O Inferno continua eterno como sempre esteve

Foi recentemente divulgado, nas redes sociais, em tom elogioso, um artigo da lavra do Juan Arias e republicado pelo Unisinos que é abertamente herético. Sob o título “O Papa Francisco revisa a teologia do Inferno” (!), o articulista se esmera por demonstrar que Sua Santidade teria defendido a tese de que o inferno não é eterno.

Não sei se o mais impressionante é o sr. Arias mentir na cara dura, haver pessoas que acreditem na canalhice do sr. Arias ou haver pessoas que comemorem o disparate inventado pelo sr. Arias como se fosse um “avanço” para a Igreja Católica. Quanto a estes últimos, tolos!, não percebem que a beleza da Igreja Católica é justamente a Sua intransigência diante do furor das Potências do mundo, é precisamente a Sua solidez inabalável enquanto, ao seu redor, rebentam os vagalhões açodados pela procela do Século. Não entendem que, no instante em que a Igreja começar a “revisar” matéria teológica que seja, deixa de existir qualquer razão para alguém acreditar na Igreja Católica, uma vez que cessa de haver qualquer garantia de que a nova doutrina não vá também ser alterada na semana que vem.

Mas – ó, surpresa…! – ainda não foi dessa vez que a Igreja de Cristo prevaricou. O texto de Unisinos começa dizendo que o Papa Francisco «aproveitou, dias atrás, seu discurso aos novos cardeais para recordar-lhes que o castigo do inferno com o qual a Igreja atormenta os fiéis não é “eterno”». A alegação é simplesmente disparatada; quase tão incrível quanto aquela outra, evidentemente falsa, que circulou há um ano e onde era dito, na maior sem-cerimônia, que o Papa dissera que não há fogo no Inferno e Adão e Eva não são reais.

E, hoje, existe internet…! Com cinco minutos de Google qualquer pessoa consegue acessar, no site do Vaticano, o discurso do Papa aos novos cardeais. A homilia do Consistório (à qual cheguei primeiro), do dia 14 de fevereiro, não diz nada nem remotamente parecido com o que o Juan está falando. Achei-o no dia seguinte, na Santa Missa com os novos cardeais, celebrada pelo Papa aos 15 de fevereiro. Lá pelas tantas, o Papa Francisco dispara:

O caminho da Igreja, desde o Concílio de Jerusalém em diante, é sempre o de Jesus: o caminho da misericórdia e da integração. Isto não significa subestimar os perigos nem fazer entrar os lobos no rebanho, mas acolher o filho pródigo arrependido; curar com determinação e coragem as feridas do pecado; arregaçar as mangas em vez de ficar a olhar passivamente o sofrimento do mundo. O caminho da Igreja é não condenar eternamente ninguém; derramar a misericórdia de Deus sobre todas as pessoas que a pedem com coração sincero; o caminho da Igreja é precisamente sair do próprio recinto para ir à procura dos afastados nas «periferias» essenciais da existência; adoptar integralmente a lógica de Deus; seguir o Mestre, que disse: «Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas os que estão doentes. Não foram os justos que Eu vim chamar ao arrependimento, mas os pecadores» (Lc 5, 31-32).

É difícil saber até mesmo por onde começar. Em primeiro lugar, a palavra “Inferno” não consta nem no período e nem em nenhuma outra parte da homilia. Na passagem, aliás, o Papa fala – muito claramente – de coisas concretas como o perdão concedido àquelas pessoas que o pedem arrependidas, não havendo esforço hermenêutico possível que o possa colocar, nesta passagem, fazendo digressões escatológicas sobre os Novíssimos. Em uma palavra, o Papa está dizendo que a Igreja perdoa os que Lhe pedem perdão, e não que o Inferno não é eterno. Sobre «derramar a misericórdia de Deus», a propósito, o Papa faz questão de dizer, na imediata sequência da frase, que isso se faz «sobre todas as pessoas que a pedem com coração sincero». Ou seja, a Igreja perdoa as pessoas que – partícula que introduz oração subordinada adjetiva restritiva – pedem a misericórdia de Deus com coração sincero, e não “todas as pessoas” e nem “em todas as circunstâncias”. O tema não tem nada a ver com o inferno ser eterno ou temporário, evidentemente não tem, e é preciso muita estreiteza intelectual ou deformidade de caráter para interpretar dessa maneira ou assim divulgar. Sim, há quem negue a eternidade do inferno; mas esses são os hereges de todos os séculos, e não o Papa Francisco.

E o texto é ainda repleto de inverdades grosseiras, mas tão grosseiras que parecem saídas da pena de um prosélito irreligioso carente de níveis mínimos de erudição. Por exemplo, a seguinte frase é digna de um lunático:

Até o século III a Igreja nunca defendeu a doutrina da eternidade do inferno.

Um relincho desses só pode ter sido escrito por alguém que nunca ouviu falar em uns livros chamados Evangelhos. Porque qualquer pessoa que tivesse alguma vez na vida se preocupado em abrir as Escrituras Sagradas encontraria, lá, entre outras, a seguinte sentença peremptória capaz de pôr fim à celeuma:

Voltar-se-á em seguida para os da sua esquerda e lhes dirá: – Retirai-vos de mim, malditos! Ide para o fogo eterno destinado ao demônio e aos seus anjos. (São Mateus 25, 41)

Fogo eterno. Na Vulgata – cujos termos a ascendência latina do nosso português não nos permite compreender errado -, in ignem æternum. Ora, se o próprio Cristo, nos livros tidos como sagrados pelos cristãos, disse, com todas as letras possíveis, que o fogo ao qual estavam destinados o demônio e seus anjos era eterno, como pode ser possível que a Igreja nunca tenha defendido até o século III aquilo que é ipsissima verba Christi?

Ao contrário do que o lenga-lenga do autor do texto leva o leitor incauto a acreditar, por conseguinte, o Inferno é sim eterno, e é nesses moldes que a Igreja sempre o entendeu: dos primeiros cristãos ao Papa Francisco inclusive. Qualquer um pode dizer o contrário disso, é verdade. Mas querer arregimentar em favor do seu devaneio o Papa Francisco ou a Igreja Primitiva, aí não! Aí já é cretinice sem a menor correspondência com a realidade – e que, portanto, urge desmascarar.