Oxalá tivéssemos as mãos vazias

Muitas pessoas têm muitas visões sobre Nosso Senhor: para uns Ele é um taumaturgo, para outros, um sábio divulgador da regra áurea, uns O vêem ainda como um Rei generoso e providente, e ainda outros O querem um defensor das liberdades individuais. Já eu penso que nada resume tão bem o Cristianismo como a Sexta-Feira Santa, e os homens errariam bem menos acerca de Cristo se se acostumassem a encará-Lo como a Liturgia de hoje O apresenta ao mundo.

Porque a história do dia de hoje nos mostra duras verdades. A primeira e mais óbvia delas é a realidade da nossa maldade, entregando à morte um Homem inocente, preferindo, a Ele, um bandido conhecido e condenado. Naquela turba que pediu a Pilatos a Crucifixão de Cristo todos nós estamos vergonhosamente representados, e isso se trata de um dos pontos mais básicos do Catecismo: Cristo morreu por nós. Dito assim, em palavras curtas, em uma sentença já gasta pelos séculos, a frase parece perder muito de sua verdadeira força de expressão, e é por isso que precisamos ler e reler incontáveis vezes as quatro narrativas da Paixão de Cristo, e é por isso que a Igreja precisa repetir, a cada ano, todo o ritual da Semana Santa: quando se diz que Cristo morreu por nós, o que se quer realmente dizer é que cada um de nós pode e aliás deve se reconhecer naqueles judeus que, hoje, exigiram que o Sangue d’Ele fosse derramado.

Não fosse o suficiente, a nossa ira destrutiva não foi dirigida contra um nosso semelhante: foi contra o Deus Todo-Poderoso, o Criador do Céu e da Terra, Aquele de Quem viemos e sem o Qual nada podemos fazer. Trata-se, assim, de verdadeiro instinto auto-destrutivo: querer matar o Criador é o mesmo que desdenhar da própria Criação, e as Trevas que envolveram o mundo enquanto Cristo agonizava na Cruz somente por muito pouco não tragaram definitivamente todo o Universo. Nunca o mundo esteve tão periclitante quanto naquelas horas terríveis em que Nosso Senhor sufocava no alto do madeiro! Nós morríamos enquanto O matávamos. Aceitávamos lançar sob trevas a terra inteira, contanto que O lançássemos à escuridão do Sepulcro. Trata-se de uma inversão perversa da ética humana: a nossa razão nos manda fazer aos outros o bem que gostaríamos que nos fizessem, mas no Gólgota nos regozijávamos em sofrer o mal que nos satisfazia infligir ao Filho de Deus. Dir-se-ia que de bom grado aceitaríamos até padecer na cruz, contanto que pudéssemos também crucificar a Nosso Senhor inocente.

E essa lógica perversa é o retrato da história humana: nós somos, no fundo, uns animais cujo instinto destrutivo supera até mesmo o de autopreservação. “Chorai por vós mesmas”, disse Cristo enquanto subia o Calvário, “porque, se eles fazem isto ao lenho verde, que acontecerá ao seco?” (Lc 23, 31).

Essa maldade não costuma ser suficientemente compreendida. Não é simplesmente que não valêssemos nada: nós já nada valíamos antes, na época dos Profetas, durante a vida pública de Jesus, até o Domingo de Ramos, vá lá. Com a Paixão de Cristo, no entanto, a nossa situação sofre uma piora inimaginável, porque acrescentamos, ao nada que já somos, a culpa infinita do deicídio. Oxalá estivéssemos de mãos vazias! Hoje elas estão cheias de sangue — e o sangue dos justos clama aos Céus vingança e atrai a ira de Deus.

Mas ao lado da nossa perversidade está o amor incondicional de Deus — amor usque ad mortem, até a Cruz. É um paradoxo notável. É precisamente quando temos mais culpa que somos enfim perdoados. O ato que é o maior dos nossos crimes é também, ele próprio, a fonte da nossa Redenção, e isso é assombroso e, passados vinte séculos, até hoje nos assombra.

E diante da Cruz de Cristo todos os demais aspectos da Sua vida são colocados em sua correta perspectiva. De todos os milagres que Ele se realizou, nenhum se compara a essa prodigiosa transmutação de crime em perdão, de morte em vida. Os ensinamentos que Ele nos transmitiu, somente após resgatados pelo sangue do Cordeiro nos os podemos cumprir. A maior das riquezas que Ele tem para nos dar é a Vida Eterna que nos foi alcançada do alto da Cruz. E tudo o que podíamos ser e fazer até o dia de hoje, tudo é palha e cinza e nada agora que temos a santa liberdade dos filhos de Deus.

A suprema doação da Cruz é prova do amor de Deus por nós; e diante desse amor é impossível não se comover. Quando o véu do Templo rasgou-se ao meio, também alguma coisa precisa se ter rasgado dentro de nós. Quando a lança perfurou o coração de Cristo, também o nosso coração precisa haver sido traspassado. O mal que entrara em nós lá no Éden foi finalmente, após séculos, extirpado. Nosso Senhor morto desce ao sepulcro; e agora também nós podemos, enfim, morrer em paz.

Sexta-Feira Santa

É a Sexta-Feira. Se não quisermos contemplar os julgamentos injustos que sofreu Nosso Senhor; se não suportarmos acompanhar o Seu doloroso caminho até o Calvário; se não formos capazes de nos deter ouvindo aquele grito terrível que anunciou a consumação do Seu Sacrifício, e nem de fixarmos o nosso olhar no Cadáver pendente do madeiro da Cruz; enfim, se nos fosse possível deixar tudo isso de lado, olhar – ainda que de soslaio – para o Senhor Morto já nos seria tremendamente benéfico e já permitiria à nossa alma usufruir dos influxos benéficos da meditação piedosa da Paixão de Cristo. Porque muito do mistério do dia de hoje está condensado no Corpo sem vida de Nosso Senhor, que a Sua Mãe Santíssima recebeu dos braços da Cruz e em cuja honra saem hoje procissões de nossas igrejas, após a Celebração da Paixão do Senhor.

Ó vós que passais, olhai e vede se há dor semelhante! Na imagem do Senhor morto está contida a via crucis e o Gólgota, a injustiça e a culpa, o sofrimento de um Inocente e a dor de uma Mãe. E tudo isso está lá presente precisamente porque não há mais nada: o Amor foi assassinado, o Deus foi expulso da Sua Criação, o Mestre foi silenciado, a Vida jaz no abraço frio da Morte. Tudo está perdido. Somente olhando para Ele morto nós podemos ter uma idéia da dimensão dessa nossa perda. Somente quando Ele não está mais entre nós é que, finalmente, tomamos consciência do quanto d’Ele precisávamos. E estamos novamente diante de uma Viúva chorando a morte do Seu Filho mas, dessa vez, ninguém tem coragem de ordenar-Lhe “levanta-Te!” como Ele costumava fazer. Dessa vez parece que o luto não vai ser interrompido, mas muito pelo contrário: parece que ele não vai deixar de se expandir até abarcar o mundo inteiro.

E o cortejo fúnebre segue pelas ruas da cidade. Os que desfilam com o Senhor Morto têm o Sangue d’Ele escorrendo pelas mãos e derramando-se sobre suas cabeças. E não há sequer um Deus para o Qual eles possam pedir perdão. O Único que os podia perdoar é justamente Este cujo cadáver está sendo levado em procissão. Levam-No, sem saber para onde; choram, sem saber o que fazer.