Os cuidados do planeta: pelo homem e para o homem

Eu não estou acompanhando direito o que se está discutindo na Rio+20, mas gostei desta notícia dizendo que o texto-final da conferência foi modificado “por pressão do Vaticano”. Claro, os observadores da Santa Sé têm pouco a dizer com relação às discussões concretas sobre impacto ambiental e desenvolvimento sustentável. A modificação foi devido a um ponto que, infelizmente, sói vir “embutido” no movimento de defesa ambiental: o aborto.

O maior problema é que o atual movimento ecológico não costuma ter muito a ver com a defesa do meio-ambiente, a qual seria em princípio um ideal legítimo e bem louvável. O maior problema é que o atual movimento ecológico adota quase que em uníssono um discurso xiita – e francamente inaceitável – segundo o qual é legítimo (ou até mesmo necessário) sacrificar o ser humano para (supostamente) “salvar o Planeta”. Para essa gente, a Terra “não comporta” mais seres humanos e, portanto, é urgente reduzir a população – se para isso for necessário recorrer à contracepção ou ao aborto, não faz diferença. Para essa gente, a existência de um aquecimento global provocado por ação humana é ao mesmo tempo um dogma incontestável e o ribombar das trombetas do Apocalipse, sendo necessário eliminar a qualquer preço tudo o que [eles acham que] colabora com o aquecimento do planeta – que se danem os possíveis (e negativos) efeitos econômicos e sociais destas políticas. Em suma, para esta gente a questão ambiental é apenas um pretexto. Arautos da barbárie é o que são.

Vi por esses dias uma charge com dois ursos polares em cima de uns pedaços de gelo flutuando. Eles conversavam entre si: “-E aí, acha que os resultados da Rio+20 vão chegar por aqui?”, ao que o outro respondia: “-Rio+20? Eu ainda estou esperando os da Eco-92″… E, no fundo, não há nada de surpreendente com isso. A crítica faz sentido: aqui como em outros aspectos da vida humana, as simples reuniões de burocratas despejando retórica e mirando em espantalhos não costumam dar muitos resultados concretos. Tem-se muita parafernália e muita pirotecnia, mas é só: afinal, não interessa aos ambientalistas resolver o problema do meio-ambiente. Pois se o fizessem eles iriam perder o pretexto que usam por cavalo de batalha nas suas investidas contra a civilização.

Volto ao caso concreto. A questão envolvendo o Vaticano e a Rio+20 envolve um termo que foi retirado do documento final: a expressão “direitos reprodutivos”. Todo mundo sabe que “direitos reprodutivos” significa “aborto”, e todo mundo sabe – afora talvez meia-dúzia de ecochatos fanáticos – que a maior parte das pessoas que simpatiza com as causas ecológicas não guarda o mesmo entusiasmo pelo trucidamento de crianças no ventre de suas mães. Os resultados deste impasse são bastante previsíveis: os xiitas recrudescem o seu discurso ao verem que não conseguem atingir os seus objetivos nefastos, e as pessoas normais começam a olhar torto para as deliberações dos xiitas: e enquanto isso o verdadeiro cuidado com o meio-ambiente é lançado às favas.

Os delegados da Igreja, eu comentava, não tinham muito a dizer sobre as políticas concretas de prevenção ambiental. Mas a Igreja tem – e muito – a dizer a respeito dos princípios que devem nortear uma sadia preocupação ecológica. Pra ficar num só exemplo, do Compêndio de Doutrina Social da Igreja:

463 Uma correta concepção do ambiente, se de um lado não pode reduzir de forma utilitarista a natureza mero objeto de manipulação e desfrute, por outro lado não pode absolutizar a natureza e sobrepô-la em dignidade à própria pessoa humana. Neste último caso, chega-se ao ponto de divinizar a natureza ou a terra, como se pode facilmente divisar em alguns movimentos ecologistas que querem que se dê um perfil institucional internacionalmente garantido às suas concepções.

O Magistério tem motivado a sua contrariedade a uma concepção do ambiente inspirada no ecocentrismo e no biocentrismo, porque «se propõe eliminar a diferença ontológica e axiológica entre o homem e os outros seres vivos, considerando a biosfera como uma unidade biótica de valor indiferenciado. Chega-se assim a eliminar a superior responsabilidade do homem, em favor de uma consideração igualitária da “dignidade” de todos os seres vivos».

Este é o verdadeiro caminho para um legítimo “desenvolvimento sustentável”, e não os rumos descabidos traçados pelos inimigos do gênero humano que se apresentam como amigos da natureza. Afinal de contas, o planeta é criação de Deus para o homem – e por este (e para este) deve ser guardado. Pelo visto, o (necessário!) cuidado com o meio-ambiente precisa com urgência de representantes melhores.

Confundindo técnica e ética: fecundação “tri-parental” aprovada na Grã-Bretanha

Eu li no Meio Bit o Cardoso explicando uma nova técnica (dita “terapêutica”) para “corrigir” defeitos mitocondriais e possibilitar que mães portadoras de certas doenças genéticas possam ter filhos saudáveis. À parte a retórica anti-clerical do articulista (que, neste texto, encontra-se particularmente furibunda), o que interessa é o seguinte: existem algumas doenças causadas por defeitos nas mitocôndrias. Como as mitocôndrias vêm somente da mãe (já estão presentes no óvulo), uma mulher com mitocôndrias doentes irá necessariamente passá-las para seus filhos. Dependendo de alguns fatores que não são mencionados no texto, a doença pode não se manifestar, mas mesmo assim a pessoa terá um DNA mitocondrial defeituoso (e, se for uma mulher, vai repassá-lo para os seus filhos, etc.). E estas doenças mitocondriais podem ser bem graves, de modo que é natural que se queira encontrar uma forma de evitá-las.

A nova técnica é simples: como as mitocôndrias não ficam no núcleo do óvulo (e sim no citoplasma), basta pegar dois óvulos (de mulheres distintas), tirar os dois núcleos e enxertar o do óvulo da mulher que tem mitocôndrias defeituosas no outro (da mulher que tem mitocôndrias sãs). O resultado é um óvulo “híbrido”, com o núcleo de uma mulher (que é a parte que contém a carga genética) e o resto (citoplasma e membrana) da outra mulher. A partir daqui, segue-se um procedimento normal de fertilização in vitro, e a criança nascida assim irá herdar a carga genética de sua mãe, mas não o seu DNA mitocondrial. O procedimento foi recentemente aprovado por um comitê ético britânico.

Bom… o que dizer? Foi feita, no texto, uma crítica à (inevitável…) comparação da técnica com a história do monstro do Dr. Frankenstein. E a comparação é bastante pertinente, porque no fundo a idéia de “montar” um corpo a partir de partes dos corpos de outras pessoas está presente em um caso e em outro: a diferença é somente a escala. É claro que o procedimento é imoral. Mas, ao contrário do que possa parecer, a imoralidade está na fertilização in vitro, já incontáveis vezes condenada e cujos (incontáveis) problemas já deram abundantes provas de sua existência. O problema evidentemente não está em querer mitocôndrias saudáveis; o problema está na idéia de se produzir seres humanos em laboratórios. Não me espanta nada que esta “fecundação com três pais” tenha sido aprovada, uma vez que – como disse o Cardoso e, infelizmente, é verdade – «[h]oje qualquer clínica de subúrbio faz bebês de proveta, e ninguém em sã consciência consideraria essas crianças algo fora do normal».

O problema, repetimos, não está no fim almejado. O fim é sem dúvidas bom. Se fosse possível dar à mãe uma pílula que agisse nos seus ovários e alterasse as mitocôndrias lá presentes (tornando-as sadias), isto certamente não seria imoral. Não vale a pena entrar neste casuísmo de curar (ou melhor, de prevenir) doenças genéticas levantado pela matéria, porque a resposta é bastante óbvia: se se está empregando um meio intrinsecamente mau (como a fecundação in vitro), elencar os benefícios trazidos pela técnica não faz nenhuma diferença. É errado criar bebês (ditos) de proveta independentemente do quão “bom” seja o bebê resultante do procedimento, e isto porque errada é a fertilização in vitro considerada em si mesma, e não dependendo da proficiência técnica que se adquira em executá-la.

No fundo, trata-se da velha e evidente diferença (totalmente imperceptível para os “cientólatras” deslumbrados com o progresso científico) entre a capacidade técnica e a permissão ética: poder fazer algo [= conseguir] não significa que se possa fazê-lo [= ser lícito]. Os que foram ofuscados pelo recente progresso técnico perdem-se completamente na semelhança entre as palavras e simplesmente não enxergam a polissemia aqui presente. A questão não é somente se existe tecnologia para tanto ou se os resultados obtidos são “seguros”: a questão envolve os meios que são empregados. Era bastante óbvio que as coisas chegariam a este ponto. A Igreja já o dissera:

As técnicas de fecundação in vitro podem abrir possibilidade a outras formas de manipulação biológica ou genética dos embriões humanos, tais como as tentativas ou projetos de fecundação entre gametas humanos e animais e de gestação de embriões humanos em úteros de animais bem como a hipótese ou projeto de construção de úteros artificiais para o embrião humano.

Este texto foi escrito vinte e cinco anos atrás. Eu nem vou insistir no seu caráter profético: vou me ater ao fato de que era óbvio. Uma vez que a vida deixa de ser um dom sublime para ser um produto de uma manipulação técnica, como esperar que ela continue detendo o respeito absoluto do qual é digna? Como esperar, aliás, que ela tenha qualquer respeito? É infelizmente próprio do ser humano desrespeitar o que lhe é inferior e não zelar pelo que ele pode substituir. Quando os seres humanos passaram a ser produtos de laboratório, estavam abertas as portas para os maiores abusos e arbitrariedades. Só não viu quem não quis. E é triste constatar que até hoje perdurem os que não querem ver. A vida humana vai sendo cada vez mais coisificada e, no entanto, eles saúdam cada passo desta triste marcha tecendo-lhe rebuscadas loas! A meus ouvidos, soam como trombetas de um Apocalipse auto-produzido, de um fim do mundo principiado por iniciativa humana. Nestes tempos de Rio+20 convém deixar claro: as catástrofes globais antropogênicas realmente sérias não são as ecológicas, e sim as morais. Nestas, sim, é inegável a ação humana deletéria. Com estas, sim, é urgente nos preocuparmos. Estas, sim, são uma evidente ameaça concreta à humanidade e portanto devem ser combatidas com afinco.