“Tudo é absurdo” – Frei Leão José Moreau

Muitas formas, bem diversas, de ceticismo e de pessimismo, se encontram registradas na história do pensamento humano, desde os sofistas e os pirrônicos antigos até os modernos agnósticos, desde Çakya-Muni até Schopenhauer. Foi posta em dúvida a possibilidade do conhecimento objetivo. Com Heráclito talvez, e com Hegel, contestou-se mesmo o valor do princípio fundamental de todo pensamento, sem o qual êste se nega a si mesmo: o princípio de não-contradição. A vida foi declarada radicalmente má e preferido o nada ao ser. A história dos sistemas filosóficos oferece-nos tôdas as espécies de expressões – ao menos verbais – da dúvida e da recusa. Entretanto ter qualquer escola do passado jamais proclamado a absurdidade do ser tão explícita e tão abruptamente como nossos existencialistas ateus?

“No existencialista não cristão, a contingência da existência não mais toma o caráter de mistério provocante e sim de irracionabilidade pura e de brutal absurdidade. O homem é um fato nu, cego. Está ali, dêsse modo, sem razão. É isto que Heidegger e Sartre chamarão sua “factividade”. Cada um de nós por seu turno, se encontra ali (Befindlichkeit), ali, agora, porque aqui mais aqui, não se sabe, é idiota. Quando desperta para a consciência e para a vida, está já ali, não o pediu. É como se se o lançasse ali – quem? ninguém; para quê? para nada. Tal é o sentimento de uma situação originária, sentimento supremo para lá do qual nada existe. Acordo em plena viagem numa história de louco… O desvio é absoluto e sem esperança. Êste sentimento é de tal modo ofuscante que Sartre o traduz por uma nuance nova, cuja incidência ontológica é capital: o ente é por demais (de trop). Sua estupidez injustificável estorva como a asneira… Estou como atirado e abandonado por êste nada sem olhar e sem resposta num ponto perdido do universo… Cada segundo renova êste abandono entregando-me indefeso ao mundo estranho: introduz até em mim a estraneidade que me envolve e que me priva inclusive desta cálida intimidade comigo mesmo em que o desespêro encontraria uma promessa familiar” (E. Mounier, Introduction aux existencialismes, ed. Denoel, Paris, 1947, p. 35-36).

Êstes temas do ser que “é uma demasia (de trop) para a eternidade” do homem, “paixão inútil”, do nada, do absurdo, da estraneidade, etc., inspiram tôda uma literatura contemporânea, as obras dum J. P. Sartre, dum Camus e duma Simone De Beauvoir… O século XX, que viu o ateísmo chegar à consagração oficial de doutrina do Estado, viu-o também, no plano intelectual, chegar à inevitável conclusão lógica: tudo é absurdo.

Mas, será que se trata efetivamente duma “conclusão intelectual”?

Trata-se, é certíssimo, de uma atitude literária. Trata-se também – ao menos em certa medida – duma moda. Mas se queremos nos colocar do ponto de vista estritamente filosófico, é de todo impossível considerar êste “absurdismo” como uma conclusão intelectual. Isto por motivo bastante evidente: uma conclusão intelectual deve poder ser pensada. Ora, o absurdismo é – por definição – impensável… O absurdismo consiste em negar o pensamento, em sustentar que o ser é radicalmente incoerente.

Sustentar conscientemente uma proposição absurda, ou afirmar – o que dá no mesmo – a verdade objetiva do absurdo, é contradizer-se a si mesmo, é pôr uma afirmativa e declarar, ao mesmo tempo, que ela é destituída de fundamento: jôgo realmente impossível, que ninguém pretende realizar nas matemáticas, por exemplo, em que a precisão desnudada da expressão não permite artifício algum na linguagem. O que não é possível em matemática é verbalmente possível em filosofia, porque, dada a densidade e a riqueza do objeto desta, ela não pode exprimir-se de maneira tão rigorosamente adequada como aquela. Explica-se assim o dito de Cícero, que não há tolice que não tenha sido afirmada por algum filósofo.

Frei Leão José Moreau, O.P.,
“Ateísmo e Absurdismo”,
in “A ORDEM”, Vol. LIII, FEV/1955

Os resquícios da civilização

Diz-se que o homem é criado à imagem e semelhança de Deus porque é “capaz de conhecer e de amar a Deus, e de gozá-Lo eternamente”; assim nos ensina o Catecismo Maior de São Pio X (Parte I, q. 55). É este – e não outro – o fundamento da dignidade humana, aquilo que faz com que o homem seja detentor de direitos objetivos e lhe salvaguarda das arbitrariedades que alguns indivíduos ou grupos, detentores de força ou de poder, porventura queiram lhe infligir.

Houve um tempo – como nos ensina o Sumo Pontífice Leão XIII – em que a Filosofia do Evangelho governava as nações. E por mais que alguns anti-clericais modernos tenham alguma espécie de prazer sórdido (e ignorante) em lançar lama a esta época gloriosa da civilização humana, o fato é que os homens de então eram tratados com muito mais dignidade do que os de outras épocas da história.

“Ah, foram queimados pela Igreja, foram torturados, fizeram guerras sangrentas, foram impedidos de manifestar livremente os seus pensamentos!”, hão de dizer os livres-pensadores modernos. Mas o fato – que os inimigos da Igreja se esquecem de mencionar – é que os homens foram queimados muito mais vezes fora da Igreja do que nas fogueiras às quais a Santa Inquisição ateou fogo. O fato – relevantíssimo, mas sobre o qual não se fala uma palavra – é que os homens foram torturados mais e de maneira mais cruel por civis do que por religiosos. O fato é que nunca houve guerras tão terríveis quanto as que o mundo assistiu no século passado – em pleno século XX, quando já se encontrava indubitavelmente livre da influência da Igreja (e, diremos  até, justamente por causa disso).

“Mas… mas… mas foram impedidos da livre-expressão de suas idéias, e isto não se pode negar!”, dir-nos-ão desesperados os nossos amigos anti-clericais. E, nisto (descontadas, é óbvio, as falsificações grosseiras), nós deles não discordaremos. Graças a Deus, houve repressão à veiculação de idéias errôneas e perniciosas ao longo da história, e este mecanismo foi fundamental para que a civilização pudesse ser mantida e nós, hoje, fôssemos capazes de discutir a repressão de idéias praticada em épocas passadas.

Isto porque a liberdade é algo que não se pode atribuir às coisas de um modo absoluto. A excessiva e imoral (assim intitulada) “liberdade de expressão” vigente nos dias de hoje jamais seria permitida em outras épocas – nisto, concordamos integralmente com os inimigos da Igreja! Com o que não concordamos é que tal fato demonstre uma superioridade moral do nosso século sobre aqueles que o precederam – aliás, muito pelo contrário.

Como dizíamos acima, o ser humano é detentor de uma dignidade intrínseca que faz com que seja preciso respeitá-lo. Assim, a mera possibilidade de que alguém possa dispôr livremente da vida de outrem – matando-o ou escravizando-o, por exemplo – provoca-nos (ainda…) um sentimento de injustiça; no entanto, aquilo que os revolucionários não percebem é que este “sentimento de injustiça” está alicerçado sobre a dignidade humana, sobre o fato do homem ter sido criado por Deus à Sua imagem e semelhança e, portanto, possuir – intrinsecamente – um quê de sagrado e de inviolável. E permitir que esta verdade fundamental seja questionada ou – pior ainda – negada abertamente não é sinal de avanço, e sim de terrível retrocesso. Não é característica de pessoas civilizadas, e sim de bárbaras.

Não é verdade que nós, hoje, conhecemos o valor do ser humano porque nos livramos do obscurantismo católico medieval, é exatamente o contrário: é devido aos resquícios daquele glorioso tempo – repitamos – no qual a Filosofia do Evangelho guiava as nações que, hoje, nós (ainda) não caímos na barbárie completa e ainda não nos esquecemos (muito) que o ser humano possui uma dignidade intrínseca e que, portanto, deve ser protegido de arbitrariedades de outrem. Por qual outro motivo, afinal de contas, deveríamos falar em “direitos humanos”?

No entanto, na contramão de tudo isto, a brilhante “solução” dada por alguns dos nossos ilustres pensadores para proteger os seres humanos da opressão dos seus semelhantes é postular uma “moral” positivista baseada não em nada objetivo, mas nas “conveniências” e nas “convenções sociais”. Assim, matar pessoas passa a ser errado (ou, melhor dizendo, “ilegal”) não porque as pessoas possuam intrinsecamente um direito inviolável à vida, mas porque “convencionou-se” que é “útil” para a sociedade como um todo que os seus cidadãos não se exterminem mutuamente. O problema, o grande e enorme problema com esta idéia estúpida é que a solução apresentada para proteger as pessoas das arbitrariedades… é ela própria uma arbitrariedade – uma vez que, eliminada a dignidade humana intrínseca, uma convenção social de que é importante para o país que os seus cidadãos não se matem em nada se distingue de uma outra convenção social de que é importante para o país que negros sejam escravizados ou que judeus sejam exterminados. Ou seja: o problema está “resolvido” apenas acidentalmente, uma vez que os princípios são imorais e continuam abertos às maiores injustiças que se poderiam cometer. Deste modo, a gloriosa marcha da vaca para o brejo segue solene e inexorável, e passa a ser somente uma questão de tempo a decadência da civilização na barbárie – cujos sinais já encontramos em profusão por aí.

Ora, as idéias de um povo determinam a maneira como aquele povo vai se comportar e, em última instância, garantem ou impossibilitam a sua sobrevivência – donde se vê a importância que elas possuem. Diante das loucuras do mundo moderno, é possível que paremos um pouco para nos perguntar: como foi possível que chegássemos a edificar uma sociedade sobre tão frágeis alicerces? A resposta é bastante óbvia: se as idéias corretas não são defendidas e as erradas não são combatidas, o pensamento degenera-se, e isto acontece de modo tão claro e óbvio como uma casa se estraga se não houver quem dela tome conta, ou como um terreno produz abrolhos e ervas daninhas se não houver quem o cultive. E, se é criminoso construir edifícios com material de baixa qualidade pondo em risco a estabilidade da estrutura… quão mais criminoso não será edificar uma sociedade inteira sobre a areia movediça e inconstante destas idéias que são o lugar comum do pensamento moderno?

A civilização moderna não existe por conta do pensamento moderno – ao contrário, ela sobrevive (ainda) dos influxos benéficos do Cristianismo, e apesar de todas as loucuras modernas que a ameaçam destruir a cada instante, solapando-lhe as bases. Aprendemos com os construtores das catedrais medievais que uma base sólida é fundamental para a sustentação do edifício, e sempre soubemos que isto era aplicável tanto aos templos católicos quanto às sociedades. No seu ódio irracional ao glorioso passado da Igreja, os anti-clericais fazem questão de – irresponsavelmente – esquecer este ensinamento tão elementar que os nossos antigos nos legaram. E, agora, os prédios ameaçam ruir, e já aparecem as rachaduras, enquanto os livres-pensadores modernos, perdidos, tentam jogar mais e mais areia em uma patética tentativa de fechar as fendas abertas.