O patrimônio comum de todos os homens

Está simplesmente antológica a coluna do Carlos Ramalhete de ontem na Gazeta do Povo: invejo a capacidade do articulista de dizer tanto em tão exíguo espaço de jornal! É até difícil selecionar um trecho para citar aqui. Leiam-no lá na íntegra.

O que o Ramalhete faz é classificar as recentes manifestações ocorridas em Brasília (aqui e aqui) como um legítimo grito por liberdade que brota do fundo do peito da natureza humana aviltada por um sem-número de políticas imorais impostas à população brasileira pelos revolucionários que hoje se encontram no poder. E o faz com a sua particular perspicácia, apontando um fato bem óbvio que as práticas fascistas dos que têm voz na mídia se empenham por ocultar: o “fundamentalismo religioso” é o que separa as religiões, e não o que as une. Ora, uma movimentação que reúne em torno de um objetivo comum católicos e espíritas, protestantes e umbandistas, budistas e agnósticos não pode, por definição, ser um ato de fundamentalismo religioso.

Se religiões tão díspares e contraditórias entre si são unânimes em afirmar um determinado valor moral, então é óbvio que a origem deste valor deve ser buscada naquilo que é comum a todos os que o afirmam, e não no que os distingue. O que distingue um protestante de um muçulmano e de um agnóstico é justamente a sua religião e, portanto, não pode ser ela a origem daquele valor moral que estamos buscando. Esta só pode estar naquilo que os une, não no que os separa; e o que os une é a sua natureza humana. O fato de culturas religiosas tão radicalmente irredutíveis entre si afirmarem em uníssono uma mesma coisa exige que o fundamento desta coisa esteja naquilo que transcende as culturas religiosas, naquilo que é comum a todos os homens independente da religião que professem. É este patrimônio comum que está sendo atacado. É por isso que o Carlos afirma com toda a propriedade: «Natureza, não religião».

Os brasileiros começam a se levantar. As pessoas de boa vontade começam a deixar o estado letárgico em que se encontram e já ensaiam dizer em público, em alta voz, que não suportam mais os descalabros dos nossos governantes, as abominações impostas a ferro e fogo pelos poderes públicos. A iniqüidade já foi longe demais, e é do bom povo brasileiro que virá a oposição a ela: do povo ordeiro que por sua própria índole não é afeito a confrontos abertos com a autoridade, mas que não tem mais condições de suportar o vilipêndio da natureza humana praticado pelos nossos governantes, «o caos antinatural que nos vem sendo imposto». Como dizem os franceses, chassez le naturel, il revient au galop: e esta cavalaria por vezes vem de onde menos se espera.

As melhores homilias do Papa Francisco

O Papa Francisco tem feito homilias sem sombra de dúvidas excelentes. Mas, na minha opinião, as suas melhores homilias são as que não se encontram disponíveis no site do Vaticano. Explico: o Papa tem o hábito (que eu absolutamente não sei dizer se era compartilhado pelos seus predecessores) de improvisar breves homilias em todas as missas que ele celebra, mesmo durante os dias de semana, mesmo diante de um grupo pequeno de pessoas. Como elas são feitas de improviso, os órgãos de imprensa da Santa Sé não as recebem previamente e, portanto, não podem divulgar-lhes o conteúdo pelos canais de comunicação oficiais da Igreja. Temos acesso a fragmentos delas somente mediante as testemunhas auriculares dessas celebrações, às quais por vezes os órgãos de imprensa conseguem ter acesso.

Trago três exemplos disso que estou falando; nenhuma das datas abaixo consta no calendário (oficial) das atividades do Santo Padre [p.s.: a homilia do dia 23 de abril está disponível aqui; além disso, o site do Vaticano está disponibilizando uma compilação das meditazioni do Papa Francisco, «a cura de L’Osservatore Romano», que é o que de mais próximo temos dos “textos oficiais” dessas homilias do Papa].

06 de abril de 2013, via Sandro Magister, com tradução do Ecclesia Una, que eu já mencionei en passant aqui: «A fé não se negocia. Esta tentação sempre existiu na história do povo de Deus: cortar um pedaço da fé, ainda que não seja muito. Mas a fé é assim, tal como a recitamos no Credo. É necessário superar a tentação de fazer o que todos fazem, não ser tão, tão rígidos, porque precisamente daí começa um caminho que acaba na apostasia. De fato, quando começamos a destroçar a fé, a negociá-la, a vendê-la à melhor oferta, começamos o caminho da apostasia, da não fidelidade ao Senhor».

23 de abril de 2013, via Agência Ecclesia: «[E]ncontrar Jesus fora da Igreja não é possível (…) [O Papa Paulo VI dizia ser] uma dicotomia absurda querer viver com Jesus sem a Igreja, seguir Jesus fora da Igreja, amar Jesus sem a Igreja. (…) Não se pode acreditar em Jesus sem a Igreja, di-lo o próprio Jesus».

22 de abril de 2013, via Avvenire, com tradução livre minha: «Qualquer um de vocês poderia dizer: ‘Padre, o senhor é um fundamentalista!’. Não, simplesmente é isto que Jesus disse: ‘Eu sou a Porta’, ‘Eu sou o Caminho’ para nos dar a vida. Simplesmente. É uma porta bela, uma porta de amor, é uma porta que não nos engana, não é falsa. Sempre disse a Verdade. Há talvez caminhos mais fáceis, mas são enganosos, não são verdadeiros: são falsos. Somente Jesus é o Caminho».

São somente três exemplos que porventura chegaram-me ao conhecimento; quantos outros não existem, sobre os quais eu não fico sabendo nada? E essas sentenças são bastante significativas para compreendermos o pensamento do Papa: ora, uma homilia oficial é aconselhada, redigida (por vezes através de ghost writers…), revisada, criticada, enviada para o Papa, traduzida, etc.; enquanto que nessas homilias espontâneas nós temos o Papa Francisco falando totalmente por conta própria, de improviso, sem influências (boas ou más) de ninguém!

Por isso, faço coro a este pedido do Rorate Caeli: alguém deveria transcrever essas homilias e colocá-las (sob uma seção menos formal da página do Papa, que fosse) no site do Vaticano! Não se compreende que bem pode advir da divulgação apócrifa das palavras de Sua Santidade, nem tampouco que mal causaria a veiculação integral desses ensinamentos tão belos (e tão atuais) do Bispo de Roma.

P.S.: Atendendo aos nossos pedidos, eis as «Meditazioni del Santo Padre Francesco nelle Messe quotidiane celebrate nella cappella della Domus Sanctae Marthae».