Basta ouvir os fados

Voltando para Recife, relembrando com gosto o tempo de férias. De descanso; viajar rejuvenesce e dá novas forças. Novas idéias. Abre novos horizontes.

A parada forçada em Lisboa fez-me adquirir um CD de fado. Gosto da triste música portuguesa (ok, não é sempre triste; mas gosto particularmente do fado triste português). Em particular, hoje fui e voltei do trabalho ouvindo “Não venhas tarde”. É um primor.

“Não venhas tarde”, / dizes-me tu com carinho. / Sem nunca fazer alarde / do que me pedes baixinho. / “Não venhas tarde!”, / e eu peço a Deus que, no fim, / teu coração ainda guarde / um pouco d’amor por mim!

O sujeito do fado trai a mulher. Tu sabes bem / que eu vou pra outra mulher. / Que ela me prende também, / e eu só faço o que ela quer. Mas ele não conta isso como quem se gaba, como nas músicas que costumamos escutar nos dias de hoje. Ele conta com uma profunda dor de alma, que transparece na melodia triste. Dá quase para perceber o rosto do eu-lírico corando de vergonha ao dizer como age a mulher dele: Tu estás sentindo / que te minto e sou cobarde. / Mas sabes dizer sorrindo: / “Meu amor, não venhas tarde!”.

Sou cobarde! Não, ele não se orgulha do que faz. Ao contrário, tem vergonha. Afirma ser covarde. Afirma rezar para que a mulher ainda tenha amor – um pouco que seja – por ele, ao final. Apesar de tudo. E a mulher não “faz barraco” – sem nunca fazer alarde… – pelo que ele faz. Ao contrário, apenas lhe pede que não volte tarde. Ele, escravo dos seus pecados, sempre cai miseravelmente: E eu volto sempre mais tarde / porque não sei fugir dela. Mas tem consciência – e medo – das conseqüências que podem advir de suas atitudes:

Sem alegria, / eu confesso: tenho medo / que tu me digas um dia: / “Meu amor, não venhas cedo!” / Por ironia, / pois nunca sei onde vais: / que eu chegue cedo algum dia / e seja tarde demais!

Ok, e qual o ponto aqui? É óbvio que esta situação não é bonita, claro que não é um modelo a ser buscado ou uma situação nostálgica de “manutenção de aparências” que se deseje resgatar. O ponto é justamente este: trata-se de uma situação condenável que todos sabem – até o próprio marido infiel – ser condenável. Até o adúltero sabe que está errado!

Lembro-me também d’O Príncipe e o Mendigo do Mark Twain. Em uma certa passagem, quando o Príncipe – em trajes andrajosos e na companhia de uma guilda de ladrões – afirma ser o Rei da Inglaterra, recebe uma dura reprimenda dos bandidos. “Todos nós somos uns criminosos que não valemos nada” – cito de memória, mas o sentido é este -, “mas temos um grande amor e respeito pelo nosso rei”. E segue-se um grito de “longa vida ao Rei da Inglaterra!”. Qual o ponto? É precisamente a enorme diferença entre quem erra sabendo estar errado e quem, ao contrário – de novo: como nos nossos tristes dias… -, exalta e defende o erro como se ele fosse a coisa certa. Os bandidos do livro do Mark Twain não exaltavam a bandidagem. O eu-lírico infiel do fado não exalta a própria infidelidade. E isto faz toda a diferença.

Todas as (falsas) polêmicas sobre revolução moral e hipocrisia da sociedade não percebem este ponto fundamental: ninguém tem a pretensão de transformar o mundo em um lugar perfeito de onde o pecado seja totalmente erradicado, mas isso não nos dá o direito de eliminar a diferença entre o que é certo e o que é errado. Não é porque a prostituição é “a profissão mais antiga do mundo”, e que sempre existiu, que nós devemos conferir-lhe cidadania moral. Não é porque existem – e sempre existiram – mulheres que fazem aborto que nós devemos deixar de o classificar como uma atitude condenável. Os princípios são ideais que devem pautar os atos concretos. Não são os atos concretos que determinam quais são os princípios.

No fundo, é como dizia Garrigou-Lagrange: a tolerância com as falhas concretas dos seres humanos não implica (e, aliás, nem pode implicar) em uma transigência para com os princípios morais. A existência de maridos infiéis (coisa que, até onde me conste, também sempre existiu) não torna o adultério aceitável. No entanto, muito pior do que uma turba de adúlteros é um único sujeito – por bom marido que seja! – que ouse defender o adultério como um comportamento normal e louvável. Pior do que Sodoma e Gomorra inteiras é um indivíduo – por casto que seja! – que tenha a petulância de fazer a apologia do homossexualismo como uma atitude normal e moralmente aceitável. A diferença entre ambos não é meramente quantitativa, e sim de essência. Se é verdade que errar é humano, defender o erro com pertinácia é diabólico. Afinal, como a Igreja sempre ensinou, negar a verdade conhecida como tal é pecado contra o Espírito Santo. Ou, nas imprecações das Escrituras Sagradas: “Ai daqueles que ao mal chamam bem, e ao bem, mal, que mudam as trevas em luz e a luz em trevas, que tornam doce o que é amargo, e amargo o que é doce!” (Is 5 20).

Não precisamos que os arautos da revolução moral nos venham atirar em face a existência onipresente do mal do mundo, quer como justificativa para aboli-lo enquanto conceito, quer para revogarmos os decretos morais que, desde que o mundo é mundo, em maior ou menor grau, pautaram a totalidade das sociedades conhecidas. Não precisamos que nos digam que certas coisas sempre existiram, pois isso nós sabemos muito bem – basta ouvir os fados! Entre uma coisa ter sido sempre feita e esta coisa ser moralmente correta, no entanto, vai um abismo que os inimigos da moral insistem em ignorar. E, neste abismo, infelizmente caem muitos que se deixam levar pelo canto-de-sereia dos revolucionários modernos.

“Não à manipulação da Santa Missa!” – Frei Ângelo Bernardo

[Publico outro artigo muito oportuno do Frei Ângelo Bernardo. Este, foi publicado originalmente no Salvem a Liturgia!. Fala sobre a instrumentalização da Santa Missa, com o conseqüente desvio de sua finalidade última: ao invés de servir para levar a Deus, termina por servir às paixões humanas. Triste.

Também eu escrevia sobre isso, há alguns anos – inclusive republiquei aqui no Deus lo Vult! em 2009: “Estou cansado de missinhas animadazinhas, estou cansado de padres que parecem muito mais organizadores de encontros sociais que Sacerdotes do Deus Altíssimo, estou cansado de ‘fiéis’ que vão à missa para ‘viver o amor de Cristo’ e não para participar do Sacrifício do Filho de Deus! Será que sou só eu? Será que somente eu sinto vontade de poder assistir duas missas iguais, independente de quem seja o celebrante? Será que sou só eu que tenho dificuldade em enxergar, na Igreja, o Cristo Vítima e Sacerdote por detrás dos cantos protestantes no momento da consagração?”. E fico feliz de saber que não sou somente eu. O frei Ângelo também me entende. E tenho a esperança de que, junto com ele, outras almas católicas – milhares de almas católicas! – possam compartilhar conosco este sentimento de perplexidade diante da situação da Igreja atual. E de súplicas ao Altíssimo para que Se levante, e defenda a Sua própria causa.]

Não à manipulação da Santa Missa!

Estou cansado de ter que procurar uma Santa Missa, com dignidade e sem modas, como uma agulha no palheiro. Parece até uma sina: onde chego, logo na porta principal da Igreja já está o cartaz com o convite para a “Missa de Cura e Libertação”, com Padre Fulano de Tal… ou pior ainda, quando olho para o outro lado do mural, está agendada a “Missa Sertaneja”; no grupo de oração da semana que vem, “Missa Carismática”… (ah, se Padre Pio ainda vivesse para ouvir o que fizeram com os ‘grupos de oração’…). Por outro lado, quando encontro algumas pessoas que costumam assistir a Santa Missa em sua forma extraordinária ou, vulgarmente chamada de “Tridentina”, chamam-na de “Missa de Sempre”. É que não tenho a pele branca para ver quão vermelho de irritação eu fico quando ouço certos “jargões”.

“Missa de Cura e Libertação”, “Missa Sertaneja”, “Missa Carismática”, “Missa de Sempre”… a que ponto chegamos! Manipular o único e eterno memorial do Sacrifício do Calvário… quanto desgosto sinto! Acredito que seja o mesmo que muitos, quando têm que aturar padres (e alguns até ‘muito bem preparados’, academicamente), falando abobrinhas sentimentais…

Foi-se o tempo em que o início da Santa Missa era feito pelo Padre e não pelos cantores; foi-se o tempo em que o ato penitencial levava a uma contrição autêntica; foi-se o tempo em que o glória era um louvor ao Pai e ao Cordeiro e não um “hino trinitário”; foi-se o tempo em que o salmo era responsorial e não de “meditação”; foi-se o tempo em que a homilia era o momento de catequese; foi-se o tempo em que o canto do Sanctus proclamava, já antecipadamente, a vinda escatológica Do que vem em nome do Senhor; foi-se o tempo em que, após a consagração, era o momento de olhar o Senhor e adorá-lo e não cantar ou bater palmas, e que apenas ‘quem falava eram os sinos’; foi-se o tempo em que a comunhão era de joelhos e na boca; foi-se o tempo em que se guardava silêncio, mesmo que breve, após a comunhão… enfim, foi-se o tempo de tantas coisas… e estas “tantas coisas” geraram Santos, verdadeiros homens de fé e uma fé madura, não infantilizada, à estatura de NSJC.

É certo que a Palavra de Deus é viva e eficaz e que nos toca ao coração. Mas não se trata de banalizar ou denigrir o seu valor. Ela é cortante e penetra o íntimo das nossas almas. A grande questão é o desvio de foco. Se hoje temos concepções de “Missas” como essas, é devido ao subjetivismo de tantos padres, ou seja, eles desviam o foco de NSJC e levam-no para si. Também é certo que o sacerdote age in persona Christi, mas ele deve se re-cordar (= trazer ao coração) sempre o exemplo do Senhor Jesus Cristo que, “embora sendo de condição divina, não se prevaleceu de sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e assemelhando-se aos homens… Por isso, Deus o exaltou soberanamente…” (Fl 2,6-7.9).

Mas, o que realmente me deixa consternado é a manipulação da Santa Missa para os gostos pessoais e intimistas de cada padre… E nem adianta dizer que é o povo quem quer assim. Errado! Todo sacerdote (ou presbítero, como queiram chamar), recebeu uma formação específica da Santa Igreja Católica Apostólica e Romana. Ora, se assim o é, então, deve obedecer, como prometeram no dia da sua ordenação a tudo o que está escrito e não transgredir ou inventar ou, pior ainda, modificar, sem poder algum para tal coisa. O povo recebe o que o padre dá.

Penso que o dever primeiro de cada sacerdote é a salvação e cura das almas, a começar da sua própria. E rezo para que cada qual tenha consciência do que faz e que temam o juízo. De fato, constato que muitos já não têm mesmo medo da condenação eterna e se afugentam na historinha: ah, o céu ou inferno é aqui e agora… Que Deus lhos perdoe por tanta insanidade e falta de fé. Esta sim é a grande “crise” pela qual muitos deveriam passar. Mas apenas o fazem no sentido mais fraco do termo, que seja, modificação e não no sentido real da palavra, de ‘purificação’. Sim, é necessária uma grande purificação dos pensamentos, palavras, atos e até de omissões!

Acredito que muitos dos que lêem o que escrevo fazem apenas com o intuito de criticar ao final das leituras; mas se pararem para “pensar”, isto é, avaliar onde está o ‘peso’ real das coisas, hão de concordar que os erros não estão em quem lhos constatam; antes, estão nos que são os sujeitos das situações, no caso, dos Padres em relação às concepções da Santa Missa.

Concluindo esta breve conversa, dirijo-me aos “Ministros do Divino Altar”. Se tiverem consciência de que cada um é realmente “um outro Cristo nesta terra”, começarão a executar os seus ofícios com um gostinho de céu, como uma antecipação já aqui e agora do Reino que pregamos e anunciamos. Espero que ao ensinarem as ovelhas confiadas a cada um, quando falarem em “Missa de Cura e Libertação”, “Missa Sertaneja”, “Missa Carismática”, “Missa de Sempre”, façam com a consciência de que em cada denominação errônea dessas, ainda assim, não desviem o foco: NSJC!

Drummond, os mortos, o corvo, o Reveillon

E passou 2010, e chegou 2011. Findou-se, aliás, a primeira década do século XXI. Do terceiro milênio! Muita coisa poderia (e deveria) ser escrita sobre isso, mas não o vou fazer agora. Estou – ainda – longe de casa, e com um (terrivelmente egoísta!) desejo incontrolável de pensar em mim próprio. De ver o que foi feito no ano que passou, e o que pode ser feito no ano que se inicia agora.

Eu nunca gostei (acho que já disse isso algures) das listinhas de ano-novo. Mas pretendo fazer algumas coisas bem concretas este ano. Porque, na verdade, olhando para trás, fico com uma incômoda sensação de ter desperdiçado muito tempo. Bastante coisa foi feita! Mas quantas mais não seriam, caso eu me empenhasse mais? E não quero esperar que esta cantilena vire um epitáfio.

Aqui, em Paris, quando fomos ao cemitério na terça ou quarta-feira, havia alguns corvos por lá. São bonitos estes animais agourentos. E, em um certo momento, um deles grasnou (ou seja lá qual for o tipo de som que os corvos fazem): cras, cras. E eu, imediatamente, lembrei-me da história de Santo Expedito e respondi-lhe sozinho: hodie. Sozinho no cemitério – meu irmão olhava não-sei-o-quê mais à frente -, os mortos e um corvo a me darem lição de moral. A me dizerem com eloqüência como o tempo passa rápido; dentro em breve, são apenas os ossos no cemitério. Cras, cras, cras… é preciso dizer não. É preciso dizer hodie. É preciso fazer já.

É de Drummond aquele trecho sobre o ano: “Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar e entregar os pontos. Ai entra o milagre da Renovação e tudo começa outra vez… com outro número e outra vontade de acreditar que daqui para adiante vai ser diferente”. Sim, com todos os clichês do mundo, o Ano-Novo tem esta espécie de (digamos assim) poder: a capacidade de fazer acreditar que, doravante, vai ser diferente. Pode ser diferente. Precisa ser diferente.

Porque, se dermos ouvidos aos corvos – cras, cras, cras -, restar-nos-á somente a inscrição fúnebre do que poderia ter sido. E ninguém quer isso. O “milagre” da Renovação – tradicionalmente expresso nas listinhas de coisas a fazer no ano novo – é esta capacidade de acreditar que as coisas podem mudar. É uma auto-crítica, com propostas concretas de pontos a serem melhorados; é, na verdade, no plano natural, aquilo que o arrependimento (e posterior Confissão) faz no plano sobrenatural. E por que não aproveitar o momento, para consertar tudo aquilo que, na vida inteira, precisa ser consertado?

Ano novo, vida nova – é um clichê. Mas não deixa de ter lá a sua verdade. Como um clichê também é o texto de Drummond e, nem por isso, menos verdadeiro. Mudar é preciso – dizem-nos os corvos, os mortos, os poetas, o Reveillon. Que 2011 seja melhor do que 2010, é o que eu desejo a mim e a todos. Feliz ano novo!