“Se estes se calarem, clamarão as pedras!”

Ainda falando sobre o Scott Hahn, a leitura do “Todos os caminhos vão dar a Roma” (DIEL, 5ª Edição, Lisboa, 2005) revelou-me uma coisa interessante e completamente inusitada: a primeira aproximação que o casal Hahn teve da Doutrina Católica foi justamente num dos temas mais controversos e impopulares mesmo entre os que se dizem católicos: o controle de natalidade. Quando ainda eram protestantes, os dois renderam-se à força dos argumentos católicos sobre o assunto! Vale muitíssimo a pena transcrever – embora longas – as passagens mais relevantes desta narrativa:

Scott: Perguntei-lhe [a Kimberly, sua esposa] que coisa era essa tão interessante que tinha descoberto sobre a contracepção. Disse-me que até 1930 a posição de todas as Igrejas Cristãs em relação a este tema tinha sido unânime: a contracepção estava mal em qualquer circunstância.

O meu argumento foi:

– Se calhar demoraram todo esse tempo a libertarem-se dos últimos vestígios do catolicismo.

A Kimberly avançou um pouco mais:

– Mas sabes que razões eles dão para se oporem ao controlo de natalidade? Têm argumentos mais sérios do que possas pensar.

Tive que admitir que não conhecia as suas razões. A Kimberly perguntou-me se estava disposto a ler um livro sobre o tema e deu-me O controlo da natalidade e a aliança matrimonial, de John Kippley (obra que foi posteriormente revista e intitulada O sexo e a aliança matrimonial). Eu era um especialista em teologia da Aliança e pensava que tinha lido todos os livros em que a palavra aliança figurava no título; por isso, descobrir um que não conhecia espicaçou-me a curiosidade.

Vi-o e pensei: Editorial Litúrgica? Este tipo é um católico! Um papista! O que é que anda a fazer a plagiar a noção protestante da aliança? Senti ainda mais curiosidade por ver o que dizia. Sentei-me a ler o livro. Pensei: “Isto não está certo. Não pode ser… O que este tipo diz faz sentido”. Demonstrava que o casamento não é um mero contrato, envolvendo apenas um intercâmbio de bens e serviços. O casamento é sobretudo uma aliança que implica um intercâmbio de pessoas.

O argumento de Kippley era que qualquer aliança tem um acto pelo qual se consuma e se renova; e que o acto sexual dos cônjuges é um acto de aliança. Quando a aliança matrimonial se renova, Deus utiliza-a para dar nova vida. Renovar a aliança matrimonial e usar contraceptivos para evitar uma potencial nova vida seria tanto como receber a Eucaristia para a seguir a cuspir no chão.

Kippley prosseguia dizendo que o acto conjugal demonstra de modo único o poder doador de vida do amor na aliança matrimonial. Todas as outras alianças mostram e transmitem o amor de Deus, mas só na aliança conjugal o amor é tão real e poderoso que comunica a vida.

Quando Deus fez o ser humano, homem e mulher, o primeiro mandamento que lhes deu foi o de serem fecundos e se multiplicarem. Era assim uma imagem de Deus: Pai, Filho e Espírito Santo, três em um, a família divina. De maneira que quando “os dois se fazem um” na aliança matrimonial, o “um” torna-se tão real que nove meses depois podem ter que lhe dar um nome! O filho encarna a unidade da sua aliança.

Comecei a compreender que sempre que a Kimberly e eu realizávamos o acto conjugal, realizávamos algo sagrado; e que cada vez que frustrávamos o poder de dar vida do amor com a contracepção, fazíamos algo profano (tratar algo sagrado de forma comum profana-o, por definição).

[…]

Foi então que descobri que todos os reformadores – Lutero, Calvino, Zwinglio, Knox, e todos os outros – tinham mantido sobre esta questão a mesma posição que a Igreja Católica. Isso perturbou-me ainda mais. A Igreja Católica era a única Igreja Cristã em todo o mundo que tinha a valentia e a integridade de ensinar esta verdade tão impopular.

[…]

Kimberly: O pequeno grupo [do trabalho do seminário] que teve que se debruçar sobre a contracepção reuniu-se brevemente no primeiro dia ao fundo da sala. Um autonomeado líder observou:

– Não temos que considerar a posição católica, porque só há duas razões pelas quais os católicos se opõem à contracepção: a primeira é que o Papa não se casa, e por isso não tem que viver com as conseqüências; e a segunda é que querem encher o mundo de católicos.

– São essas as razões que apresenta a Igreja Católica? – interrompi – Não acredito.

– Então porque é que não estudas o assunto?

– De acordo.

E assim fiz.

Em primeiro lugar, considerei a natureza de Deus e de que forma nós, como membros do casal, estávamos chamados a ser Sua imagem. Deus – Pai, Filho e Espírito Santo – criou o homem e a mulher à Sua imagem, e abençoou-os na aliança matrimonial com o mandato de crescerem e se multiplicarem, enchendo a terra e dominando toda a criação para glória de Deus (cf. Gen. 1, 26-28). A imagem à imitação da qual o homem e a mulher foram criados é a unidade das três Pessoas da Trindade que se entregam totalmente umas às outras numa plena autodoação de amor. Deus reafirmou este mandato da criação na Aliança com Noé e sua família, dando-lhes o mesmo mandamento de serem fecundos e se multiplicarem (cf. Gen. 9, 1 ss). Deste modo a existência do pecado não alterou o apelo dirigido aos casais para serem imagem de Deus através da procriação.

São Paulo esclareceu que, no Novo Testamento, o casamento foi elevado à categoria de imagem da relação entre Cristo e a Igreja (nesse momento não fazia a menor ideia que o casamento fosse actualmente um sacramento). E pelo poder de dar vida próprio do amor, Deus capacitava os esposos para reflectirem a imagem de Deus na medida em que a unidade dos dois se convertia em três. A minha questão era a seguinte: O nosso uso do controlo da natalidade – que intencionalmente restringe o poder doador de vida do amor, ao mesmo tempo que se goza a unidade e o prazer que dá o acto conjugal – permite que o meu marido e eu reflictamos a imagem de Deus numa total autodoação de amor?

Em segundo lugar, examinei o que a Escritura diz sobre as crianças. O testemunho da Bíblia era arrasador! Todos os versículos que se referiam às crianças, consideravam-nas sempre e só como uma bênção (Sal. 127, 128). Não havia um só provérbio que advertisse que não valia a pena afrontar as despesas que um filho significa. Não havia qualquer bênção para os esposos que adiassem o mais possível a chegada dos filhos, nem para o casal que estivesse o número correcto de anos sem filhos antes de assumir o encargo que as crianças representam, nem para o casal que planeasse cada concepção. Tudo isto eram ideias que eu tinha aprendido nos meios de comunicação social, na escola pública ou com a vizinhança, mas não tinham nenhum fundamento na Palavra de Deus.

Na Escritura, a fertilidade é apresentada como algo que se deve apreciar e celebrar, não como uma doença que se deve evitar a todo custo. E embora não tivesse encontrado nenhum versículo que falasse negativamente das pessoas com famílias pequenas, à luz de numerosas passagens bíblicas, não havia dúvida de que as famílias grandes pareciam ter recebido de Deus uma graça maior. Era Deus que abria e fechava o ventre, e quando Ele dava a vida isso era sempre considerado como uma bênção. Em última instância, o que Deus desejava dos fiéis era “uma prole piedosa” (Mal. 2, 15). As crianças eram descritas como “flechas nas mãos de um guerreiro…, bendito o homem cuja aljava está cheia” [cf. Sl 126, 4-5]. Quem iria à batalha apenas com duas ou três flechas se pudesse ir com a aljava cheia? A minha questão era a seguinte: o nosso uso do controlo da natalidade reflectia o modo como Deus via as crianças ou o modo como as via o mundo?

Em terceiro lugar punha-se a questão do domínio de Jesus Cristo. Como protestantes evangélicos, o Scott e eu tomávamos muito a sério o domínio de Cristo sobre as nossas vidas. No aspecto monetário pagávamos o dízimo regularmente, sem nos importarmos que os nossos fundos fossem escassos, porque queríamos ser bons administradores do dinheiro que Deus nos tinha confiado. Uma e outra vez vimos como o Senhor supria às nossas necessidades com mais do que nós Lhe tínhamos dado. Em termos de tempo, observávamos o Dia do Senhor, pondo de parte o estudo, que era o nosso trabalho, mesmo que tivéssemos exames à segunda-feira. Muitas vezes o Senhor nos premiou por esse dia de descanso, e sempre tivemos excelentes resultados nos exames que fizemos à segunda-feira. Em termos de talentos, aceitávamos que devíamos estar sempre disponíveis para servir Deus com o nosso apostolado e acrescentávamos com gosto obras de serviço ao trabalho abundante do estudo. Ver vidas abençoadas como resultado desse apostolado fortaleceu enormemente a nossa fé e o nosso casamento.

Mas, e os nossos corpos? A nossa fertilidade? O domínio do Senhor estendia-se até aí? Li então em I Cor 6, 19-20: “… não vos pertenceis. Fostes comprados a grande preço. Glorificai, pois, a Deus no vosso corpo”. Talvez fosse uma atitude mais americana do que religiosa pensar na fertilidade como algo que podemos controlar como muito bem nos parecer. E eu perguntava-me: o uso que fazemos do controlo da natalidade, demonstra uma fiel vivência do domínio de Jesus Cristo?

[…]

No fundo, sabia bem com que é que estava a lutar: com a autêntica soberania de Deus. Só Deus conhecia o futuro e qual era o melhor modo de formarmos a nossa família com a prole piedosa que Ele desejava que tivéssemos. Certamente, Ele já tinha dado provas de ser digno de confiança de muitos outros modos. Sabia que podíamos confiar em que nos daria a fé que necessitávamos para lhe confiar este aspecto da nossa vida, e para nos dar a confiança de que esta visão fazia parte do Seu plano para nós, e que verteria o Seu amor em nós, e através de nós, em todas as preciosas almas que nos quisesse confiar. Aliás, conhecia muitos casais no seminário que “planeavam” a chegada das crianças, para descobrirem depois que afinal o calendário de Deus era diferente do deles.

[…]

Kippley fazia a seguinte comparação: tal como acontecia na Roma antiga, em as pessoas participavam num banquete e depois iam vomitar o alimento que acabavam de ingerir (para evitar as conseqüências dos seus actos), o mesmo se passa com os esposos que celebram um banquete no acto conjugal mas se opõem ao poder de dar vida que tem o acto de renovação da sua aliança. Esta acções são contrárias à lei natural e à aliança entre os esposos.

Da perspectiva de Kippley, que era a perspectiva da Igreja Católica, o fim primordial do acto matrimonial era a procriação dos filhos. Quando um casal impede esse fim intencionalmente, actua contra a lei natural. Subverte a renovação da sua própria aliança matrimonial, convertendo numa mentira o compromisso dos esposos de se entregarem totalmente um ao outro.

Agora compreendia por que razão a Igreja Católica se opunha à contracepção. Mas o que dizer dos métodos de planeamento familiar natural? Não eram simplesmente a versão católica do controlo da natalidade?

A Primeira Epístola aos Coríntios (7, 4-5) fala de períodos de tempo nos quais os esposos poderiam abster-se de manter relações sexuais para se dedicarem à oração, reatando depois as suas relações, não deixando a Satanás nenhum resquício por onde entrar no seu casamento. Lendo a Humanae Vitae cheguei a apreciar o equilíbrio da Igreja relativamente à contracepção. Havia uma forma religiosa de se levar a cabo o acto conjugal e de ser prudente em circunstâncias graves, praticando a abstinência durante períodos de mútua fertilidade.

Tal como a comida – em que podia haver temporadas nas quais o jejum fosse útil – de modo similar podia haver períodos nos quais o “jejum” do acto conjugal, por razões meditadas na oração, pudesse ser útil. Contudo, a não ser por milagre, ninguém poderia sobreviver se jejuasse a maior parte do tempo. Igualmente, os métodos naturais de planeamento familiar eram uma receita para momentos difíceis, não uma vitamina quotidiana para a saúde geral.

[op. cit., pp 43-45. 50-56]

Fica, assim, o testemunho do valor da Doutrina Católica, cujos argumentos, de tão claros, conseguiram convencer até mesmo dois protestantes ferrenhamente anti-católicos. Não deixa de ser profundamente irônico que, enquanto existem católicos rejeitando os ensinamentos da Moral da Igreja, dois protestantes tenham se preocupado em defendê-los. Não posso deixar de me lembrar da passagem do Evangelho (Lc 19, 39-40), onde Jesus disse que as pedras falariam se os discípulos se calassem; não consigo deixar de achar que é algo extremamente eloqüente que Deus tenha suscitado protestantes para defenderem a Doutrina Católica quando os católicos se envergonham dela.

A Família e o Divórcio

Hoje eu vi uma triste notícia que me fez lembrar de um comentário feito aqui no Deus lo Vult! algumas semanas atrás. O comentário dizia, en passant, que o divórcio “[s]eria “o fim da família” e não aconteceu isso”; a notícia que eu vi hoje em G1 diz que a taxa de divórcios cresceu 200% em 23 anos.

Lembro-me de uma música antiga, que eu não sei de quem é, chamada “Utopia”. Ela canta: Há tantos filhos / que, bem mais do que um palácio, / gostariam de um abraço / e do carinho entre seus pais. / Se os pais se amassem / o divórcio não viria, / chamam isso de utopia, / eu a isso chamo paz. O Divórcio faz guerra contra a Família, é evidente; enquanto esta fala em olhar para o(s) outro(s), aquele fala em pensar em si. Enquanto esta fala em estabilidade, aquele fala em (falsa) “liberdade”. Esta fala em sacrifício; aquele, em prazer. Esta é solidária; aquele, é egoísta.

Sinceramente, não existe um único argumento em defesa do Divórcio que não seja, ao mesmo tempo, um ataque à Família. Se há “casais que não dão certo” – coisa com a qual muito facilmente nós concordamos -, reconhecer um suposto “direito” às segundas (e terceiras, e quartas…) núpcias é dizer que a parte [= cada um dos cônjuges] tem precedência sobre o todo [= a Família]. Por que “fulaninho tem direito de ser feliz” mas a Família de fulaninho não tem direito de ser preservada? Claro que há situações em que a convivência é simplesmente impossível – e a própria Igreja reconhece a licitude da chamada “separação de corpos” -, mas isso justificaria no máximo o desquite, e não o divórcio. Lembrando que são duas coisas diferentes (aliás, nem sei se existem as duas figuras na legislação brasileira atual): o primeiro autoriza a dissolução da sociedade conjugal e, o segundo, autoriza a contração de novas núpcias. Em outras palavras: pode-se imaginar uma situação na qual um casal específico simplesmente não possa viver sob o mesmo teto e, ao mesmo tempo, manter a instituição familiar inalterada, mas não se pode imaginar uma situação em que os cônjuges possam “casar de novo” e a Família saia incólume desta afirmação.

Reconhecer que uma pessoa pode “casar de novo” é evidentemente reconhecer que a Família não é uma sociedade indissolúvel, pois pode ser dissolvida. É este o ataque que a instituição familiar sofre, e é neste sentido que a introdução do divórcio na legislação brasileira “acabou” com a Família. Quem tem “duas famílias”, na verdade não tem família nenhuma, porque a família é uma comunhão total não só de bens como também de pessoas, e uma pessoa “dividida” entre “duas famílias” não está se entregando totalmente nem a uma, nem a outra. Mesmo que haja divórcio e mesmo que o marido viva monogamicamente com a sua segunda (terceira… quarta…) esposa, há os filhos; e, assim, nem os filhos do “primeiro casamento” e nem os do “segundo” (terceiro… quarto…) têm uma figura paterna inserida solidamente numa sociedade familiar verdadeira. Não têm uma família; têm simplesmente pessoas que cuidam deles, o que é algo completamente diferente.

Após décadas de divórcio, após milhares de pessoas terem as suas famílias destruídas e serem apresentadas a caricaturas de famílias como se fossem famílias verdadeiras, após, enfim, tanta distância entre a experiência quotidiana e o ideal apresentado (isso quando ele é apresentado), é por acaso de se espantar que as pessoas tenham concepções cada vez mais errôneas sobre a Família? O acúmulo de erros só pode produzir resultados catastróficos, e a corrupção das bases só pode fazer com que todo o edifício venha ao chão. A Família é a célula-mater da sociedade e, quando a Família sofre, a sociedade a acompanha. O Divórcio, por ser um ataque à Família, provocou diversos males à sociedade brasileira, que nós não somos nem mesmo capazes de avaliar em sua totalidade. É urgente diminuir a tendência apresentada pela pesquisa do IBGE que foi citada no início do post; mesmo que digam que isso é utopia, é importante dizer que nós sabemos ser isso paz.

A violência de Recife

Recife é uma cidade violenta. De acordo com o último estudo que eu vi sobre o assunto, no início do ano passado, é a capital mais violenta do país. Lembrei-me disso porque recebi um email hoje que citava alguns dos últimos assassinatos ocorridos na capital pernambucana, e alertava as pessoas para que repensassem os planos de visitarem (ou morarem em) Recife. Eis um trecho:

Amigos e Amigas,
aproxima-se o período de férias, época de viagens, de turismo.  Preocupados com a segurança e a vida de vocês, peço-lhes encarecidamente que não venham passear e muito menos morar em Pernambuco, sobretudo no Recife. Aqui  não existe mais segurança, é uma terra sem lei, onde os marginais condenam pessoas, sobretudo da classe média,  à morte e ficam impunes.
Aqui os bandidos são vistos como vítimas. Aqui não existe solidariedade com os cidadãos assassinados e muito menos com as famílias enlutadas! Aqui a pena de morte existe, mas contra nós da classe média, que pagamos impostos,  pessoas decentes, honestas e trabalhadoras.

O alarmismo não é infundado; os dados mostram. Existe uma equipe de jornalismo que se dedica a “contar” as pessoas assassinadas no Estado. Acabei de acessar e, este ano, estamos com 4042; 29, neste mês de dezembro (isso mesmo, nestes últimos quatro dias). Havia um projeto análogo no Rio de Janeiro, mas acho que foi desativado.

Não sou expert em criminalidade no Brasil e só estive no Rio de Janeiro poucas vezes, a passeio; mas acredito que a principal diferença entre a Veneza Brasileira e a Cidade Maravilhosa é que, lá, há muitos assassinatos relacionados à guerra do tráfico. Aqui, também os há, mas a proporção é bem menor. Aqui morrem pessoas de bem que não têm nada a ver com a criminalidade. Aqui, suspira-se aliviado quando “não acontece nada” em um assalto.

Lembro-me da última vez em que fui assaltado, no início do ano, e da terrível frustração que senti. Caminhava, junto com um amigo, em direção à parada de ônibus, no domingo à noite; o carro parou um pouco à nossa frente, na avenida deserta, e abriu a porta traseira. Vi o assalto segundos antes de sofrê-lo, e não havia nada que pudesse fazer. Desceu o meliante apontando-nos um revólver, levou-nos carteiras e celulares, entrou no carro e foi-se embora. Fomos à delegacia prestar queixa e – horror e vergonha! – o policial que nos atendeu censurou-nos por estarmos andando de noite por aí (!!). Disse-nos ainda que ele próprio “não era doido” de andar em Recife de noite, e que gostava de sair mas estava “sempre em casa às seis horas da noite” (!!!).

Quando a única assistência que um policial pode prestar às vítimas da violência é aconselhá-las a ficarem em casa, e diz que ele próprio não tem coragem de sair às ruas, estamos no fundo do poço. É principalmente por isso, na minha modesta opinião de cidadão recifense, que a cidade está mergulhada no caos: porque as autoridades são pusilânimes, e não cumprem com o seu dever, e não coram de vergonha ao dizê-lo. A Veneza Brasileira afunda por causa da covardia institucionalizada e vista como virtude. Acostumado com estes fatos, eu fico sinceramente feliz quando leio uma notícia de que um assaltante foi morto porque a vítima (ou algum transeunte) reagiu a bala: afinal, deparo-me com alguém que – ao contrário do policial que me atendeu – ainda tem senso de responsabilidade. Mostra-me que ainda há esperança de escaparmos ao naufrágio.

Vaticano contra descriminalização da homossexualidade?

Encontrei em diversos lugares (parece, aliás, que não se fala de outra coisa): Vaticano se opõe à descriminalização da homossexualidade. O que está acontecendo? A França irá (de acordo com a Época, “com o apoio da União Européia”) defender um projeto na Assembléia Geral da ONU “para descriminalizar a homossexualidade”. E “[o] observador permanente do Vaticano na Organização das Nações Unidas (ONU), monsenhor Celestino Migliore, afirmou nesta segunda-feira (1) que a Santa Sé é contrária” a ele.

A Igreja, evidentemente, não é contra tal projeto porque ache que os gays podem ser presos, torturados e executados somente por serem gays, mas sim porque enxerga nele um instrumento a ser usado para a promoção do casamento gay. A partir daqui começam os problemas. Esta reportagem diz que a decisão do Vaticano é “totalmente estúpida e tola” porque “[a] resolução francesa não tem nenhuma relação com casamento gay”; no entanto, saiu em ZENIT o seguinte:

[A] proposta francesa não só busca «despenalizar a homossexualidade», «mas também introduzir uma declaração de valor político que pode gerar sistemas de controle, segundo os quais toda norma – não só legal, mas também relativa à vida dos grupos sociais ou religiosos – que não coloque exatamente no mesmo nível toda orientação sexual poderia ser considerada como contrária ao respeito dos direitos do homem».

«Isso pode converter-se claramente em um instrumento de pressão ou discriminação para quem, só por colocar um exemplo muito claro, considera que o matrimônio entre um homem e uma mulher é a forma fundamental e originária da vida social e como tal deve ser privilegiada», declarou o Pe. Lombardi.

Ora, temos aqui duas posições frontalmente antagônicas. Para o tal Franco Grillini, a resolução não tem nada a ver com o casamento gay; para o pe. Lombardi, pode ter a ver sim. Tenho uma sugestão para resolver o impasse: a Santa Sé já deixou claro que, “[o]bviamente, ninguém quer defender a pena de morte para os homossexuais, como alguns querem dar a entender”. Ora, se não há discordância alguma entre o que quer o projeto proposto pela França e o que quer a Santa Sé, basta então pegá-lo, identificar os trechos litigiosos e os substituir por outros que não deixem nenhuma margem de dúvida sobre o seu alcance. Deseja-se somente impedir que os homossexuais sejam presos ou executados meramente por serem homossexuais? Então, que isso seja dito bem claro! Com certeza a Santa Sé não vai se opôr. Agora, caso a intenção oculta seja facilitar a legalização do casamento gay… então a França não vai aceitar modificar a proposta, e nem o Vaticano vai apoiá-la. É esperar para ver.

Aliás, são palavras do pe. Lombardi:

«Não é por acaso que menos de 50 Estados membros das Nações Unidas aderiram a esta proposta, enquanto mais de 150 não aderiram. A Santa Sé não é a única», conclui.

E aí? Será mesmo que mais de três quartos dos membros das Nações Unidas são “totalmente estúpidos e tolos”? Ou a única que merece tal invectiva é a Santa Sé?

Em tempo: a Catholic League defendeu o Vaticano.

Os últimos dias de Voltaire – por Rodrigo Pedroso

[O texto abaixo foi-me gentilmente enviado pelo Rodrigo Pedroso, por email. Lembrei-me imediatamente dos últimos dias de vida de um outro grande inimigo da Igreja, Antonio Gramsci, cuja possível conversão às portas da morte foi noticiada recentemente. Já havia lido sobre a conversão de Voltaire; sei que é controversa. No entanto, aqui vale o mesmo que foi dito sobre a conversão de Gramsci: é próprio da Igreja abraçar os penitentes que um dia A perseguiram. Todos os homens – Voltaire inclusive – precisam da Igreja; e certamente Ela esteve de braços abertos a esperá-lo até o último suspiro. Que a Virgem Santíssima, Refúgio dos Pecadores, possa ter-lhe ajudado a levantar-se da lama e voltar para Casa, nem que tenha sido ao último suspiro.]

Voltaire não terminou seus dias como ateu. Terminou-os como um desesperado.

No início de sua longa agonia, Voltaire mandou ao abade Gaultier o seguinte bilhete:

Vous m’aviez promis, Monsieur, de venir pour m’entendre; je vous prie de vouloir bien vous donner la peine de venir le plus tôt que vous pourrez. Signé Voltaire. A Paris, le 26 février 1778.

Dias depois, ele ditou a seu secretário e assinou, perante duas testemunhas (o abade Mignot, seu sobrinho, e o Marquês de Villevielle), a seguinte declaração, que foi registrada nos arquivos de M. Momet, tabelião público em Paris:

Je soussigné declaré qu’étant attaqué depuis quatre jours d’un vomissement de sang, à l’âge de quatre-vingt-quatre ans, et n’ayant pu me traîner à l’église, M. le curé de Saint-Sulpice ayant bien voulu ajouter à ses bonnes ouvres celle de m’envoyer M. Gaultier, prêtre; je me suis confessé à lui; et que si Dieu dispose de moi, je meurs dans la sainte Église catholique où je suis né, espérant de la miséricorde divine, qu’elle daignera pardonner toutes mes fautes; si j’avais jamais scandalisé l’Église, j’en demande pardon à Dieu et à elle, 2 mars 1778. Signé Voltaire, en présence de M. l’abbé Mignot mon neveu, et de M. le marquis de Villevielle mon ami.

Depois de assinada a declaração por Voltaire e pelas duas testemunhas, ele ainda ditou mais essas palavras:

M. l’abbé Gaultier, mon confesseur, m’ayant averti qu’on disait dans un certain mode que je protesterais contre tout ce que je ferais à la mort, je déclare que je n’ai jamais tenu ce propos; et que c’est une ancienne plaisanterie attribuée dès longtemps très faussement à plusieurs savants plus éclairés que moi.

Com o consentimento de Voltaire, o abade Gaultier levou a declaração assinada e registrada em cartório ao vigário de St.-Sulpice e ao arcebispo de Paris, para saber se era retratação suficiente para lhe poder dar a absolvição sacramental. Quando o abade Gaultier retornou com a resposta, foi impedido de aproximar-se do moribundo por seus “amigos”, entre eles D’Alembert e Diderot, que passaram a controlar rigidamente o acesso de qualquer pessoa ao doente.

Duas testemunhas da agonia de Voltaire, seu medico M. Tronchin e o marechal de Richelieu, narram que seus últimos dias foram dolorosos e cheios de desespero. Segundo Tronchin, “les fureurs d’Oreste ne donnent qu’une idée bien faible de celles de Voltaire”. Angustiado pelo remorso, alternativamente invocava e blasfemava o nome de Deus em altos gritos: “Jésus-Christ! Jésus-Christ!”. O marechal de Richelieu narrou sua agonia nas Circonstances de la vie et de la mort de Voltaire e nas Lettres Helviennes.Voltaire morreu no dia 30 de maio de 1778. Seu corpo, vestido com roupas de mulher e disfarçado de inválido, foi levado numa carruagem; ao seu lado, um empregado cuja função era mantê-lo na posição. A essa carruagem eram atrelados seis cavalos, de tal modo que as pessoas pensassem que alguém rico viajava. Outra carruagem a seguia, na qual viajavam o abade Mignot, sobrinho de Voltaire, e outros dois primos seus. Viajaram durante toda a noite, e no dia seguinte chegaram à abadia de Scellières. O abade Mignot apresentou ao prior da abadia a declaração de Voltaire acima referida e a resposta do vigário de St.-Sulpice, considerando-a retratação válida. Foi rezada missa de corpo presente e realizado o sepultamento.

Os “amigos” de Voltaire, todavia, sustentaram desde aquela época, que a declaração por ele assinada e registrada em cartório não era sincera, mas apenas um meio de que ele se valeu para que não se recusasse a seu corpo sepultura em cemitério cristão. Com certeza, talvez saberemos a verdade apenas no dia do Juízo.

Os dados sobre a morte e o sepultamento de Voltaire encontram-se no tomo XII de uma revista francesa da época, Correspondance Littéraire, Philosophique et Critique, que circulou até 1793.

Está na página 87 do tomo XII da revista Correspondence littéraire, philosophique et critique, editada pelos iluministas Barão de Grimm e Diderot.

A declaração começa no finzinho da página, continuando na página seguinte da revista.

“A Europa na crise das culturas” – por Joseph Ratzinger

Tradução: Wagner Marchiori
Original: ZENIT (em castelhano)
Grifos e destaques do tradutor

A EUROPA NA CRISE DAS CULTURAS

Pronunciada pelo Cardeal Ratzinger no Mosteiro de Subíaco em 01 de abril de 2005.

Vivemos em um momento de grandes perigos e de grandes oportunidades para o homem e para o mundo; um momento que é também de grande responsabilidade para todos nós. Durante o século passado as possibilidades do homem e seu domínio sobre a matéria aumentaram de forma verdadeiramente impensável. No entanto, seu poder de dispor do mundo permitiu que sua capacidade de destruição alcançasse dimensões que, às vezes, nos horrorizam. Por isso, é espontâneo pensar na ameaça do terrorismo, esta nova guerra sem confins e sem fronteiras. O temor de que o Terror possa se apoderar de armas nucleares ou biológicas não é infundado e permitiu que, dentro dos Estados de direito, se acudisse a sistemas de segurança semelhantes aos que antes existiam somente nas ditaduras; mas, de todo modo, permanece a sensação de que todas estas precauções podem ser insuficientes, pois não é possível e nem desejável um controle global. Menos visíveis, mas nem por isso menos inquietantes, são as possibilidades que o homem adquiriu de manipular a si próprio. Ele (o Homem) mediu as profundidades do ser, decifrou os componentes do ser humano e, agora, é capaz, por assim dizer, de construir por si mesmo o homem, que já não vem ao mundo como dom do Criador, mas como um produto de nosso atuar, produto que, portanto, pode inclusive ser selecionado segundo as exigências por nós mesmos definidas. Assim, já não brilha sobre o homem o esplendor de ser ‘imagem de Deus’, que é o que confere sua dignidade e inviolabilidade, mas somente o poder das capacidades humanas. Não é mais do que a ‘imagem do homem’, mas, de que homem?

A isso tudo se acrescenta os grandes problemas planetários: a desigualdade na repartição dos bens da terra; a pobreza crescente; o esgotamento da Terra e de seus recursos; a fome; as enfermidades que ameaçam o mundo todo e o choque de culturas. Tudo isso nos mostra que o aumento de nossas possibilidades não teve como correspondência um desenvolvimento equivalente de nossa energia moral. A força moral não cresceu na mesma medida que o desenvolvimento da ciência, mas antes, diminuiu, porque a mentalidade técnica encerra a moral no âmbito subjetivo e, pelo contrário, necessitamos de uma moral pública, uma moral que saiba responder às ameaças que estão sobre a existência de todos nós.

O verdadeiro e maior perigo deste momento está justamente neste desequilíbrio entre as possibilidades técnicas e a energia moral. A segurança que precisamos como pressuposto de nossa liberdade e dignidade não pode vir de sistemas técnicos de controle, mas que somente pode surgir da força moral do homem: aonde esta força faltar ou não for suficiente o poder que o homem tem se transformará cada vez mais em poder de destruição.

É certo que existe hoje um novo moralismo cujas palavras chaves são ‘justiça, paz, conservação da criação’, palavras que reclamam valores essenciais e necessários para nós. No entanto, tal moralismo resulta vago e cai, assim, quase que inevitavelmente, na esfera político-partidário. É sobretudo uma pretensão dirigida aos demais e não um dever de nossa vida cotidiana. De fato, o que significa justiça? Quem a define? O que pode produzir a paz? Vimos nas últimas décadas em nossas ruas e em nossas praças como um pacifismo pode se desviar em direção a um anarquismo destrutivo e ao terrorismo. O moralismo político dos anos 70, cujas raízes certamente não estão mortas, foi um moralismo com uma direção errada, pois estava privado de racionalidade serena e, em última instância, colocava a utopia política acima da dignidade do indivíduo, mostrando que podia chegar a desprezar o homem em nome de grandes objetivos.

O moralismo político, tal como o vivemos e ainda hoje estamos vivendo, não só não abre caminho a uma regeneração, mas que a bloqueia. E o mesmo se pode dizer de um cristianismo e de uma teologia que reduzem o cerne da mensagem de Jesus – o “Reino de Deus” – aos “valores do Reino”, identificando esses valores com as grandes palavras-chave do moralismo político, e proclamando-as, ao mesmo tempo, como síntese das religiões. Logo, esquece-se, assim, de Deus, apesar de ser Ele o sujeito e a causa do Reino de Deus. Em seu lugar ficam grandes palavras (e valores) que se prestam a qualquer tipo de abuso.

Este breve olhar sobre a situação do mundo nos leva a refletir sobre a realidade atual do cristianismo e, portanto, sobre as bases da Europa; essa Europa que antes, poderíamos dizer, foi um continente cristão, mas que foi, também, o ponto de partida dessa nova racionalidade científica que nos possibilitou grandes possibilidades e, ao mesmo tempo, grandes ameaças. Certamente o cristianismo não surgiu na Europa e, portanto, não pode ser classificado como religião européia ou a religião do âmbito cultural europeu. Mas, historicamente foi na Europa que recebeu sua ‘marca’ cultural e intelectual mais eficaz e, por isso, fica unido de maneira especial à Europa. Por outro lado, é igualmente certo que foi na Europa, desde os tempos do Renascimento e de maneira mais plena desde os tempos da ‘ilustração’ (1), que se desenvolveu essa racionalidade científica que não somente levou a uma unidade geográfica do mundo na época dos descobrimentos (ao encontro dos continentes e das culturas), mas que, agora, muito mais profundamente, graças à cultura técnica possibilitada pela ciência, imprime seu selo a todo o mundo, ou ainda, em certo sentido o uniformiza.

(1) Considera-se nessa tradução os termos Ilustração/Ilustrada e Iluminismo/Iluminista como conceitos equivalentes (Nota do Tradutor)

E atrás dessas pegadas desta forma de racionalidade, a Europa desenvolveu uma cultura que, de uma maneira desconhecida antes pela humanidade, exclui Deus da consciência pública, seja negando-O totalmente, seja julgando que Sua existência não é demonstrável (é incerta) e, portanto, pertencente ao âmbito das decisões subjetivas, algo, no mínimo, irrelevante para a vida pública. Esta racionalidade puramente funcional, por assim dizer, resultou numa desordem da consciência moral também nova para as culturas que até então existiram, pois considera que racional é só aquilo que se pode provar com experimentos. Dado que a moral pertence a uma esfera totalmente diferente desaparece como categoria e tem que ser identificada de outro modo, pois há que se admitir que a moral é necessária. Em um mundo baseado no cálculo, é o cálculo das conseqüências que determina o que se deve considerar como moral ou não moral. E assim a categoria de bem, como foi exposta claramente por Kant, desaparece. Nada em si é bom ou mal, tudo depende das conseqüências que uma ação permite prever.

Se o cristianismo, por um lado, encontrou sua forma mais eficaz na Europa, é necessário, por outro lado, dizer que também na Europa se desenvolveu uma cultura que constitui a contradição absoluta mais radical não só do cristianismo, mas, também, das tradições religiosas e morais da humanidade. Por isso, compreende-se que a Europa está experimentando uma autêntica “prova de tensão”; por isso se entende também a radicalidade das tensões que nosso continente deve enfrentar. Mas, daqui emerge ainda, e sobretudo, a responsabilidade que nós, os europeus, devemos assumir neste momento histórico: no debate sobre a definição da Europa, sobre sua forma política, não se está apenas em jogo uma batalha nostálgica de “retaguarda” da história, mas, antes, uma grande responsabilidade para a humanidade atual.

Olhemos com mais precisão esta contraposição entre duas culturas que marcaram a Europa. No debate sobre o preâmbulo da Constituição Européia tal contraposição se mostrou em dois pontos controversos: a questão da referência a Deus na Constituição e a menção das raízes cristãs da Europa. Dado que no artigo 52 das Constituição se garantiu os direitos institucionais das Igrejas, podemos, diz-se, estar tranqüilos. Mas, isto significa que as igrejas, na vida da Europa, encontram lugar no âmbito do compromisso político, enquanto que, nos fundamentos da Europa não há espaço para as pegadas de seu conteúdo.

As razões que se oferecem no debate público para esta conclusão NÃO são superficiais e é evidente que mais que esclarecer as verdadeiras motivações, as escondem. A afirmação de que a menção das raízes cristãs da Europa fere os sentimentos de muitos não cristãos que vivem nela é pouco convincente, já que se trata, além de tudo, de um fato histórico que ninguém pode seriamente negar.

Naturalmente esta menção histórica contém uma referência ao presente, pois, ao mencionar as raízes, indicam-se as fontes originais de orientação moral, isto é, um fator de identidade da Europa. A quem, então, se ofenderia? A identidade de quem ficaria ameaçada? Os muçulmanos, a quem freqüentemente se alude nessa questão, não se sentem ameaçados por nossos fundamentos morais cristãos, mas, sim, pelo cinismo de uma cultura secularizada que nega seus próprios fundamentos. E tampouco se ofendem nossos concidadãos judeus pela referência às raízes cristãs da Europa já que essas raízes remontam ao monte Sinai: levam a marca da voz que se fez ouvir sobre o monte de Deus e nos unem nas grandes orientações fundamentais que o Decálogo legou à humanidade. O mesmo se pode dizer da referência a Deus: a menção a Deus não ofende os pertencentes a outras religiões. O que lhes ofende é, antes, a tentativa de construir a comunidade humana sem Deus.

As motivações dessa negativa à referência a Deus e às raízes cristãs NÃO são mais profundas do que permitem intuir os argumentos que nos oferecem. Pressupõem a idéia de que SOMENTE A CULTURA ILUSTRADA RADICAL, que alcançou seu pleno desenvolvimento em nosso tempo, poderia constituir a identidade européia. Junto a ela podem, portanto, coexistir diferentes culturas religiosas com seus respectivos direitos, DESDE QUE E NA MEDIDA EM QUE RESPEITEM OS CRITÉRIOS DA CULTURA ILUSTRADA E A ELA SE SUBORDINEM.

Esta cultura ilustrada fica substancialmente definida pelos direitos “de liberdade”. Baseia-se na liberdade como um valor fundamental que tudo mede: a liberdade de escolha religiosa, que inclui a neutralidade religiosa do Estado; a liberdade para expressar a própria opinião, com a condição de que não se coloque em dúvida este cânone; o ordenamento democrático do Estado, isto é, o controle parlamentar sobre os organismos estatais; a formação livre de partidos; a independência da Justiça; e, finalmente, a tutela dos direitos do homem e a proibição de discriminações. Neste caso, o cânone está ainda em formação, já que também há direitos humanos que são contrastantes, como, por exemplo, no caso do conflito entre o desejo de liberdade da mulher e o direito de viver do que está para nascer.

O conceito de discriminação se amplia cada vez mais e, assim, a proibição da discriminação pode se transformar progressivamente em uma limitação da liberdade de opinião e da liberdade religiosa. Logo não se poderá afirmar que a HOMOSSEXUALIDADE, como ensina a Igreja Católica, constitui uma desordem objetiva na estruturação da existência humana. E o fato de que a Igreja está convencida de que não tem o direito de conferir a ORDENAÇÃO SACERDOTAL ÀS MULHERES é considerado, por alguns, como algo inconciliável com o espírito da Constituição européia.

É evidente que este cânone da cultura ilustrada, que longe está de ser algo definitivo, contêm valores importantes dos quais, precisamente como cristãos, não queremos e nem podemos renunciar; no entanto, é evidente também que a concepção mal definida (ou não definida) de liberdade, que está na base dessa cultura, inevitavelmente implica em contradições; e é evidente que precisamente por causa de seu uso (um uso que parece radical) implica em limitações da liberdade que há apenas uma geração eram inimagináveis. Uma confusa ideologia da liberdade conduz a um dogmatismo que se está revelando cada vez mais hostil para a liberdade.

Sem dúvida, devemos voltar a falar do problema das contradições internas da forma atual da cultura ilustrada. Mas, antes, temos de terminar de descrevê-la. Pertence à sua natureza, enquanto cultura de uma razão que tem finalmente consciência completa de si mesma, o fato de assomar-se de uma ambição universal e conceber-se como completa em si mesma, sem necessidade de ser complementada por outros fatores culturais.

Vêem-se claramente ambas características quando se propõe o tema de quem pode chegar a ser membro da Comunidade européia e, sobretudo, no debate sobre o ingresso da Turquia nela. Trata-se de um Estado, ou talvez melhor, de um âmbito cultural, que não tem raízes cristãs, mas que recebeu a influência da cultura islâmica. Atartuk pretendeu transformar a Turquia em um Estado laicista, tentando implantar o laicismo – amadurecido no mundo cristão da Europa – em um terreno muçulmano.

Podemos nos perguntar se isso é possível: segundo a tese da cultura ilustrada e laicista da Europa, somente as normas e conteúdos da cultura ilustrada podem determinar a identidade da Europa e, conseqüentemente, todo Estado que faz seus esses critérios pode pertencer à Europa. Não importa, ao final, a trama de raízes no qual se implanta esta cultura da liberdade e da democracia. E precisamente por isso se afirma que as raízes não podem entrar na definição dos fundamentos da Europa, tratando-se de raízes mortas que não formam parte da identidade atual. Como conseqüência, esta nova identidade, determinada exclusivamente pela cultura ilustrada, comporta também que Deus não tem nada a ver com a vida pública e com os fundamentos do Estado.

Deste modo, em certo sentido, tudo se torna lógico e plausível. De fato, poderíamos desejar algo melhor que o respeito à democracia aos direitos humanos? Mas, de qualquer maneira, é inevitável a pergunta se esta cultura ilustrada laicista é realmente a cultura, descoberta finalmente como universal, capaz de dar uma razão comum a todos os homens; uma cultura à qual se deveria ter – qualquer um e em qualquer lugar – acesso, ainda que sobre um húmus histórica e culturalmente diferenciado. E nos perguntamos, por fim, se é verdadeiramente completa em si mesma, de modo que não tem necessidade alguma de raízes fora de si.

SIGNIFICADO E LIMITES DA CULTURAL RACIONALISTA ATUAL

Encaremos, agora, estas duas últimas perguntas. À primeira, isto é, à pergunta de se se alcançou a filosofia universalmente válida e totalmente científica na qual se expressaria a razão comum de todos os homens, é necessário responder que, indubitavelmente, alcançou-se conquistas importantes que podem pretender ter uma validade geral: a conquista de que a religião não pode ser imposta pelo Estado, mas que somente pode ser acolhida na liberdade; o respeito dos direitos fundamentais do homem e iguais para todos; a separação dos poderes e o controle do poder.

De todo modo, não se pode pensar que estes valores fundamentais, reconhecidos por nós como geralmente válidos, possam se realizar do mesmo modo em qualquer contexto histórico. Não se dão em todas as sociedades os mesmos pressupostos sociológicos para uma democracia baseada em partidos como acontece no Ocidente; de modo que a total neutralidade religiosa do Estado, na maior parte dos contextos históricos, pode se considerar como uma mera ilusão.

E assim chegamos aos problemas mencionados na segunda pergunta. Mas esclareçamos antes a questão se as filosofias modernas ilustradas, consideradas em seu conjunto, podem ser consideradas como a última palavra da razão comum de todos os homens. Estas filosofias se caracterizam pelo fato de serem positivistas e, portanto, anti-metafísicas, de maneira que, ao final, Deus não pode ter nelas nenhum lugar. Estão baseadas em uma auto-limitação da razão positiva que é adequada no âmbito técnico, mas que quando se generaliza provoca uma mutilação do homem. Como conseqüência, o homem deixa de admitir toda instância moral fora de seus cálculos e – como já vimos – o conceito de liberdade, que num primeiro olhar poderia parecer estender-se de forma ilimitada, acaba levando à auto-destruição da liberdade.

Indubitavelmente as filosofias positivistas contêm elementos importantes de verdade. Porém, esses se baseiam em uma auto-limitação da razão, típica de uma situação cultural – a do Ocidente moderno – e, por isso, não podem ser a última palavra da razão. Ainda que pareçam totalmente racionais, não são a voz da razão mesma, pois também estão vinculadas culturalmente, ou seja, estão vinculadas à situação do Ocidente atual.

Por este motivo não são, absolutamente, as filosofias que, em algum momento, serão válidas em todo o mundo. Mas, sobretudo, deve-se dizer que esta filosofia ilustrada e sua respectiva cultura são incompletas. Corta conscientemente suas próprias raízes históricas privando-se, assim, das forças regeneradoras das quais ela própria surgiu – essa memória fundamental da humanidade sem a qual a razão perde sua orientação.

De fato, considera-se agora válido o princípio segundo o qual a capacidade do homem consiste em sua capacidade de ação. AQUILO QUE SE SABE FAZER, PODE-SE FAZER. Já não existe um “saber fazer” separado do “poder fazer”, porque atentaria contra a liberdade, que é o valor supremo. Mas, o homem sabe fazer muitas coisas e sabe fazer cada vez mais coisas; e se este “saber fazer” não encontra sua medida em uma norma moral, converte-se, como já podemos observar, em poder de destruição.

O homem sabe clonar homens e, por isso, o faz. O homem sabe usar homens como “armazém” de órgãos para outros homens e, por isso, o faz. E o faz porque parece ser exigência de sua liberdade. O homem sabe construir bombas atômicas e, por isso, as faz, estando pela mesma linha de princípios, também disposto a usá-las. No final, até o terrorismo se baseia nessa modalidade de “auto-autorização” do homem e não nos ensinamentos do Corão.

A radical separação da filosofia ilustrada de suas raízes acaba desprezando o próprio homem. O homem, no fundo, não tem nenhuma liberdade – dizem-nos os porta-vozes das ciências naturais – em total contradição com o ponto de partida de toda essa questão. Não se deve acreditar que é (o homem) algo diferente de todos os demais seres vivente e, portanto, também deveria ser tratado como eles – dizem-nos os porta-vozes mais avançados de uma filosofia definitivamente separada das raízes da memória histórica da humanidade.

Havíamos proposto duas perguntas: se a filosofia racionalista (positivista) é estritamente racional e, por conseguinte, universalmente válida, e se é completa. É auto-suficiente? Pode – ou inclusive deve – relegar suas raízes históricas no âmbito do passado e, portanto, no âmbito do que só pode ser válido subjetivamente? Devemos responde a ambas perguntas com um claro NÃO. Esta filosofia não expressa a razão completa do homem, mas, somente uma parte dela e, por causa desta mutilação da razão, não pode ser considerada racional. Logo, é também incompleta e somente pode “se curar” se restabelecer de novo o contato com suas raízes. Uma árvore sem raízes simplesmente seca…

Ao se afirmar isto não se nega tudo que há de positivo e importante nesta filosofia, mas que se afirma, sim, a sua necessidade de ser completada e sua profunda deficiência. E, deste, modo, voltamos a falar dos dois pontos controvertidos do preâmbulo da Constituição européia. O confinamento das raízes cristãs não se revela como a expressão de uma tolerância ‘superior’ que respeita por igual todas as culturas ao não privilegiar nenhuma, mas, antes, como a absolutização de um pensamento e de um estilo de vida que se contrapõe radicalmente às demais culturas históricas da humanidade.

A AUTÊNTICA CONTRAPOSIÇÃO QUE CARACTERIZA O MUNDO DE HOJE NÃO É A QUE SE PRODUZ ENTRE AS DIFERENTES CULTURAS RELIGIOSAS, MAS ENTRE A RADICAL EMANCIPAÇÃO DO HOMEM DE DEUS, DAS RAÍZES DA VIDA, DE UM LADO; E, DE OUTRO LADO, AS GRANDES CULTURAS RELIGIOSAS. SE CHEGARMOS A UM CHOQUE DE CULTURAS, NÃO SERÁ PELO CHOQUE ENTRE AS GRANDES RELIGIÕES – que sempre lutaram uma contra a outra, mas que também sempre souberam conviver juntas – MAS, SIM, POR CAUSA DO CHOQUE ENTRE ESTA RADICAL EMANCIPAÇÃO DO HOMEM E AS GRANDES CULTURAS HISTÓRICAS.

Deste modo, o rechaço à referência a Deus não é expressão de uma tolerância que quer proteger as religiões que não são teístas e a dignidade dos ateus e agnósticos, mas, antes, a expressão de uma consciência que quer ver Deus definitivamente cancelado da vida pública da humanidade, encerrado no âmbito subjetivo de culturas residuais do passado. O RELATIVISMO, que constitui o ponto de partida de tudo isto, converte-se em um dogmatismo que se crê na posse do conhecimento definitivo da razão e com o direito a considerar todo o resto unicamente como uma etapa da humanidade, no fundo já superada, e que pode ser relativizada adequadamente. Na realidade, tudo isso significa que necessitamos raízes para sobreviver e que não devemos perder a Deus de vista se queremos que a dignidade humana não desapareça.

O SIGNIFICADO PERMANENTE DA FÉ CRISTÃ

Estou propondo um rechaço do Iluminismo e da Modernidade? Absolutamente não. O cristianismo, desde o princípio, compreendeu a si próprio como a religião do “logos”, como a religião segundo a razão. Não encontrou seus percussores entre as outras religiões, mas nessa ilustração filosófica que ‘limpou’ o caminho das tradições para sair em busca da verdade e do bem, do único Deus que está além de todos os deuses.

Enquanto religião dos perseguidos, enquanto religião universal, além dos diversos Estados e povos, negou ao Estado o direito de considerar a religião como parte do ordenamento estatal, postulando, assim, a liberdade da fé. Sempre definiu os homens – todos os homens sem distinção – como criaturas de Deus e imagem de Deus, proclamando como princípio, ainda que nos limites imprescindíveis dos ordenamentos sociais, a mesma dignidade a todos.

Neste sentido a Ilustração é de origem cristã e não é por acaso que tenha nascido única e exclusivamente no âmbito da fé cristã, ali onde o cristianismo – por desgraça – converteu-se tradição e religião do Estado. Ainda que a filosofia, enquanto busca de racionalidade – também de nossa fé – tenha sido sempre uma prerrogativa do cristianismo, havia-se domesticado em demasia a voz da razão.

Foi e é mérito da Ilustração haver recolocado em questão estes valores originais do cristianismo e o haver devolvido à razão sua própria voz. O Concílio Vaticano II, na constituição sobre a Igreja no mundo contemporâneo, sublinhou novamente esta profunda correspondência entre cristianismo e Ilustração, buscando chegar a uma verdadeira conciliação entre a Igreja e a modernidade, que é o grande patrimônio que ambas as partes devem tutelar.

Ora bem, faz-se necessário que ambas partes reflitam sobre si mesmas e estejam dispostas a se corrigirem. O cristianismo deve se lembrar sempre de é a religião do “logos”. É fé no “Creatur Spiritus”, no Espírito criador, do Qual procede tudo o que existe. Esta deveria ser precisamente hoje sua força filosófica, pois o problema se funda SE O MUNDO VEM DO IRRACIONAL – e sua razão não é senão um subproduto, talvez até prejudicial, de seu desenvolvimento – OU SE O MUNDO PROVEM DA RAZÃO – e é, conseqüentemente, seu critério e sua meta.

A fé cristã se inclina por essa segunda tese, tendo, assim, desde o ponto de vista puramente filosófico, realmente ‘boas cartas para jogar’, apesar de que muitos hoje consideram somente a primeira tese como moderna e racional por antonomásia. No entanto, uma razão surgida do irracional – e que é, em última instância, ela própria irracional – não constitui uma solução para nossos problemas. Somente a razão criadora, e que se manifestou no Deus crucificado como Amor, pode verdadeiramente nos mostrar o caminho.

No diálogo tão necessário entre laicistas e católicos, os cristãos devem estar muito atentos para se manterem fiéis a esta linha de fundo: viver uma fé que provem do “logos”, da razão criadora, e que, portanto, está também aberta a tudo o que é verdadeiramente racional.

Ao chegar a esse momento queria, em minha qualidade de crente, fazer uma proposta aos laicistas. Na época da Ilustração se tentou entender e definir as normas morais essenciais dizendo-se que seriam válidas ‘ etsi Deus non daretur’, mesmo no caso de Deus não existir. Na contraposição das confissões religiosas e na crise da imagem de Deus, tentaram-se manter os valores essenciais da moral por cima das contradições e buscar uma evidência que os fizessem independentes das múltiplas divisões e incertezas das diferentes filosofias e confissões. Deste modo, quiseram assegurar os fundamentos da convivência e, em geral, os fundamentos da humanidade. Naquele momento da história, pareceu que era possível, pois as grandes convicções de fundo surgidas no cristianismo em grande parte resistiam e pareciam inegáveis. Mas agora já não é assim.

A busca de uma certeza tranqüilizadora, que ninguém pudesse contestar independentemente de todas as diferenças, falhou. Nem sequer o esforço, realmente grandioso, de Kant foi capaz de criar a necessária certeza compartilhada por todos. Kant negou que se pudesse conhecer a Deus no âmbito da razão pura, mas, ao mesmo tempo, colocou Deus, a liberdade e a imortalidade como postulados da razão prática, sem a qual, coerentemente, não era possível, para ele, a ação moral.

A situação atual do mundo não nos leva a pensar que talvez tivessem razão de novo? Digo-o com outras palavras: a tentativa, levada ao extremo, de considerar as coisas humanas menosprezando completamente Deus nos leva cada vez mais ao abismo, ao encerramento total do homem. Deveríamos, então, voltar ao axioma dos Ilustrados e dizer: mesmo quem não consiga encontrar o caminho da aceitação de Deus deveria buscar viver e dirigir sua vida “veluti si Deus daretur”, como se Deus existisse. Este é o conselho que dava Pascal a seus amigos não crentes; é o conselho que queríamos também dar a nossos amigos que não crêem. Deste modo, ninguém fica limitado em sua liberdade e nossa vida encontra um novo sustentáculo e um critério cuja necessidade é urgente.

O que mais necessitamos nesse momento da história são homens que, através de uma fé iluminada e vivida, façam que Deus seja crível nesse mundo. O testemunho negativo de cristãos que falavam de Deus e viviam de costas a Ele, obscureceu a imagem de Deus e abriu a porta à incredulidade. Necessitamos de homens que tenham o olhar fixo em Deus, aprendendo n’Ele a verdadeira humanidade.

Necessitamos de homens cujo intelecto seja iluminado pela luz de Deus e a quem Deus abra o coração, de maneira que seu intelecto possa falar ao intelecto dos demais e seu coração possa abrir o coração dos demais.

Somente através de homens que tenham sido tocados por Deus é que Deus voltará entre os homens. Necessitamos de homens como Bento de Nursia, que em um tempo de dissipação e decadência, penetrou na solidão mais profunda conseguindo, depois de todas as purificações que sofreu, levantar-se até a Luz, regressar e fundar Montecasino, a cidade sobre o monte que, com tantas ruínas, reuniu as forças das quais se formou um mundo novo.

Deste modo, Bento, como Abraão, chegou a ser pai de muitos povos. As recomendações a seus monges apresentadas no final de sua “Regra” são indicações que nos mostram o caminho que conduz para o alto, a sair da crise e dos escombros. “Assim como há um mau zelo de amargura que separa de Deus e leva ao inferno, há, também, um zelo bom que separa dos vícios e conduz a Deus e à vida eterna. Pratiquem, pois, os monges este zelo com a mais ardente caridade, isto é, ‘adiantando-se para honrar uns aos outros’; tolerem com suma paciência suas debilidades, tanto corporais como morais […] pratiquem a caridade fraterna castamente; temam a Deus com amor; […] e absolutamente nada anteponham a Cristo, que nos leve a todos à vida eterna” (capítulo 72).

União Européia nega patente para pesquisa com CTEHs

[Tradução bem livre]

União Européia rejeita patente que “envolve necessariamente a utilização e destruição de embriões humanos”

1º de Dezembro de 2008 (LifeSiteNews.com) – O Escritório de patentes da União Européia decidiu que, nos termos da Convenção Européia de Patentes (European Patente Convention – EPC), ele não pode oferecer uma patente para o então chamado “Projeto de Células-Tronco de WARF/Thomson”, argumentando que ele envolve a destruição de embriões humanos. O projeto é sobre um método para a obtenção de culturas de células-tronco embrionárias de primatas, incluindo humanos, e foi apresentado pela “Wisconsin Alumni Research Foundation” (WARF) em 1995.

O comitê de financiamentos do Escritório de Patentes decidiu que não é possível conceder uma patente para uma invenção que envolve necessariamente a utilização e destruição de embriões humanos. O EPC não permite que sejam patenteadas invenções cuja exploração comercial seja contrária à ordem ou à moralidade públicas.

Wesley Smith, um advogado americano e escritor [especializado] em questões bioéticas, disse que a decisão é extraordinária pois é a primeira vez em que há uma indicação da União Européia de que o estatuto moral do embrião humano está em causa.

Embora uma decisão do Departamento de Patentes não proíba o uso de embriões em pesquisas, Smith escreve que isto vai “desencorajar os que poderiam usar embriões comercialmente”.

“Em todo caso”, Smith escreveu, “não vamos mais ouvir sobre zelotas religiosos impondo suas vontades aos racionais modernos. A Europa possui uma cultura tão secular quanto se pode encontrar no mundo”.

Eu vim trazer a Espada

Estou a ler (é uma edição portuguesa) o testemunho da conversão do Scott Hahn e de sua esposa do protestantismo ao catolicismo; o título em português (de Portugal) é “Todos os caminhos vão dar a Roma”, uma tradução sem dúvidas genial do genial título original do livro, que é “Rome, sweet home”. Já tive a oportunidade de dizer aqui recentemente que toda história de conversão é espetacular (aliás, o muçulmano que se converteu ao catolicismo e foi batizado na Vigília Pascal por SS Bento XVI está narrando a sua conversão em ZENIT, e vale a pena a leitura), mas existe um aspecto particularmente doloroso na conversão do Scott Hahn que eu gostaria de mencionar aqui. Trata-se da divisão.

Protestante anti-católico “de carteirinha”, casado com uma protestante, o Scott foi, pouco a pouco, ao ler as Escrituras Sagradas, descobrindo como a Bíblia era, na verdade… católica. E ao ver como a Fé Católica era a única que fazia sentido, e como era deficiente a doutrina protestante, ele não teve outra opção – não sem profundos dramas de consciência, que a narrativa autobiográfica deixa transparecer muito bem – a não ser tornar-se católico. Ao fazê-lo, o seu mundo desabou. Transcrevo duas passagens significativas sobre o tema, uma de sua lavra, outra da de sua esposa (está no Capítulo 6):

Scott: A Vigília Pascal de 1986 foi um momento de verdadeira alegria sobrenatural, unido a uma grande tristeza natural. Recebi o grande slam sacramental: o Baptismo condicional, a Penitência, a Confirmação e a Primeira Comunhão. Regressei ao banco e sentei-me ao lado da minha amargurada esposa [então protestante], que amava com todo o coração. Pus-lhe o braço à volta, e começámos a rezar.

[…]

Kimberly: Diante dos meus próprios olhos, o Scott estava a comprometer-se com uma Igreja que nos separaria de momento, e talvez para sempre. Nunca mais poderíamos receber a comunhão lado a lado, a não ser que um dos dois mudasse de maneira de pensar (e não era difícil imaginar quem teria de ser!). Este grande signo de unidade cristã transformou-se no nosso símbolo de desunião. E a alegria das pessoas era como um punhal no meu coração, porque o que os alegrava era para mim causa de uma dor indescritível.

Ao ler essas emocionantes páginas, não pude deixar de lembrar-me daquela passagem das Escrituras Sagradas: Não julgueis que vim trazer a paz à terra. Vim trazer não a paz, mas a espada. Eu vim trazer a divisão entre o filho e o pai, entre a filha e a mãe, entre a nora e a sogra, e os inimigos do homem serão as pessoas de sua própria casa. (Mt 10, 34-36). Particularmente eloqüente é a narrativa da Kimberly, quase uma paráfrase – quiçá involuntária – do texto bíblico: “[e]ste grande signo de unidade cristã transformou-se no nosso símbolo de desunião”.

A verdade dura e crua, incontestável, é que não há comunhão possível entre luz e trevas (cf. 2Cor 6, 14), e não poderão caminhar juntos dois homens se não tiverem chegado previamente a um acordo (cf. Am 3, 3). A verdade é que Cristo veio à terra – palavras d’Ele! – para trazer também a divisão. A união, entre os que crêem, e a irreconciliável separação entre os que crêem e os que não crêem. Isto significa que, se nós quisermos levar a sério a Fé que temos – como, graças a Deus, a família Hahn levava -, não poderemos fazer acordos promíscuos nem fingir que estamos vivendo na mais plena comunhão quando há a radical separação da Fé. Quando ergue-Se, intransponível, a Cruz de Cristo.

Ao mesmo tempo, que belíssimo testemunho de amor a Deus sobre todas as coisas que nos deu o casal Hahn! O marido, em consciência, preferiu separar-se espiritualmente de sua esposa para abraçar a Esposa de Cristo; a esposa preferiu permanecer ao lado do marido, mesmo sentindo-se atraiçoada. Ambos suportando a mais amarga solidão que poderiam sonhar experimentar. Ambos rezando um pelo outro, encontrando em Deus as forças necessárias para atravessar o momento de extrema provação. Eles não fizeram “acordos práticos”; nem o Scott achou que não valia a pena sacrificar tudo o que tinha – e ele sacrificou muito! – para se tornar católico, nem a esposa dele achou que valia a pena “tornar-se católica” só para acompanhar o marido. Deram ambos, com suas vidas, um testemunho vivo da Divisão que Cristo afirmou ter vindo trazer à terra; deram ambos testemunho forte da importância de se amar a Deus sobre todas as coisas.

Abraçar a Fé é sacrificar inúmeras outras coisas, não há dúvidas disso; mas a Divisão que a palavra de Cristo traz é superabundantemente sobrepujada pela União na Grande Família de Deus, na Igreja Católica e Apostólica, à qual todos são chamados. Vale a pena tornar-se católico, mesmo que custe caro; vale a pena sacrificar tudo o que se tem por amor a Deus. Também são palavras de Nosso Senhor no Evangelho: Em verdade vos digo: ninguém há que tenha deixado casa ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe, ou filhos, ou terras por causa de mim e por causa do Evangelho que não receba, já neste século, cem vezes mais casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e terras, com perseguições e no século vindouro a vida eterna (Mc 10, 29-30). É, portanto, necessário às vezes deixar algumas coisas (e até mesmo algumas pessoas); é necessário que Cristo traga a espada, a divisão. Mas no final vale a pena. Scott e Kimberly Hahn conseguiram, no final, a grande graça de se tornarem uma família verdadeiramente católica; com a graça de Deus, conseguirão “no século vindouro a Vida Eterna”, pois este é o prêmio reservado por Deus àqueles que sabem amá-Lo apesar de todas as coisas, a despeito dos sacrifícios que sejam necessários. Sigamos pois sempre a Cristo, apesar dos sacrifícios, ainda que seja doloroso; pois é promessa d’Aquele que sempre cumpre as Suas promessas termos – já nesta vida! – “cem vezes mais” do que abandonamos e, um dia, a Glória de estarmos com Ele nos Céus.

UNE expulsa da UFSC

Ih, fora! Ih, fora! Ih, fora!

Às vezes a gente vê certas coisas que nos fazem manter a esperança na juventude. Fiquei sabendo graças a um comentário feito aqui no Deus lo Vult! que a caravana abortista da UNE – patrocinada pelo Ministério da Saúde – foi expulsa da Universidade Federal de Santa Catarina. A íntegra do episódio (em qualidade de celular) está disponível no youtube.

Não tinha ouvido falar nada sobre o assunto, que ocorreu no dia quatro de setembro deste ano. Encontrei a informação num BLOG, no qual está transcrita uma nota do sr. Sérgio Colle, professor da UFSC:

Uma caravana de estudantes da União Nacional dos Estudantes (UNE) adentrou o campus da UFSC, embarcada num novíssimo ônibus do Ministério da Saúde (do ministro Temporão, aquele do plebiscito do aborto). Invadiram o prédio do Centro Tecnológico para interromper as aulas e fazer baderna. Foram expulsos pelos estudantes e professores, não sem violência física. Travestidos de palhaços e outras fantasias alegóricas estranhas à universidade e portando a bandeira nacional, migraram para outras dependências do campus, continuando a baderna. O absurdo é que enquanto o Ministério da Saúde provê um luxuoso meio de transporte a esses estudantes profissionais, subsidiados com verbas públicas de R$ 700 mil por ano, não há transporte para os segurados do SUS, não apenas para transportá-los aos hospitais, mas até para dar assistência aos familiares, na amarga situação de resgatar os cadáveres dos que morrem às portas dos hospitais.

Aparentemente, o episódio não encontrou nenhuma repercussão na mídia oficial, limitando-se a ser divulgado por blogs na grande rede de computadores. Mas aconteceu; e fica o exemplo. Os baderneiros foram expulsos pelos estudantes, que não aceitaram ter o Centro Tecnológico transformado em picadeiro. Vergonhoso o Governo Federal disponibilizar gordas verbas para que os militantes comunistas transvestidos de estudantes atrapalhem as aulas, fazendo apologia ao crime do aborto e pregando futilidades estranhas ao ambiente universitário. No entanto, houve um dia em que estudantes e professores se levantaram contra esta degeneração do papel estudantil. Nem tudo está perdido.

O Natal e a Paixão

Iniciamos o advento, preparando-nos para comemorar o Natal de Nosso Senhor. A cor litúrgica desta época do ano – o roxo – lembra-nos um outro tempo litúrgico que iremos vivenciar mais à frente: a Quaresma. À primeira vista, contudo, parece não haver similaridade entre o Advento e a Quaresma: no primeiro, estamos à espera do Nascimento do Salvador e, no segundo, da Sua Paixão, Morte e Ressurreição. O que o Nascimento de Cristo tem a ver com a Sua Morte e Ressurreição?

A mim, afigura-se como se a Igreja quisesse envolver-nos todos no Mistério da Encarnação em Sua totalidade, remetendo, no Natal do Salvador, à Sua Dolorosa Paixão; a penitência que fazemos ao longo destas quatro semanas incompletas deixa entrever isso, unindo os dois tempos litúrgicos que estão logicamente unidos (afinal, Jesus não morreria na Cruz se não tivesse um dia nascido, e Ele nasceu para nos resgatar com o Seu preciosíssimo Sangue – o que só se consumou no alto do Calvário). Ademais – não nos esqueçamos -, foi diante de Jesus Menino que Simeão disse à Virgem Santíssima que uma espada iria transpassar-Lhe a alma (cf. Lc 2, 35), de novo aludindo, no meio dos festejos natalinos, às dores da Semana Santa.

É-nos bastante comum pensarmos na Cruz como a consumação do Sacrifício de Cristo, que perdoou os nossos pecados – e é correto pensarmos assim. No entanto, muitas vezes nos esquecemos que este Sacrifício começou trinta e três anos atrás: começou com um recém-nascido envolto em faixas e colocado em uma manjedoura. Quando o Verbo Se fez carne. Quando a Divindade assumiu a nossa humanidade. É sem dúvidas humilhante e indigno da Majestade Divina que um Deus Eterno assuma um corpo material; mas, ao contrário, que grande honra é para a Humanidade poder contar, entre os seus membros, com um Deus! Sim, é já no Nascimento do Salvador que a Humanidade começa a ser elevada; se ela ainda não se poderia considerar redimida, estava já sem dúvidas muitíssimo bem representada.

O Divino Sangue que pagou pelos nossos pecados foi aquele vertido na Cruz do Calvário; mas o Salvador por outras vezes verteu o Seu Sangue Precioso, o que já seria suficiente para satisfazer a Justiça Divina ofendida pelo pecado. Em particular, no Horto das Oliveiras, quando Jesus suou sangue; comentando sobre esta passagem, diz-nos São Padre Pio:

É o sangue do seu Filho Bem-Amado que caiu sobre a Terra para a purificar. É o Sangue do seu Filho que ascende ao Seu trono para reconciliar a Justiça ultrajada. A alegria é na verdade muito mais veemente do que a dor.

Jesus chegou então ao fim do caminho doloroso?

Não. Ele não quer limitar a torrente do seu amor! É preciso que o homem saiba quanto ama o Homem-Deus. É preciso que o homem saiba até que abismos de abjeção pode levar amor tão completo. Embora a Justiça do Pai esteja satisfeita com o suor do Sangue preciosíssimo, o homem carece de provas palpáveis deste amor.

O homem precisa de provas do Amor de Deus! Mil e uma maneiras poderia encontrar Nosso Senhor para reconciliar o homem com Deus; não só o sangue do Getsêmani, como também, muitos anos antes, o sangue que o Menino Jesus derramou na Sua circuncisão. Mas Ele quis amar até o fim, até a Cruz.

Olhemos para o Nascimento do Deus Menino, com os olhos fitos na Cruz do Calvário: olhemos para o Sacrifício em favor de nós, iniciado quando o Verbo resolveu fazer-Se carne. Olhemos para a Paixão iniciada três décadas antes de se consumar no alto do Gólgota. Olhemos para o amor deste Deus que é capaz de fazer tantas coisas por amor a nós. E, verdadeiramente contritos, esperemos com alegria o nascimento do Deus Menino, vivendo bem este tempo de preparação, a fim de que possamos um dia encontrar Aquele que nasceu, viveu e morreu por amor de nós. Que a Virgem Maria, Mãe do Verbo Encarnado, conceda-nos a graça de um santo advento.