O problema inexistente

Auguro que a este gesto meu [a retirada das excomunhões] siga o solícito empenho por sua [da FSSPX] parte de levar a cabo ulteriores passos necessários para chegar à plena comunhão com a Igreja, dando testemunho assim de fidelidade verdadeira e verdadeiro reconhecimento do magistério e da autoridade do Papa e do Concílio Vaticano II.
[Bento XVI, audiência geral de quarta-feira última (28/01)]

Estas foram as palavras ditas pelo Santo Padre, o Papa Bento XVI, na audiência geral da quarta-feira passada, que ensejaram as notícias que circularam no meio católico segundo as quais o Papa havia pedido aos lefebvristas que reconhecessem o Concílio Vaticano II. No dia seguinte, quinta-feira 29 de janeiro, o Rorate Caeli publicou uma notícia (aqui reproduzida) que dizia ter Dom Fellay reconhecido teologicamente o Vaticano II (segundo informações do cardeal Castrillón Hoyos). Estranhamente, não vi nenhuma repercussão mais séria sobre estas declarações que me parecem, todavia, de importância capital.

Antes de mais nada, é preciso assumir que não se tem (pelo menos eu não tenho) muito claro o que vem a ser “reconhecer teologicamente” o Vaticano II, mantendo no entanto reservas sobre alguns pontos do Concílio. Isso pode significar qualquer coisa. No entanto, tenho esperanças de que signifique algo próximo da maneira como eu próprio vejo o Concílio, que não é de modo algum “invenção minha” mas, ao contrário, é a posição mais sensata que eu observo nos meios católicos que freqüento.

Trata-se de uma coisa simples: em suma, pode ser definido como reconhecer no Concílio aquilo que ele se propõe a ser, nem mais e nem menos. Baseia-se em alguns princípios, entre os quais dois são, a meu ver, fundamentais: (a) a radical incapacidade de que a Doutrina da Igreja tenha sido “adulterada” e (b) a legitimidade da decisão da Igreja de apresentar a Doutrina Católica da maneira como ela foi apresentada. Passemos rapidamente em revista estes (no meu entender) dois princípios chaves.

Quanto ao primeiro, trata-se da atitude de se reconhecer intelectualmente, a priori, antes mesmo de se debruçar sobre os textos conciliares, que a Doutrina da Igreja não foi modificada pelo simples fato de que ela não o pode ser. Assim, o esforço intelectual passa a ser não  o de “caçar heresias” nos textos do Vaticano II (expediente muitas vezes utilizado por alguns que se pretendem defensores da Igreja), mas sim o de buscar interpretar o que foi dito na única maneira em que é lícito interpretá-lo, i.e., em plena conformidade com tudo o que foi dito anteriormente pela Esposa de Nosso Senhor. Não se trata de um debate para se saber “se o Vaticano II foi heterodoxo”; esta resposta prescinde de qualquer debate porque, por definição, um Concílio Ecumênico legítimo não pode trair a Fé da Igreja. Não adianta perder tempo com isso; deve-se ter como um axioma, como um a priori, como um princípio basilar a ser estabelecido antes de todo o resto, que o Concílio não pode ter alterado a Fé Católica Imutável. Pôr isso em dúvida é perder tempo e correr o risco de se chegar a conclusões disparatadas.

Portanto, é verdade por definição que o Vaticano II não alterou a Fé da Igreja. No meio do turbilhão de idéias heterodoxas que encontramos nos meios católicos dos nossos dias, é preciso afirmar ousadamente a Fé Católica, não admitindo que os inimigos da Igreja utilizem-se indevidamente de textos conciliares para justificar as suas loucuras. É preciso dizer que “a Igreja de Cristo subsiste na Igreja Católica” não contradiz de nenhuma maneira a verdade anteriormente afirmada de que a Igreja de Cristo é a Igreja Católica e somente Ela; é preciso dizer que as pessoas se salvam única e exclusivamente por meio da Igreja Católica, ou pertencendo-lhe às estruturas visíveis ou à Sua “alma” nos casos de Ignorância Invencível, e que dizer que o Espírito de Cristo não se recusa servir-se das seitas e dos cismas como meios de salvação não significa de nenhuma maneira afirmar um inexistente “poder salvífico” paralelo àquele que detém a Igreja de Nosso Senhor; é preciso dizer que os “elementa ecclesiae” que possuem as seitas e cismas não lhes são próprios, sendo portanto equiparáveis aos “vestigia ecclesiae” com a diferença terminológica de que “vestígio” indica uma reminiscência de algo que já se foi um dia, não havendo propriamente “vestígio” de catolicismo em um protestante que nunca foi católico; é preciso dizer que o homem possui uma Natureza Decaída devido ao Pecado Original, e que nenhuma “semente divina” no sentido de natureza sobrenatural intrínseca é-lhe imanente; é preciso dizer que a liberdade religiosa equipara-se, para os falsos cultos, à tolerância religiosa, com a diferença terminológica de que o Estado em Si considerado não tem potestade para arbitrar entre o bom e o mau (embora tenha capacidade para reconhecer a Igreja como verdadeira) e, portanto, não “tolera” propriamente os falsos cultos (quem os tolera é a Igreja); é preciso dizer que os bispos não têm um poder colegial próprio que seja independente do Primado do Romano Pontífice; é preciso, enfim, reafirmar com ousadia tudo que é de Fé Católica e Apostólica, a despeito do que alguns “defensores do Concílio” digam. E isso pode e deve ser feito sem nenhum escrúpulo de consciência, porque não pode ser um verdadeiro defensor do Concílio quem, ao mesmo tempo, ataca a Fé de sempre da Igreja que, conforme vimos, simplesmente não pode ser modificada nem por um Concílio Ecumênico.

Quanto ao segundo princípio, trata-se da atitude de filial submissão ao Magistério da Igreja, abstendo-se a Igreja Discente de arvorar-se Igreja Docente e de criticar como intrinsecamente maus alguns textos conciliares. Trata-se, se for para dizer em duas palavras, de, primum, afirmar a possibilidade de interpretação do Vaticano II em consonância com toda a Tradição da Igreja e, secundum, afirmar a potestade da Igreja de utilizar-Se dos termos que melhor Lhe aprouver para a expressão da Verdade Revelada, por mais que eles nos pareçam inadequados ou por mais que nos pareça que termos melhores pudessem ter sido escolhidos.

Ainda que existam, de fato, termos melhores que poderiam ser aplicados e maneiras melhores de se dizerem as coisas que foram ditas, não é este o ponto. O que deve ser salvaguardada é a ortodoxia (no sentido de “existência de interpretações ortodoxas”) das coisas que foram ditas da maneira como foram ditas; isto é que é o fundamental. Aqui, trata-se de evitar a atitude de (infelizmente!) não poucos católicos segundo os quais as “ambigüidades” conciliares excluem a possibilidade de interpretação ortodoxa do Vaticano II. Deixemos por ora de lado as discussões sobre as supostas ambigüidades, sua gênese e seus remédios; não é para que neguemos a possibilidade de interpretações disparatadas do Concílio. Mas é para que não neguemos a possibilidade de interpretações ortodoxas dele.

Postas estas duas coisas de maneira muito clara, verifica-se então que a questão central das discussões com rad-trads e com modernistas simplesmente não existe, porque por definição a Fé da Igreja não pode ser modificada por um Concílio Ecumênico Legítimo. Isto nos permite montar o seguinte silogismo:

Um Concílio Ecumênico Legítimo não pode modificar a Fé da Igreja (maior);
O Concílio Vaticano II foi um Concílio Ecumênico Legítimo (menor);
Logo, o Concílio Vaticano II não pode ter modificado a Fé da Igreja (conclusão).

Outra conclusão diferente não cabe. Não faz o menor sentido discutir-se a ortodoxia do Concílio, porque tal problema é inexistente; por definição, o Concílio, se é Concílio Legítimo, é ortodoxo. Se não fosse ortodoxo, não seria Concílio Legítimo (seria algo do tipo do “latrocínio de Éfeso” ou outra coisa similar). Esta é a única maneira que eu conheço de se encarar catolicamente a crise atual. Tenho esperanças de que as declarações de mons. Fellay de que “reconhece teologicamente” o Vaticano II apontem para alguma coisa parecida com isso. Reconhecendo a radical impossibilidade de modificação da Fé da Igreja por um Concílio Ecumênico, pode-se enfim buscar a interpretação dos textos conciliares da única maneira em que é lícito interpretar-lhes: em consonância com todo o Magistério da Igreja, sem rupturas, sem “novidades”, sem heresias. Permita Deus que a FSSPX possa enveredar por este caminho, já tantas vezes apontado pelo Papa Bento XVI, única via que pode conduzir as negociações entre a Igreja e a Fraternidade a um bom termo.

Tempo e Eternidade

Publico o texto-base de uma palestra minha. Perdão pelo caráter de esboço, todavia, talvez seja de proveito a alguém. Segue:

Tempo e Eternidade

45 minutos.


Imagine um banco que credita na sua conta 86.400 reais toda manhã.  O único problema é que não é acumulativo. Toda noite, o banco zera tudo o que você não usou durante o dia. Então, o que você faz? Saca cada centavinho. Todos nós temos um banco como este: o tempo. Toda manhã, o tempo credita 86.400 segundos. Toda noite, zera, como se perdido, tudo o que você não investiu com um bom propósito. Não se acumula. Não permite empréstimo. Todo dia, 86.400 segundos e toda noite, zera.

Com a distância, dá-se outra coisa: é um obstáculo ao qual vivemos vencendo. Dos próprios pés, ao cavalo, ao carro, ao avião… Mas o tempo permanece inconquistável. Não pode ser expandido, acumulado, comprado, hipotecado, adiantado ou adiado. É uma coisa completamente fora do nosso controle. Nunca voltará e talvez muito em breve deixará de vir.

A contagem da nossa vida dá-se de forma interessante. Comemoramos o aniversário pelo tempo que passamos, mas a realidade da morte se faz tão presente, que podemos pensar na vida como um grande relógio, em que o tempo corre e nós não sabemos quando ele vai parar.

Deus colocou no coração de cada homem um desejo de infinito. Ora, tudo que existe, existe com um propósito. Deus não poderia criar um desejo despropositado, porque, quando criou o mundo, viu que tudo era bom. O homem caído tende a perverter este desejo de infinito: é por isso que vemos declarações como “o homem se torna imortal pela história” ou, quando falece um ente querido, que ele “está vivo em nossa memória”. Isto tudo tem sementes de verdade. Mas Deus quando fez o homem, logo disse que tudo era muito bom. O homem quando criado, não morria. E o homem caído, deseja não morrer.

Exemplos de perversão do desejo de infinito são inúmeros. Querer fazer uma obra tão grandiosa – seja ela filosófica, literária, arquitetônica – que permaneça para sempre e de certa forma o torne imortal é a manifestação mais comum. É certo que o filho, de certo modo, continua o pai, mas pergunte-lhe se o pai falecido não lhe faz falta! É claro que faz! Porque a memória de uma pessoa é distinta da própria pessoa. Uma foto contém a pessoa mas não É a pessoa. Ninguém mata as saudades de um amigo distante por webcam ou por MSN.

Eclesiastes, capítulo 3

O QUE DEUS FEZ SUBSISTIRÁ SEMPRE! Ortega y Gasset, em sua Rebelião das Massas, fala de um homem-massa que surgiu no mundo na modernidade. O homem-massa não aceita ordens, porque não aceita superiores. O homem-massa não se quer melhorar, mas reduzir o mundo inteiro a sua mediocridade. Mas o cristão é um nobre e a nobreza obriga! Noblesse oblige! O cristão não se contenta com a sua mediocridade, porque olha o alto. Aspira às coisas do alto, onde está Cristo, não às coisas do mundo.

Ao homem sem Cristo, a vantagem que têm sobre os brutos não é nada. Posto que nenhuma obra humana é meritória, por si só, do céu. O céu, a salvação, Deus no-la dá gratuitamente. Deus, salvando, nos salva gratuitamente.

A Missa de Requiem de Mozart, famosíssima, tem um movimento – para mim, o mais belo –, uma parte do “Dies Irae” a que foi dado nome de “Rex tremendae”, do verso “Rex tremendae majestatis, qui salvandos salvas gratis. Salva me, fons pietatis”. Dá a diferença da majestade divina e da nossa posição em relação a Deus pelo tom usado no verso: quando se fala da majestade de Deus, o coro vem vigoroso, quando se pede perdão, uma voz suplicante.

A relação do Tempo e Eternidade é sempre a relação do pecador com o Rei de majestade tremenda. Se o temor de Deus é fonte de sabedoria, o temor do tempo é a chave da Eternidade. O cristão deve, como S. Josemaría costumava dizer, fazer o ordinário extraordinariamente. Aproveitar o tempo é uma questão de justiça. O “banco” do tempo, o Senhor, dá o tempo, que é um dom. O dom do tempo não pode ser multiplicado em absoluto, mas é multiplicado quando preenchido de maneira justa.

Para cada coisa há um momento debaixo dos céus. Convém ao homem ajustar o seu tempo ao tempo de Deus, louvando-o com o seu tempo, não só em oração – o que é, de fato, fundamental – mas fazendo todas as coisas do melhor jeito possível. Plantar, colher, matar, curar, destruir, construir, chorar, rir, gemer, bailar, atirar pedras, recolher pedras, abraçar, se separar, buscar, perder, guardar, jogar fora, rasgar, costurar, calar, falar, amar, odiar, guerrear, pacificar. O ordinário, extraordinariamente.

O pecador que vive no tempo, contemplando o Senhor, contemplando a Eternidade, deve querer mudar. Deve querer merecer a vida eterna. Mas ninguém a merece por si.

Mas “Deus amou tanto o mundo, que entregou o seu Filho único, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”. Antes de Cristo, o Santo dos Santos era velado. Agora o próprio Deus, o Verbo Encarnado, desvela-se e se nos apresenta a nós como “caminho verdade e vida”

Vida! Que vida? A vida em plenitude. Que consiste em viver no tempo em união com Deus, de modo a estar unido com Ele, no céu. A vida em Cristo é luta constante. E necessitamos de um olhar atemorizado a Deus, à Eternidade para termos o próprio sentido da nossa vida terrena.

Se não vivemos para a Eternidade, então a vida é vazia. Isto é, se não vivemos em Cristo, com Cristo e por Cristo, nunca teremos a vida em plenitude. Deus nos amou e nos amou até o fim. Também nós devemos renovar o nosso amor a Deus em todos os momentos, glorificando-o no uso do tempo, tendo em vista a Eternidade, até o fim, porque ao cristão é dada a obrigação de ser outro Cristo.

Qual deve ser a nossa postura, então, diante da Eternidade? Dizem os biólogos que o olhar humano vê as coisas por dois corpúsculos, um detectando luz e outro, cor. Podemos dizer que o olhar cristão tem três, a detectar temor, admiração e súplica. Temor do próprio Deus, da sua imensa majestade, da danação eterna – a qual merecemos nós, se Deus usar de justiça — , admiração, pelo que vemos – a criação reflete Deus como um espelho difuso e as obras meritórias dos homens o refletem ainda mais, porque somos feitos à sua imagem, e pelo que vamos ver; se vemos agora como que por um espelho difuso, então veremos face a face e súplica, para que Deus nos julgue por Sua misericórdia e não pelo que merecemos.

Em tudo, devemos ver a grandeza de Deus, que nos deve fazer perceber quão pequeno é o tempo e quão dilatada é a eternidade, o temor da justiça divina, que nos deve fazer odiar o pecado, por nos fazer merecer o inferno e não o convívio de Deus e dos santos e suplicante, ao mesmo tempo de agradecimento e suplicante de fato.

Se são esses os componentes do olhar cristão, o olho é janela da alma. É pelo temor, pela admiração e pela súplica, que a Eternidade – e consequentemente o próprio Deus – deve entrar em nossa alma e transformá-la: uma “alma-massa” em uma alma nobre! Uma alma que se obrigue a ser melhor! A dar mais por Deus e pelas almas! A fazer tudo como se tudo dependesse de si e rezar como se tudo dependesse de Deus! A fazer o ordinário extraordinariamente, a contemplar a eternidade – triplamente – nas obras de Deus e dos homens: sabendo admirar o que nos aproxima dela e a odiar o que nos afasta.

“A esperança teologal e a  certeza de que esta curta vida culmina na felicidade eterna são para o cristão precisamente uma fonte de consolo e fortaleza”[1]. A vida do homem no mundo é uma luta constante. Mas ao enxergar o mundo pelas lentes da eternidade, quando se vive em Cristo, quão suave são as tribulações mundanas! Quão grande é o que é de Deus, quão breve o tempo e quão dilatada é a eternidade!

“Se estivermos em relação com Aquele que não morre, que é a própria Vida e o próprio Amor, então estamos na vida. Então vivemos.” [2]

[1] Pe. Marcial Maciel, LC: “Tempo e eternidade”

[2] S. S. Bento XVI: “Spe Salvi”
Edito, acrescentando o “Rex tremendae majestatis”, regido por J. E. Gardiner:

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