Questões sobre o socialismo e a propriedade

Em defesa do socialismo, argumenta-se:

  1. Direitos trabalhistas como salário mínimo, limitação da jornada de trabalho e previdência pública — dentre outros — são conquistas que, historicamente, só foram possíveis graças às lutas dos socialistas. Ora, esses direitos são hoje unanimemente reconhecidos como devidos de fato. Logo, é possível dizer que o socialismo deu certo, ao menos nestes pontos que se incorporaram aos ordenamentos jurídicos ocidentais do pós-Revolução Industrial pra cá. Ainda: se estes pontos eram justos, então a luta por eles era necessária e justa também.
  2. Se «as coisas que possuímos com superabundância são devidas, pelo direito natural, ao sustento dos pobres» (Summa, IIa-IIae, q. 66, a. 7), então por que a lei positiva não poderia estabelecer mecanismos, por confiscatórios que fossem, capazes de coagir os abastados a sustentar os desvalidos? Não estaria ela, nisso, apenas aplicando a lei natural?

Responda-se brevemente.

Quanto ao primeiro, não é absolutamente a questão do salário mínimo (e suas assemelhadas) que define o socialista frente o não-socialista. Esta dicotomia é artificial e tem o único intuito de transformar a posição socialista na única aceitável, por meio da atribuição de um rótulo odioso a todas as outras: a redução do não-socialista ao capitalista explorador é simplesmente falsa.

O Magistério da Igreja trata, por exemplo, sobre o salário justo, entre outros lugares na Rerum Novarum (n. 10) e na Quadragesimo Anno (II. 4). Os economistas dirão que estes documentos só falam sensaborias e trivialidades; ora, não poderia ser diferente. São encíclicas e não tratados econômicos, e devem cuidar para que o seu ensino seja suficientemente geral a ponto de poder ser aplicável à natural diversidade dos tempos e dos lugares de que é composta a história humana. Trata-se de princípios e não de modelos políticos; qualquer sistema político que se pretenda válido deve concretizar aqueles princípios.

É por enunciar princípios universalmente válidos que a Rerum Novarum, publicada no séc. XIX, é atual ainda hoje, ao passo que as análises de conjuntura publicadas pela CNBB já saem com cheiro de mofo e ninguém lhes dá maior atenção.

O que define o socialista em face do não-socialista, como diz Pio IX, é uma determinada forma de concepção da sociedade; de fato, o socialismo afirma «que o consórcio humano foi instituído só pela vantagem material que oferece» e que o fim da sociedade humana deve ser «a abundância dos bens que, produzidos socialmente, serão distribuídos pelos indivíduos, e estes poderão livremente aplicar a uma vida mais cómoda e faustosa» (cf. QA, III., 2). Deste naturalismo e deste individualismo surgem, no atual estágio de degeneração da sociedade, bandeiras como o homossexualismo e o aborto, nas quais com muito mais propriedade se identifica o dito “progressismo social” do que na limitação da jornada de trabalho em 40h semanais.

Em resumo, ninguém é socialista unicamente por querer melhores condições de trabalho, e os bons frutos produzidos pela «questão social» dos quais hoje gozamos devem ser tributados antes aos influxos benéficos da Igreja na História que ao embate materialista entre liberalismo e socialismo.

Quanto ao segundo, o próprio Aquinate responde que «como são muitos os que padecem necessidades e não se pode socorrer a todos com as mesmas coisas, deixa-se ao arbítrio de cada um a distribuição das coisas próprias para socorrer os que passam necessidade» (Summa, ibidem, Resp.) — ou seja, é o particular e não o Estado que deve tomar sobre si o encargo de cuidar dos pobres. Este é um dever moral e não jurídico.

Ainda, se o destino dos bens exteriores é comum, o mesmo não se pode dizer da sua gestão: no que concerne a esta é lícito aos homens possuírem as coisas como próprias, porque os bens se cuidam melhor, mais ordenadamente e de modo mais pacífico se cada um possui o que é seu (Summa, IIa-IIae, q. 66, a. 2, Resp.).

E mais, se é evidentemente lícito que os poderes públicos assumam de alguma maneira e em alguma medida o cuidado dos desvalidos, tal no entanto não se pode dar de modo a impedir ao homem a posse dos bens exteriores, uma vez que esta lhe é natural (cf. Summa, IIa-IIae, q.66, a.1).

Por fim, se se quisesse estabelecer, em determinada sociedade humana, uma comunidade de bens de tal modo que somente a uma pessoa ou a um determinado grupo de pessoas coubesse a distribuição dos seus frutos por todos os membros da sociedade, tal seria legítimo; mas só se poderia fazer voluntariamente e não de modo compulsório, uma vez que a propriedade dos bens exteriores é lícita, como se mostrou, e ninguém pode ser coagido a deixar de fazer o que lhe é lícito.

Resgatando o direito da Igreja de Se pronunciar sobre questões sociais

Em um discurso recente a trabalhadores de siderúrgicas italianas, o Papa Francisco falou o seguinte:

Ouvi alguns jovens operários que estão sem trabalho, e me disseram isto: “Padre, nós, em casa – minha mulher, os meus filhos – comem todos os dias, porque a paróquia, ou o clube, ou a Cruz Vermelha, nos dão de comer. Mas, Padre, eu não sei o que significa levar o pão pra casa, e eu preciso comer, preciso ter a dignidade de levar o pão pra casa”. E este é o trabalho! E se falta o trabalho, esta dignidade fica ferida!

A mensagem faz eco à outra declaração do Papa Francisco que já comentei aqui. Na ocasião, Sua Santidade utilizou “desemprego” e “maiores males modernos” na mesma frase, o que imediatamente levou as pessoas a dizerem que, para o Papa, o mal do século era o desemprego. Solene bobagem. Tanto lá como aqui, o trabalho era visto sob um enfoque espiritual. O materialismo estava e está somente nos olhos de quem lê.

Afinal, a mais nefasta conseqüência do desemprego não é a mera carência material, e sim a «dignidade de levar o pão pra casa» ferida. E este «pão» possui uma dimensão tão espiritual que o próprio Cristo fez questão de incluir uma súplica por ele na Oração que é modelo de todas as orações. Outrossim, quer coisa menos materialista do que a reminiscência permanente daquele longínquo «comerás o pão com o suor do teu rosto» que integra o anátema original? Prover ao próprio sustento e ao da própria família – levar o pão pra casa -, antes de uma contingência fisiológica, é um imperativo metafísico. A teologia tem exigências e conseqüências sensíveis; dizer diferente disso é dar razão, ainda que indireta, aos que propugnam uma separação radical entre religião e vida.

Quando li esta mensagem do Papa Francisco, lembrei imediatamente outra declaração da Igreja sobre assuntos aparentemente materiais, sobre um tema à primeira vista tão estranho às coisas do Céu quanto o salário mínimo. No entanto, foi Leão XIII o Pontífice que lhe dedicou alguns parágrafos na Rerum Novarum. Está lá, no número 27. da grande Encíclica:

Façam, pois, o patrão e o operário todas as convenções que lhes aprouver, cheguem, inclusivamente, a acordar na cifra do salário: acima da sua livre vontade está uma lei de justiça natural, mais elevada e mais antiga, a saber, que o salário não deve ser insuficiente para assegurar a subsistência do operário sóbrio e honrado.

E Pio XI foi ainda mais além e acrescentou algumas características mais específicas a esta justa remuneração (Quadragesimo Anno, II, 4.):

É um péssimo abuso, que deve a todo o custo cessar, o de as obrigar [as esposas], por causa da mesquinhez do salário paterno, a ganharem a vida fora das paredes domésticas, descurando os cuidados e deveres próprios e sobretudo a educação dos filhos. Deve pois procurar-se com todas as veras, que os pais de família recebam uma paga bastante a cobrir as despesas ordinárias da casa.

Escusado comentar o quanto o nosso «salário mínimo» legal está aquém dessas exigências estabelecidas – como «uma lei de justiça natural»! – pelo Supremo Magistério da Igreja…

Em suma, há muito em comum entre o «desemprego» sobre o qual fala atualmente o Papa Francisco e o «justo salário» sobre o qual versam as grandes Encíclicas Sociais do passado: ambos são temas à primeira vista «seculares» sobre os quais políticos, economistas, sociólogos e congêneres reivindicam exclusiva competência, com exclusão do parecer moral da Igreja; e ambos são temas que os filhos rebeldes do Catolicismo têm enorme facilidade de instrumentalizar em prol de uma certa “teologia” horizontal e intranscendente que tanto mal fez e continua fazendo à Igreja nos últimos tempos.

Cumpre frustrar os maus intentos de uns e de outros. É preciso defender com clareza, contra os naturalistas modernos, que a Moral tem exigências concretas a fazer inclusive à Economia; e ao mesmo tempo é preciso afirmar com ainda mais clareza a existência de uma doutrina social católica que não é aquela dos teólogos ditos «da libertação». A esquerda tem uma enorme facilidade em se apossar do discurso católico. Contra isso é preciso não negar à Igreja o direito de se pronunciar sobre questões sociais, mas sim anunciar ao mundo os Seus ensinamentos devidamente purificados da parasitagem marxista com a qual eles as mais das vezes são apresentados.

Sobre as greves: a Igreja mudou o Seu ensinamento?

A Universidade Federal de Pernambuco acaba de entrar em greve. Sem entrar no mérito desta decisão específica, gostaria de aproveitar o ensejo para falar sobre a “greve” no seu sentido mais amplo, uma vez que o exemplo é amiúde evocado como uma “prova” de que a Igreja “mudou” o Seu ensinamento a este respeito.

Sobre as greves diz Leão XIII na Rerum Novarum:

22. O trabalho muito prolongado e pesado e uma retribuição mesquinha dão, não poucas vezes, aos operários ocasião de greves. E preciso que o Estado ponha cobro a esta desordem grave e frequente, porque estas greves causam dano não só aos patrões e aos mesmos operários, mas também ao comércio e aos interesses comuns; e em razão das violências e tumultos, a que de ordinário dão ocasião, põem muitas vezes em risco a tranquilidade pública. O remédio, portanto, nesta parte, mais eficaz e salutar é prevenir o mal com a autoridade das leis, e impedir a explosão, removendo a tempo as causas de que se prevê que hão–de nascer os conflitos entre os operários e os patrões.

A leitura superficial pode se revelar enganosa e, a um leitor menos atento, pode parecer que a Igreja é “contrária às greves” assim, sem mais ressalvas. Ou ainda, caso as pessoas tenham o cuidado de abrir o Catecismo da Igreja Católica, podem se deparar com a seguinte passagem e julgar que, afinal, a Igreja dizia ontem uma coisa e hoje diz o contrário:

§2435 A greve é moralmente legítima quando se apresenta como um recurso inevitável, e mesmo necessário, em vista de um benefício proporcionado. Torna-se moralmente inaceitável quando é acompanhada de violências ou ainda quando se lhe atribuem objetivos não diretamente ligados às condições de trabalho ou contrários ao bem comum.

E então? A greve é “moralmente legítima” ou é uma “desordem grave”? Vale o que foi dito no século XIX ou vale o que é dito hoje? Na verdade (e aliás como sempre), valem as duas coisas. De que maneira? Muito simples: mudou-se o que se entende por “greve”.

A Igreja sob Leão XIII nunca condenou a greve entendida como o direito de se recusar a trabalhar em condições degradantes. O que a Igreja condenou foi o evento sociológico “greve” da época, que tinha pouco ou nada a ver com as greves atuais: naquela época, era “greve” quando os trabalhadores ocupavam as fábricas, quebravam as máquinas e, se calhasse, matavam o patrão ou os que lhe eram próximos. A greve era um atentado concreto (pelo menos) ao direito à propriedade e (não raro) ao direito à vida. Óbvio, portanto, que tal coisa fosse condenada. Aliás ainda o é.

Igualmente, hoje não é “qualquer greve” que é legítima: ao contrário, são legítimas as greves que «se apresenta[m] como um recurso inevitável, e mesmo necessário, em vista de um benefício proporcionado», como está no Catecismo. E só é legítima a greve que (ao contrário daquelas historicamente condenadas pela Igreja) não seja “acompanhada de violências”. Mudaram, portanto, as contingências históricas: permanece imutável o ensino moral da Igreja, que (por definição) não se pode mudar.

Confundir realidades distintas por conta do emprego comum de um mesmo termo para designar ambas é sempre um risco. Mas outro risco é o de achar que, com a mudança das realidades contingentes, mudam-se (ou abrandam-se) as condenações da Igreja. Julgar desta maneira é não entender o que aconteceu neste caso da greve (e em outros casos análogos, como o dos juros): as condenações da Igreja não “se abrandaram”, elas permanecem integralmente válidas. O que deixou de existir foi o objeto da condenação: antes havia uma coisa caracterizada por proletários destruindo fábricas e, hoje, existe uma outra coisa que se caracteriza por empregados se recusando a trabalhar. Ambas foram contingentemente chamadas de “greve”, mas é bastante evidente que se tratam de realidades bem distintas. Se alguém resolver quebrar máquinas hoje como se fazia no século XIX, não pode aduzir em sua defesa um alegado “direito de greve” reconhecido tanto pela Igreja quanto pelo direito brasileiro. Igualmente, se algum proletário da época da Revolução Industrial resolvesse então dizer que não ia mais trabalhar enquanto não fosse melhor remunerado, tal situação não seria de modo algum condenável pelas autoridades eclesiásticas da época.

É desse modo, portanto, que deve ser entendida a autoridade moral da Igreja Católica: separando-se as questões de princípio das questões de fato, recaindo a infalibilidade magisterial (e a sua conseqüente irreformabilidade, etc.) sobre as primeiras. Quanto às questões de fato, é preciso ter em mente que as contingências históricas podem mudar e, portanto, pode ser que as condenações de outrora deixem de valer por mera vacuidade contingente do objeto condenável (sem que contudo o objeto deixe de ser condenável). Mas mesmo quanto às questões de fato compete às autoridades da Igreja dar a orientação definitiva. Ninguém pode levianamente afirmar que certas condenações do passado não são mais válidas: na verdade, as condenações do passado são sempre e para sempre válidas. O que pode acontecer, repita-se, é que não exista mais o objeto anteriormente condenado; mas até para a emissão desse juízo de fato é mister estar em delicada consonância com o Magistério da Igreja.