu percebia conseguir encher os pulmões e respirar fundo, e – principalmente – percebia que não estava mais sufocando. Não precisei mais voltar às pressas e dispnéico à emergência do hospital. Se me era difícil dizer se estava de fato melhorando, eu tinha pelo menos a certeza de que, piorando, não estava.

Abandonara já há alguns dias o travesseiro elevado, já contei aqui. Dormia na horizontal. Com o passar dos dias, a posição não se me foi tornando incômoda, como soía acontecer no início do tratamento… em suma, fui a uma consulta na semana passada, no décimo-quinto dia do ciclo de QT, e não tinha queixas a fazer à doutora. Ela pediu a radiografia. E ficou muito feliz quando viu o resultado.

O líquido pleural acumulado reduzira significativamente. Ela pôs lado-a-lado a imagem atual com uma que eu tirara numa das vezes em que cheguei pior no hospital, e o contraste entre ambas era impressionante. Viam-se enfim pulmões, pulmões límpidos, cheios, senhores do seu espaço. Após olhar para a radiografia e me auscultar, sentenciou: para ela, clinicamente, não havia mais derrame do lado direito, somente à esquerda. E mesmo o da esquerda estava muito menor do que eu já tivera em qualquer um dos lados.

Foi decerto uma alegria. Os médicos, já contei aqui, haviam dito unanimemente, ainda em dezembro, que o meu derrame pleural era decorrente do linfoma, por conta dos gânglios aumentados da região do mediastino, e que neste caso ele cederia rapidamente à medicação quimioterápica. Nada aconteceu nos primeiros ciclos. Já no terceiro o derrame parara de piorar, eu percebera, mas foi necessário aguardar a quarta aplicação de QT para que se pudesse observar uma verdadeira melhora. Mas graças a Deus ela chegou.

Ainda conversamos um pouco. Minha médica contou-me de um seu paciente, um rapaz, André de cujo sobrenome esqueci, com o qual ela estava preocupada. André tem alguma doença pulmonar, tuberculose ou pneumonia, e estava simultaneamente com uma disfunção hepática que a preocupara. Ele tinha demorado para lhe levar os exames, o que agravara sua situação. Eu entendo André; se eu não tivesse ficado internado em dezembro, provavelmente não faria os exames todos com o denodo que os meus médicos me devotaram durante o tempo que passei no hospital. A gente não quer estar doente, e tende a não acreditar que está doente; é comum fazer pouco caso da própria saúde…

Sandra – é o nome da minha pneumologista – pediu orações pelo André, pedido que eu refaço aqui aos que me lêem e acompanham minha caminhada. Ficar doente é ter os olhos abertos a uma realidade que antes ignorávamos; quando a gente passa a freqüentar muito hospitais, percebemos que há mais doentes no mundo do que gostaríamos. Que a Santíssima Virgem, Aquela que é Salus Infirmorum, não cesse jamais de olhar por nós.

Domingo último, o meu hemograma revelou que a minha imunidade enfim baixara. Ele atravessou incólume o terceiro ciclo de QT, e resistiu bravamente até quase aos umbrais do quinto; mas terminou cedendo. Três mil e poucos leucócitos, um pouco abaixo do limite inferior de 3500 que se costuma tomar por referência. Comecei a tomar o Granulokine; amanhã tomo a terceira e última dose, e no dia seguinte refaço os exames. A julgar pela minha experiência anterior com a droga, na quinta-feira a contagem de glóbulos brancos estará exuberante.

E precisa estar. Quinta-feira é a minha quinta QT. Só faltam mais duas; o sistema imunológico precisa suportar ainda mais um pouco. Já cheguei até aqui, e repito o que sempre digo às pessoas com quem me encontro: keep praying! Continuai rezando! Afinal, o que seria de nós – falou-me dia desses uma amiga a quem eu contava da importância das orações que eu recebia – se não tivéssemos quem por nós rezasse? Eu não passo de um pecador miserável e ingrato. A minha sorte é que a caridade alheia – a vossa caridade! – vem suprir as lacunas das minhas misérias e fraquezas. Que o bom Deus vos recompense abundantemente; não cesso de o dizer, porque a minha dívida para convosco só aumenta a cada dia.

jorge-palmface

Quinto ciclo! Mais um pouco de quimioterápicos, mais uma dose de náuseas e dores de cabeça, mais uma rodada de remédios amargos, de punções e curativos, de tontura e fraqueza… mais um pouco de fel a sorver até o fim. Que eu entorne o cálice com o rosto sereno, Senhor: por um pouco menos de amargura no mundo. E em breve o mel nunca terá sido tão doce aos meus lábios experimentados no amargo. E em breve, muito em breve, o mundo será de uma beleza arrebatadora. E o sorriso meio escondido que se desenha em meus lábios hoje já anuncia o que está pra chegar. Em breve!

[OFF] Eu, com câncer (VIII): #MeditandoComJuelho

No último sábado, fui convidado a fazer uma meditação no Retiro Mensal dos Membros do Movimento Regnum Christi, cujo tema era: Porque amo a Cristo, abraço a minha cruz. Agradeço imensamente a oportunidade e a confiança em mim depositada; alegra-me bastante poder ser útil de alguma maneira, mesmo com essas minhas limitações circunstanciais que hoje se somam às que já me são próprias por vida.

meditandocomjuelho

A palestra foi gravada, sem edições e sem revisão. Disponibilizo-a aqui, em formato .mp3 e em vídeo do Youtube, na esperança de que possa servir àquelas pessoas que não tiveram a oportunidade de presenciá-la neste final de semana. Que Deus nos ajude a amá-Lo mais. Amá-Lo sempre e cada vez mais.

Youtube:

Áudio:

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[OFF] Eu, com câncer (VII): Ultrapassando a metade do caminho

Faz quase um mês do meu último off-topic sobre meu linfoma. Dizem que as notícias ruins chegam a galope solto, e há uma certa verdade na sabedoria popular: estas últimas semanas foram as que eu passei de maneira mais tranquila. A falta de notícias aqui no Deus lo Vult! era reflexo da relativa calmaria na qual me encontrava nesses dias.

Fiz meu terceiro ciclo de QT no dia 10 de fevereiro; na véspera tivera alta do hospital para tomar Clexane em casa, uma vez que meu INR ainda não estava estabilizado e eu precisava fazer a quimio na clínica (que não era no hospital). Os dias seguintes foram um misto de tensão e de agradáveis surpresas.

Eu já percebera que os dias imediatamente após as sessões de quimioterapia eram os melhores. Não sei se por conta dos corticóides que eu sigo tomando por uma semana ou se por conta do efeito das próprias drogas recém-injetadas no corpo, o fato é que os incômodos próprios da QT – os enjôos, as indisposições, as dores de cabeça – são leves e duram pouco. Com dois ou três dias eu já me sinto novo e revigorado.

Em contrapartida, o período entre quimios é o mais tenso. Nos dois primeiros ciclos, era exatamente aí – lá pelo décimo, décimo-quinto dia em diante – que o bem-estar começava a ceder espaço às crises. Principalmente a dispnéia, a temida e angustiante dispnéia provocada pelo enchimento dos pulmões. Eu nunca soube ao certo se eles esvaziavam para depois voltar a encher ou se eu adquiria alguma capacidade de respirar melhor mesmo com poucos pulmões nos primeiros dias pós-quimio, capacidade que era paulatinamente perdida com o avançar dos dias. Não sei a explicação. Sei que, sempre, infalivelmente, eu me sentia bem logo depois de um ciclo de QT e mal imediatamente antes do ciclo seguinte. E era este o meu temor.

Graças a Deus, os meus temores se mostraram infundados. Ontem tomei a quarta dose da QT; o período entre ela e a anterior foi até um pouco estendido por conta do Carnaval no meio do caminho; e, no entanto, em nenhum momento ao longo das últimas semanas a minha respiração me incomodou como até então vinha fazendo, a ponto de me exigir internamentos de urgência com uso de ventilação não-invasiva para que eu fugisse ao sufocamento.

Passei as últimas quatro semanas em casa, o que é um feito inédito desde que pus pela primeira vez os pés no hospital em meados de dezembro. Na última segunda-feira de fevereiro voltei à minha querida pneumologista para uma avaliação; o raio-x mostrou os pulmões cheios ainda até a metade, mas melhores do que a última chapa que eu possuía no meu histórico. De lá para cá eles certamente não pioraram; não cheguei a respirar pior do que naquela semana anterior ao Carnaval. E já lá eu ainda respirava.

Confessei-lhe (à minha médica) que eu morria de medo de que o derrame pleural aumentasse de novo, que eu ficava em casa o tempo inteiro repetindo os exercícios de fisioterapia (respirar em dois/três tempos e soltar, forçando a tosse ou não, prendendo a respiração ou não, etc.) que eu decorara enquanto estive internado. Ela ficou muito animada com os resultados, e mais ainda eu: o fato é que pela primeira vez eu não voltava a sufocar sozinho com o passar do tempo. E, como eu disse ainda antes do terceiro ciclo, com a respiração do jeito que estava eu suportava os meses que me separavam do fim do tratamento.

Passei em casa as últimas semanas, sem precisar voltar ao hospital, dormindo a cada noite com medo de acordar de madrugada sonhando afogar-me – mas sendo a cada dia surpreendido pela manhã a me despertar suavemente. Tive um único “susto” que me motivou uma ida à emergência do hospital: foi um pescoço dolorido, que imaginei ser [outr]a trombose, mas o vascular do plantão rapidamente me tranquilizou e me disse que era certamente algo muscular, para o qual me receitou analgésicos (que eu não tomei), e que melhorou por completo quando voltei a dormir na horizontal, abrindo mão do travesseiro em forma de triângulo no qual estava dormindo desde há muito tempo para ajudar a minha respiração. Sim, pus de lado até o decúbito elevado e, mesmo assim, consigo respirar à noite tranquilamente. É extraordinário.

Minha pneumologista autorizou-me a voltar aos poucos ao trabalho, coisa que fiz na semana passada e que me fez muito bem. Rever as pessoas, conversar, movimentar-me com mais freqüência (disse a alguém que uma única ida da minha sala ao banheiro me fazia caminhar mais do que um dia inteiro que eu passasse trancado no apartamento)… tudo isso ajudou bastante na minha convalescença, tenho certeza. Se ao final do dia eu às vezes estava cansado e um pouco ofegante, após descansar eu me sentia respirando até melhor. Não sou um atleta, mas consigo de novo levar uma vida relativamente normal. Louvado seja Deus.

Não sei se as minhas cruzes estão se tornando menores ou se estou simplesmente me habituando melhor a elas; sei que escrevo essas linhas melhor do que escrevi algumas passadas. Já se passou mais da metade do tratamento inicialmente definido; já fiz quatro dos seis ciclos que compunham o prognóstico inicial. Agradeço a Deus por me ter sustentado até aqui; sustentar-me-á, tenho certeza, os passos que ainda faltam. Não sei ao certo quais serão, mas sei que os quero, da forma como Deus os tiver reservado para mim. E neste caminho volto a agradecer e a continuar pedindo as orações dos amigos, tantas, que estão sendo de tamanha importância para mim ao longo dessa fase da minha vida. Não me canso de repetir isso, porque é verdade. Não existe nenhuma outra coisa que possa explicar a enorme distância entre a minha relativa serenidade diante desta situação e a vergonhosa pequenez das minhas virtudes particulares.

Concluí ontem o quarto ciclo de QT, como já disse; ultrapassei já a metade do caminho. Espero que até então ele tenha servido à glória de Deus e à minha santificação particular; rezo para que daqui em diante os meus dias possam santificar-me e glorificar a Deus ainda mais. Porque o que pior poderia ficar de tudo isso seria o desperdício do tempo favorável, o sofrimento vazio, as cruzes jogadas foras. Se é para demorar-se um pouco em prantos neste Vale de Lágrimas, que isso ao menos seja proveitoso para os nossos companheiros de infortúnio. Outra coisa eu nunca quis, e não vai ser agora que passarei a querer.

Only two more to go. Vamos em frente. Com a graça de Deus, vamos em frente. De cabeça erguida, e com um sorriso nos lábios. Tenho mais do que mereço. Na verdade, sempre estive melhor do que eu merecia. Obrigado, Senhor.

[OFF] Eu, com câncer (VI): o apoio dos amigos

As Escrituras Sagradas dizem que quem tem um amigo fiel, encontrou um tesouro. Como comentei algures, a expressão é exata: trata-se de um tesouro encontrado, não de uma coisa que você conquiste ou mereça. Um amigo é uma graça no sentido mais literal da palavra: um presente que lhe é concedido, uma dádiva que você recebe, um favor que lhe é feito e pelo qual você não pode senão sentir-se grato.

Eu não mereço os amigos que eu tenho e nem tenho palavras para expressar a minha gratidão pelo que eles fizeram e continuam fazendo por mim. A foto abaixo foi tirada no hospital, sábado último, em uma visita inesperada e emocionante que recebi.

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Como disse um deles, “cada um raspou o que podia entre o que a esposa/noiva/namorada deixou e a atividade profissional permitia”. Cabelo, barba e bigode. Simplesmente se juntaram na casa de um deles, rabiscaram frases de apoio num fundo de papelão e deram fim aos seus cabelos e demais pelos faciais. Com o gesto de amizade, abriram mão de mais cabelos do que a quimioterapia me tirou. Registraram tudo, claro. Depois eu pude ver as fotos, algumas das quais (as que encontrei no Facebook) vão abaixo. Vejam que coisa extraordinária. Eu não fazia a menor idéia de nada disso.

Volto a dizer que não tenho palavras para expressar o quanto fiquei tocado pelo gesto de carinho e consideração. Vejo algumas pessoas comentarem sobre o quanto estão aprendendo comigo ao acompanhar essa minha saga ou como é admirável a minha postura diante do câncer e coisas afins. Honestamente, não me vejo fazendo nada a não ser a minha obrigação. Tenho até medo de estar – Deus me livre! – desperdiçando este tempo favorável que o Bom Deus me concedeu para a minha santificação e para o bem de toda a Igreja, e este é um tema recorrente em minhas orações.

Nada há de heróico em mim ou em minhas atitudes. Os que vêem as postagens do Deus lo Vult! ou as atualizações de status do Facebook, na verdade, estão vendo somente uma parte da história; como canta a Florbela, “as lágrimas que choro, branca e calma, / ninguém as vê brotar de dentro d’alma! / Ninguém as vê cair dentro de mim!”. Ou, como diz o Erasmo Carlos, naqueles versos pelos quais sempre tive tanta afeição: “sempre me dizem, quando fico sério: / ‘ele é um homem e entende tudo’. / Por dentro, com a alma atarantada, / sou uma criança, não entendo nada”.

Sim, na verdade eu não passo de um jovem mimado e cheio de direitos como tantos que existem por aí. Possivelmente até pior do que muitos que existem por aí. É claro que eu não tenho condição alguma de enfrentar uma doença grave como um câncer e nem muitíssimo menos de ser exemplo para ninguém nessa situação. Mas existe um testemunho que eu posso oferecer:

O valor dos amigos. Se algumas vezes eu pareço estar de pé, é porque sou sustentado por um exército; se vez por outra pareço elevar-me alto, é porque para o alto sou lançado por uma multidão. Se algo merece ser conhecido nessa história toda, é a importância das orações de intercessão. Caso um dia alguém duvide da eficácia das orações, que ponha os olhos sobre essas linhas e dê um pouco de crédito a quem é um testemunho vivo dos frutos que rezando se podem arrancar a Deus. E caso alguém se admire com alguma coisa que encontrar por aqui, que saiba serem suas orações diretamente responsáveis por minhas atitudes diante da minha doença. A todos os que me acompanham: que Deus lhes recompense! Só Ele sabe o bem que vocês me têm feito.

Eu não mereço os amigos que tenho, como eu disse acima. E tenho certeza de que apenas sou o que sou por conta deles; porque eles não desistem de mim, a despeito de minhas muitas fraquezas, e porque têm a caridade de pedir a Deus em meu favor, mesmo quando eu próprio disso me esqueço. Já disse que tenho uma dívida de gratidão impagável (e que só faz aumentar…) para com as pessoas que vêm rezando por mim desde dezembro, não somente os que rasparam a cabeça em solidariedade a mim como também a multidão invisível e desconhecida de pessoas que por acaso ouvem a minha história e se dignam oferecer uma Ave-Maria em favor de um enfermo desconhecido. Se existe alguma força em mim, é essa. Se existe alguma lição a ser aprendida aqui, é a do valor da oração do próximo. Deus não deixa de superar as nossas expectativas.

Meus queridos amigos, ex imo cordemuito obrigado! Continuem rezando. Escrevo já de casa. Terminei hoje a terceira sessão de quimioterapia, e estou radiante. Meio caminho andado. A vida é sempre surpreendente. As coisas pioram apenas para poder melhorar. Graças a Deus eu já vivi um pouco, e já aprendi a antever o desabrochar da primavera nas folhas secas que o outono lança ao chão.

[OFF] Eu, com câncer (V): contratempos e imprevistos

Faz mais de uma semana que não escrevo nada. Há uma razão: faz mais de uma semana que estou internado no hospital, contra todos os prognósticos que eu tinha para esses dias. Dante já dissera com muita propriedade «ché saetta previsa vien più lenta» (Paradiso XVII) e, em contrapartida, as flechadas que nos chegam de supetão, pelas costas, são as piores. Mas a vida é feita de batalhas e lutar significa sobreviver às saraivadas que nos chegam de todos os lados, é claro. Se fosse de outra maneira, não poderíamos pretender estar lutando a sério.

No dia 26 de janeiro último, domingo, de alta recebida na noite da véspera, eu escrevi um relato aqui no Deus lo Vult! sobre a semana que passara. No dia 27 de janeiro, segunda-feira, pela manhã, eu voltava pra emergência do hospital. Meu braço direito doía bastante e estava inchado. O cirurgião vascular da emergência cardiológica nem precisou do exame para diagnosticar: “é uma trombose venosa profunda”. O ultrassom confirmou em seguida. Precisei me internar mais uma vez.

Inacreditável: uma trombose! Não tinha – ao menos não diretamente – a ver com o câncer ou com a quimioterapia, não tinha a ver com os meus problemas respiratórios que me haviam deixado quase uma semana no hospital, não tinha a ver com nada. Simplesmente acontece: meu corpo não reagiu bem ao port-a-cath que eu implantara para a QT. Um corpo estranho no organismo, mais o próprio câncer, mais tratamento quimioterápico… eram três fatores de risco, me disse o médico. Acontece.

Anticoagulantes de emergência – TVP causa embolia pulmonar, eu sei – e internamento para estragar a capacidade do meu sangue de coagular a contento. Há uma índice que mede essas coisas: INR, International Normalized Ratio, cujo valor padrão é – como o próprio nome diz – 1. O meu precisa ficar entre 2 e 3 para que seja seguro me deixar somente à base dos anticoagulantes orais: antes disso, uma injeçãozinha na barriga a cada 12 horas. Antes disso, cuidados hospitalares. Antes disso, fico ainda um pouco por aqui.

Aproveitei a estadia no hospital para verificar os pulmões. Cheios ambos, o direito mais do que o esquerdo. O raio-x, aliás, estava muito parecido com o que tirei no dia em que fiz a segunda sessão de quimioterapia. Estremeço. Não sei dizer se eles voltaram a encher ou se simplesmente não diminuíram: não bati uma radiografia torácica na alta da semana passada e, portanto, não sei dizer exatamente em quais condições meus pulmões saíram do hospital. De uma forma ou de outra, parece-me indiscutível que este derrame pleural não está melhorando, ou só o está fazendo a conta-gotas.

Volto à máscara do Jason: meus pneumologistas estão aproveitando a minha estadia no hospital para tentar fazer o derrame ceder à força de fisioterapia respiratória. A julgar pelas três ou quatro chapas de raio-x que bati em seqüência da semana passada pra cá, não está resolvendo: mas pelo menos o derrame também não está aumentando, e isso talvez já seja motivo mais do que suficiente para que eu dê graças a Deus. Ainda respiro; não tão bem como em situações normais, mas muito melhor do que na semana em que subi às pressas para a Semi-Intensiva. Ainda respiro, e daqui a pouco – menos de uma semana – eu vou receber quimioterapia de novo…

[Um parêntese. Aqui as coisas começam a ficar complicadas. Era esperado que esse derrame começasse a ceder já no primeiro ciclo de QT, no máximo no segundo; estamos a seis dias do terceiro, e ele continua tão forte que a minha pneumologista não hesitou em descrevê-lo como um «derrame pleural bilateral recidivante e não responsivo a QT» num laudo médico em que pede mais fisioterapia.

Meu cirurgião torácico acha que meu caso é cirúrgico: uma decorticação (ou coisa assim) resolveria em definitivo este problema. Acontece que a tal decorticação consiste – grosso modo – em arrancar [um pedaço d]a pleura e, aderindo o pulmão diretamente à parede torácica, destruir a cavidade pleural, impedindo assim (de uma vez por todas, óbvio) o acúmulo de líquido nela. Soa-me mais ou menos como arrancar um dedo fora e depois dizer, com ares de eureka, que com isso ele definitivamente vai deixar de doer.

Não fiquei muito animado com a cirurgia. Sou cioso da minha pleura: por alguma razão Deus há-de a ter colocado lá. Gostaria sinceramente de preservá-la, e por isso estou apostando na fisioterapia respiratória e no combate à doença de base, ainda que isso seja lento e ainda que me obrigue a respirar mal a maior parte do tempo.]

Ontem fiz uma tomografia de controle, para comparar com a que realizei antes de iniciar o tratamento. Não tenho acesso às imagens (e nem sei se saberia interpretá-las), mas pela internet consigo olhar os laudos; a julgar pelas descrições, as coisas parecem ter melhorado. Preciso esperar ainda – é claro – o parecer médico, mas esses resultados preliminares são já animadores. Deo Gratias, e obrigado a todos os que estiveram e ainda estão rezando por mim.

Já estou há mais de uma semana aqui no hospital. O meu braço trombosado melhorou substancialmente: dói muito menos, e já está quase tão fino quanto o outro. A contagem de glóbulos brancos (esqueci de dizer: cheguei aqui com eles quase zerados, tive que ser colocado em isolamento reverso nos primeiros dias) está de novo em níveis normais. O derrame pleural está sob controle. Devo ter alta nos próximos dias.

Quase escrevo “espero não ter que voltar de novo”… Mas aprendi que essa vida de paciente é uma caixinha de surpresas, nem sempre agradáveis. É muito difícil fazer planos mesmo a curto prazo! Só uma coisa não pode faltar: que Deus me conceda sempre a fortaleza necessária para viver esses dias o melhor possível. Como mais de uma pessoa já me disse, é tempo da oração do Horto das Oliveiras. Preciso de humildade para repetir o si possibile est, transeat a me calix iste; e preciso da coragem para acrescentar, sempre, o verumtamen non sicut ego volo, sed sicut tu.

[OFF] Eu, com câncer (IV): os baixos e altos de uma semana enfermiça

Passei uma semana inteira sumido. Fui forçado. Domingo último, 19 de janeiro, escrevia aqui que iniciaria a segunda quimio no dia seguinte; na segunda-feira saí de casa pela manhã, e somente ontem (sábado) à noite consegui pôr de novo os pés no lar que parece ser tão mais doce quanto mais tempo passamos afastados dele.

Os culpados foram os meus pulmões, que por alguma estranha razão não pareciam estar muito dispostos a me ajudar na minha nobre peleja contra a insidiosa enfermidade linfoproliferativa que ora me acomete. Haviam enchido de novo, como eu dissera, e na quarta-feira (15 de janeiro) eu passei por uma segunda toracocentese. Respirei melhor, mas foi por pouco tempo. Já no sábado à noite, acordando de madrugada com a sensação de estar afogando, reconheci os sintomas: Deus, estão voltando a encher. Mas continuei forçando a respiração e com a fisioterapia, que era o que dava pra ser feito afinal de contas.

Na segunda cedo, antes da QT, um raio-x matinal me revela o que eu já antevia: os pulmões estavam todos tomados de novo, ainda piores do que antes de eu os drenar há menos de uma semana! Desanimei, confesso. Mas pus a chapa debaixo do braço e me dirigi à clínica. Tinha que fazer a quimioterapia , uma vez que a simples drenagem claramente não estava dando vencimento.

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Na clínica, conseguiram-me a gentileza de um apartamento: minha sessão ia ser longa. Puncionaram-me o CTI que eu implantara na sexta: a quimioterapia em si foi de uma enorme tranquilidade. Sem náuseas, sem vômitos, sem dores, nada: as horas passavam e o meu único incômodo era a tontura provocada pelo Zofran do início.

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Mas a minha respiração piorava a olhos vistos. Eu não conseguia mais sequer me recostar na cama médica, não importa o quão alta a cabeceira estivesse: a posição completamente vertical era a única que me concedia um mínimo de conforto respiratório.

Lá pelas quatro da tarde, termino os químicos. Penso em voltar pra casa, tentar descansar e avaliar a necessidade de ir ao hospital. O caminho entre a clínica e o carro estacionado na frente dela me faz mudar de idéia: “para o hospital, imediatamente”. Era impossível, qualquer mínimo esforço me fazia ofegar de maneira incontrolável – e Deus sabe como é difícil e angustiante ofegar quando o seu pulmão não expande! Cheguei à emergência e sentei-me numa cadeira de rodas, para não querer sair dela nunca mais enquanto não me aliviassem os pulmões.

Os médicos são prestativos – inclusive a garota da emergência é a mesma que me atendeu naquele longínquo dia de dezembro, quando (inocente…) cheguei no hospital com queixas respiratórias achando que ia ganhar um antibiótico e almoçar em casa, antes de tudo começar… Ela me reconhece. Está com melhor aparência do que da primeira vez: se antes a expressão dela era a de quem estava diante de um moribundo, agora me olhava como a um convalescente promissor. Acalmo-me um pouco.

Ligam-me para os meus médicos. Minha pneumologista diz que ninguém mexe nos meus pulmões, e meu cirurgião torácico promete passar na manhã seguinte (então era de noite) para avaliar o meu caso. Eu, que estava a ponto de parar qualquer sujeito com uma furadeira que encontrasse no caminho para que refizesse os furos ainda mal-cicatrizados das minhas costas, protesto com tanta veemência quanto a minha dispnéia me permite: para isso, é preciso que eu sobreviva até amanhã!

Para encurtar a história: põem-me um pequeno cateter de oxigênio, internam-me num apartamento, fazem-me uma nebulização, chamam a médica de intercorrência e, já perto de meia-noite, decidem me levar para uma unidade semi-intensiva. Lá me apresentam, meio receosos, a solução que encontraram para mim: uma máscara de VNI, “Ventilação Não-Invasiva”, a máscara do Jason, como a chamei assim que a vi, ou do Homem da Máscara de Ferro, só que de plástico.

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Dizem que os pacientes reclamam muito dela. Eu a amei. Foi alívio à primeira vista: após um dia inteiro forçando a minha respiração, aquela máquina respirava por mim. Após horas com baixa saturação de oxigênio, aquela máscara satisfazia as minhas necessidades respiratórias. Após dias com os pulmões curtos na caixa torácica, eles enfim pareciam um pouco mais amplos dentro do peito. Recostei na cama e adormeci, como há muito estava desejando e não conseguia. Máscara do Jason, você me salvou.

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Isso foi na segunda à noite. A partir de então, foram três sessões por dia – manhã, tarde e noite – com a benedetta, pelo menos uma hora a cada vez. Os fisioterapeutas não acreditavam em como eu ficava feliz quando eles vinham com a máscara. Eles provavelmente não são capazes de entender a natureza de minha relação com ela. Ama mais quem mais foi perdoado, como diz o Evangelho, e mutatis mutandis dá mais valor às invenções humanas quem mais lhes obteve os benefícios. Aquela máscara me fizera respirar, e isso era uma dívida insanável. Que Deus abençoe copiosamente o idealizador de tão incompreendida geringonça.

Assim se passou uma semana inteira. E, para minha alegria, o derrame dos meus pulmões baixaram somente à força de VNI, diuréticos e repouso: não precisei fazer nenhuma drenagem. É uma grande e promissora vitória, provavelmente a mais promissora desde que eu comecei o meu tratamento: pela primeira vez eu voltava a respirar sem ter que drenar cirurgicamente o líquido da pleura e, quando o meu derrame pleural esteve pior, ele foi revertido “naturalmente”, com o passar do tempo e o reequilíbrio do organismo, como se esperava para este segundo ciclo de QT. Se toquei o fundo de alguns abismos deprimentes esta semana, também me elevei deles aos píncaros esperançosos do (em vislumbre ao menos) tratamento bem-sucedido. Bendito seja Deus, que me acompanhou às profundezas; louvado seja Ele, que delas me permitiu voltar.

É incrível como as doenças – um amigo mo dizia hoje – têm o condão de abrir os nossos olhos ao valor das coisas banais, que ficam escondidas sob a trivialidade do quotidiano. Acho que nunca antes na vida eu percebera o quanto respirar é maravilhoso. E hoje isso se repete a cada dia, quando percebo o prazer de uma noite dormida na própria cama, de um braço que não está mais dolorido, de um corte já cicatrizado, de um apetite livre dos tentáculos de uma náusea repentina… não dá pra dizer que esta estrada na qual me colocou a Divina Providência seja desejável. Mas também é impossível negar que ela me tenha ensinado coisas valiosas. E, por estas últimas, é também impossível não ser grato.

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Hoje estou em casa, sem queixas maiores que as decorrentes da semana de imobilidade passada numa Unidade de Cuidados Especiais. Não sinto nada da quimio de segunda-feira. Já respiro de maneira excelente, se não ainda com o vigor da plena saúde, ao menos de modo incomparavelmente melhor do que há uma semana, quando escrevi aqui da última vez. Nos próximos dias farei alguns exames de controle, para comparar com os que foram feitos antes do tratamento e aferir-lhe a eficácia. Ainda há muito caminho pela frente, mas por mais este solavanco eu atravessei: obrigado, Senhor. E eis-me aqui! Vamos em frente. Aonde fores. Aonde quiseres me levar.