A má formação do clero e a validade dos Sacramentos

Uma leitora me perguntou por email se a falta de Fé dos sacerdotes poderia macular a eficácia dos sacramentos ministrados por eles. Por exemplo, se um sacerdote que não acredita na Transubstanciação poderia celebrar uma Missa válida (ou seja, uma Missa na qual a Hóstia Consagrada se tornasse, real e substancialmente, no Deus Vivo e Verdadeiro), ou se um bispo que descrê na Igreja Hierárquica poderia ordenar verdadeiros sacerdotes (ou seja, homens capazes de “confeccionar” os Sacramentos da Nova Aliança).

A resposta curta e direta para a pergunta é que os ministros celebram validamente os Sacramentos ainda que particularmente não tenham Fé. É o que consta nos manuais de teologia sacramental: “La validez y eficacia de los sacramentos no dependen de la ortodoxia ni del estado de gracia del ministro” (OTT, Manual de Teologia Dogmática, Livro IV, Parte III, Seção I, Cap. IV, §9., 1., b.). Quanto a este ponto não parece haver polêmica digna de nota, estando as posições donatistas já derrotadas há muitos séculos pela Igreja.

Mas há uma outra questão afim. É que todo Sacramento exige matéria, forma e ministro com intenção de fazer o que faz a Igreja. Sabe-se que a intenção suficiente para a validade dos sacramentos é a mera intenção virtual (Summa, IIIa, q.64, a.8, ad.3); no entanto, mesmo esta precisa ser minimamente qualificada. O próprio Aquinate, dois artigos depois, diz que se alguém quiser realizar não um sacramento, mas uma paródia, este anula o sacramento (id. ibid., a.10, Resp.). E o mesmo Ludwig Ott afirma poucos parágrafos depois (id. ibid., 2., b., c’.) o seguinte (tradução livre):

Segundo a opinião hoje quase geral dos teólogos, para a administração válida dos sacramentos requer-se [da parte do ministro] a intenção interna, isto é, uma intenção tal que não apenas tenha por objeto a realização externa da cerimônia sacramental, mas também o seu significado interno. É insuficiente a intenção meramente externa que foi considerada como suficiente por numerosos teólogos da escolástica primitiva (…) e muitos teólogos dos séculos XVII/XVIII.

Esta intenção meramente externa tem por objeto a realização da cerimônia religiosa com seriedade e nas circunstâncias devidas, porém deixando de lado o seu significado religioso interno. Como é natural, essa intenção não responde ao dever de fazer o que faz a Igreja, nem ao papel do ministro como servidor de Cristo, nem à finalidade do signo sacramental que em si é ambíguo e recebe sua determinação da intenção interna; nem tampouco está de acordo com as declarações do Magistério (cf. Dz 424, «fidelis intentio»).

A distinção é relevante. A lhe dar crédito, parece que é preciso matizar a resposta anteriormente dada. Parece, assim, que a mera falta de Fé do ministro não é suficiente para invalidar o Sacramento ministrado; no entanto, é possível cogitar de invalidade por defeito de intenção (não meramente “por falta de Fé”) se o ministro deliberada e conscientemente descrer da realidade sacramental.

Alguns exemplos. Certo padre nutre dúvidas sobre a realidade da transubstanciação; não consegue crer na Presença Real, mas sofre por conta disso, e celebra reta e zelosamente a Santa Missa. O Sacramento é válido; tal é, precisamente, a história do milagre de Lanciano. A intenção, neste caso, era reta, ainda que faltasse ao padre, em certa medida, a fé eucarística.

Outro exemplo. O sujeito rompe formalmente com a Igreja Católica. No entanto, incoerente mas honestamente, continua acreditando em Nosso Senhor Jesus Cristo. Batiza, respeitando a fórmula trinitária. O Sacramento é válido, sem dúvidas: esta é uma das definições doutrinárias mais antigas, da época do Cristianismo Primitivo.

Terceiro exemplo. O indivíduo é um simplório, tem uma profunda limitação intelectual, ou quem sabe pertence a uma cultura estranha (digamos, é um silvícola em seu primeiro contato com o europeu), mas se encantou com a pregação dos missionários, largou tudo o que tinha e se fez ordenar sacerdote. Não entende, absolutamente!, todos os detalhes da teologia sacramental católica, mas decorou os ritos da Santa Missa e, quando a celebra, entende estar praticando o culto dos católicos. Ainda neste caso o Sacramento é válido pela retidão do sacerdote.

Ou seja, o sacramento é válido, ainda que o ministro não acredite nele, se essa descrença for uma mera fraqueza; é válido, ainda que o ministro negue o dogma católico, se a negação do dogma versar sobre um ponto alheio ao Sacramento que se está ministrando; e é válido, ainda que o ministro não compreenda direito o que está fazendo, se essa incompreensão for fruto de uma formação insuficiente e não-culposa. Não há, nestes casos, defeito de intenção capaz de invalidar o Sacramento.

Caso diferente ocorre quando o padre conhece o ensino da Igreja sobre determinado sacramento e, conscientemente, com malícia, quer fazer algo diferente do que a Igreja entende com o sacramento. Por exemplo, se o padre sabe que a Igreja ensina ser a Missa a renovação incruenta do Sacrifício do Calvário, mas acha que a Igreja está errada, e quando ele “preside a Eucaristia” o que ele efetivamente quer celebrar é um banquete simbólico festivo, então neste caso o Sacramento é inválido. Não porque — atenção! — falte-lhe Fé, mas porque lhe falta a intenção de fazer o que faz a Igreja neste caso específico. No mesmo exemplo, se este mesmo padre acredita ter o poder de perdoar os pecados, e se ao ouvir confissão ele quer realmente absolver o penitente de suas faltas, então a sua confissão é válida mesmo que a sua Missa não o seja.

Pelo que vejo, eu acredito que o problema da má-formação dos sacerdotes, no geral, enquadra-se no exemplo da formação insuficiente que referi acima. São pessoas de reta intenção que podem até ter idéias bem equivocadas sobre o dogma católico; mas não o fazem com o animus específico de agir contra o que a Igreja ensina, o que faz toda a diferença. Na pior das hipóteses, têm a intenção de celebrar a cerimônia cristã que (acreditam que) a Igreja celebra, e isso é suficiente para garantir a intenção virtual capaz de conferir validade aos sacramentos. Com esses não é preciso se preocupar.

Ao contrário, é preciso se acautelar dos padres orgulhosos, rebeldes, que negam conscientemente o ensino sacramental da Igreja; e dos que celebram de maneira debochada, ou mecânica. Um e outro podem ministrar sacramentos inválidos por defeito de intenção. Não simplesmente por conta de má formação, mas de uma formação má. Porque para invalidar um sacramento não é suficiente ser ignorante, é preciso saber que está fazendo errado, é preciso querer fazer errado. Por mais que a situação do clero atual seja deplorável, não me parece que haja entre ele tanta perversidade a ponto de transformar a validade dos sacramentos em uma questão exageradamente preocupante.

Considerações sobre a ignorância

A Igreja Católica e Apostólica é o único caminho instituído por Deus para que os homens sejam salvos. A salvação de cada homem, assim, só é possível no grêmio da Igreja de Cristo, «fora da qual não há salvação» (extra ecclesiam nulla salus). O dogma é pouco conhecido e pior compreendido, muitas vezes mesmo por aqueles que têm alguma compreensão do que significa ignorância invencível.

O engraçado é que não tem como ser diferente. Dado que existe uma única natureza humana da qual todos os homens participam, dado que esta natureza humana encontra-se ferida após a Queda dos nossos primeiros pais, dado que nenhum homem finito é capaz de, por conta própria, reparar as ofensas causadas à Majestade infinita de Deus, dado que Nosso Senhor Jesus Cristo, sendo simultaneamente Homem e Deus, é o único que pode oferecer à divindade a propiciação de que a humanidade necessita, dado que Ele instituiu pessoalmente uma Igreja para continuar na História a Sua obra salvífica, enfim, levadas em consideração todas essas coisas, a conclusão não pode ser outra: para que a pessoa alcance o Céu ela precisa receber a salvação deste canal de graças que é a Igreja. Nenhuma outra teoria é capaz de manter a coerência do sistema. O “fora da Igreja não há salvação” nem precisava ser um dogma, uma vez que é corolário imediato da cosmovisão cristã.

A consequência disso é simples: quem sustenta que possa haver salvação independente da Igreja de Cristo é porque não compreende a própria cosmovisão evangélica. Não se trata de um erro periférico e escusável; é um engano somente possível se a pessoa desconhecer elementos básicos da Doutrina Católica (como o fato de que a natureza humana não é por si só capaz da visão beatífica), ou deles discordar. Que haja uma multidão (mesmo de católicos!) para a qual este dogma cause estranheza, isso só atesta que as pessoas não conhecem a Revelação ou n’Ela não acreditam. Não se trata de engano de pouca monta, mas de erro grave.

Todo erro é erro, toda heresia é heresia, e a negação pertinaz de qualquer verdade que se deva crer com Fé Divina acarreta, ipso facto, a perda de toda a Fé. Assim é. Mas há certas verdades que, por sua sofisticação, por sua especificidade, impõem não poucas dificuldades à pertinácia concreta em sua negação. Por exemplo, a Doutrina Católica crê e professa que em Jesus Cristo existem duas naturezas, a humana e a divina, unidas perfeitamente em uma só pessoa e uma só hipóstase: assim reza o Concílio de Calcedônia. O monofisismo, assim, é uma heresia condenada. Acontece que a profissão do monofisismo com a assertividade necessária à sua caracterização como negação pertinaz das definições de Calcedônia, ao menos aqui no Ocidente pós-cristão, é uma coisa bastante rara e difícil: na prática as pessoas não pensam nessas coisas, e aliás geralmente nem sequer dispõem da bagagem teológica necessária para formular o problema — muito menos para lhe dar resposta contrária à definida pelo Magistério. Em uma palavra, é possível não saber nada sobre um determinado ponto do dogma cristão sem, com isso, quebrar o vínculo da Fé. É possível até mesmo sustentar, por ignorância, posição contrária, de modo leviano e irrefletido, sem que isso consista formalmente em uma heresia capaz de destruir a Fé (digamos, é possível que alguém, por saber que Jesus Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, pense, equivocadamente, que n’Ele há apenas uma única vontade, sem nunca dar maior importância ao problema: tal pessoa permaneceria assim integralmente católica).

Aquela «hierarquia das verdades da Fé» da qual fala o Catecismo (CCE, §90) e o Vaticano II (Unitatis Redintegratio, 11) obviamente não significa que algumas verdades são “mais verdadeiras” do que outras; diz respeito, tão-somente, ao modo de compreensão de determinadas verdades, à forma como elas podem ser conhecidas: se defluem imediatamente dos rudimentos do anúncio evangélico ou se, diferentemente, exigem maior aprofundamento doutrinário e teológico para serem compreendidas.

Quero dizer, assim, que o simples erro a respeito de alguns pontos do dogma católico não tem, por si só, força suficiente para elidir a chama da Fé na alma de quem assim erra. O erro do herege é um erro qualificado pela pertinácia. Quero dizer, também, que essa qualificação — essa pertinácia — não está facilmente ao alcance das pessoas menos esclarecidas: quanto mais sofisticado o dogma, e quanto menos instruído o católico, mais difícil lhe é negá-lo com a pertinácia exigida para a caracterização da heresia.

Mas essa, digamos assim, exceção da heresia somente se dá na medida do (des)conhecimento do fiel sobre o assunto. Em outras palavras, o fiel escapa de ser herege precisamente porque não compreende que precisa(va) aderir a tal ou qual ponto com Fé Divina e Católica. Disso decorrem duas coisas: primeiro, que a medida é sempre a capacidade de compreensão concreta do fiel acerca do ponto do dogma objeto da discordância; segundo, que não é possível, para o fiel ignorante, racionalizar a própria ignorância: quanto mais ele medita sobre o assunto e nele se aprofunda, mais expande a sua capacidade de compreensão — mais se afastando portanto da ignorância, e mais lhe passando a ser exigido.

O que tudo isso tem a ver com a salvação fora da Igreja daqueles que estão em ignorância invencível? Ora, a mesma lógica se aplica lá e cá. Primeiro, que há uma “hierarquia de ignorâncias”, uma vez que as coisas nas quais uma alma concreta deve acreditar derivam por assim dizer da realidade de maneiras diferentes: umas mais próximas (por exemplo, “há um Deus que recompensa os bons e pune os maus”), outras, mais remotas (como a verdade histórica do Cristianismo). Isso significa que é sempre preciso matizar: não reconhecer a origem divina da Igreja Católica, por exemplo, é sem dúvidas mais culpável para um professor da Sorbonne à época de São Luís do que para o adolescente médio sob as metrópoles brasileiras contemporâneas. Não dá para dizer que alguém é certamente culpável do seu erro.

Segundo, que a medida da escusabilidade não é o que a pessoa conhece, e sim o que a pessoa pode conhecer. O que exime de responsabilidade é a ignorância invencível, é uma ignorância qualificada, e não o simples fato de se ignorar algum aspecto da realidade. Da mesma forma que os aspectos mais imediatos da realidade obrigam a consciência com mais vigor, aqueles mais sofisticados, ou mais ocultos nas circunstâncias concretas, impõem-se com mais ampla margem de dispensabilidade — é certo. Mas mesmo estes, quanto mais meditados, menos “ignoráveis” se tornam. Se é verdade que não há como demarcar a linha para além da qual o fulano está certamente negando a verdade conhecida como tal, do mesmo modo não dá para dizer que está tudo bem em não ser católico na situação X ou Y. Em princípio, o (re)conhecimento da Igreja pode ser exigido a qualquer pessoa que vive onde Ela está presente. As situações extraordinárias (que certamente serão julgadas com Justiça pelo Todo-Poderoso) exigem condições também extraordinárias e não podem, absolutamente, ser pressupostas. Não dá para afirmar que alguém esteja certamente escusado do seu erro.

Terceiro, que não é possível racionalizar a ignorância. Não é possível diagnosticar alguém em ignorância invencível para se furtar ao dever de o evangelizar; não é também possível se auto-diagnosticar ignorante para, assim, estabelecer os deveres naturais mínimos que se estaria obrigado a observar. A ignorância é por sua própria natureza desconhecida, não podendo ser identificada com certeza nem em si mesmo, nem no próximo; depois, a ignorância é inconstante, alargando-se ou se encolhendo conforme a pessoa tenha menores ou maiores condições de se debruçar sobre o problema religioso; por fim, a ignorância é periclitante, tendendo sempre para a sua superação na verdade do Evangelho.

De todo o exposto decorre que se é verdade que muitos se salvam por serem ignorantes, não é no entanto possível erigir a ignorância à categoria de caminho de salvação.

Há um outro aspecto da ignorância que merece ainda duas palavras. É a respeito da ignorância quanto à própria situação de pecado. Sabe-se que o recurso ao Sacramento da Penitência exige o arrependimento de todos os pecados mortais; da mesma forma, o acesso à comunhão eucarística pressupõe o estado de graça. É possível a alguém encontrar-se em situação objetiva de pecado sem o saber — portanto, sem pecar formalmente. Mas a isso se aplica também tudo o que se falou acima.

O sujeito que vive more uxorio com alguém que não é sua esposa legítima é bastante análogo ao fulano que se encontra fora da Igreja Católica. Um e outro estão em uma situação que, considerada em si mesma, priva-os do caminho da salvação. Um e outro podem ter a sua responsabilidade individual mitigada pela ignorância em que se encontram. Mas essa ignorância não pode ser transformada em pastoral eclesiástica nem em um caso, nem no outro. Tudo isso é por demais evidente para quem mantenha intacta a sua visão do todo.

Dizer simpliciter que os divorciados recasados não precisam abandonar os seus cúmplices é o equivalente ao Cimi dizer que os índios não precisam se converter ao Evangelho. Do fato (verdadeiro) de ser possível que um índio específico não seja aos olhos do Senhor culpado por não se ter feito batizar não segue que se possa institucionalizar um órgão da Igreja para prestar assistência ao paganismo enquanto tal. Do mesmo modo, o fato (verdadeiro) de uma concubina específica poder não ser ré de adultério perante o Justo Juiz não autoriza a Igreja a internalizar a extra-conjugalidade como uma expressão legítima de vida cristã. Uma coisa não tem absolutamente nada a ver com a outra, e a confusão atual que se vem fazendo entre ambas é coisa verdadeiramente de se deplorar.

Sem isso a vela da ciência tremeluz e bruxuleia

Terminei há uns dias a leitura tardia de O mundo assombrado pelos demônios com uma certa simpatia pelo Sagan. Ele me pareceu alguém sinceramente convencido de suas idéias: alguém honestamente convicto de que a ciência somente — e somente a ciência — é capaz de melhorar o mundo e responder às angústias últimas do ser humano sobre quem somos e de onde viemos. De certa maneira, parece que ele realmente acha que os cientistas são uma espécie de casta sacerdotal (embora provavelmente ele rejeitasse a terminologia) capaz de obter resultados melhores na evolução do ser humano do que foram capazes os outros cleros que a precederam.

A minha simpatia é provavelmente devida à sensação — que perpassa toda a obra — de que ele quer acertar e, mais que isso!, que ele realmente justifica de maneira correta mesmo as posições equivocadas que adota. Os capítulos iniciais sobre os extraterrestres são talvez o exemplo mais eloquente disso: não importa, diz o Sagan, se ele particularmente acredita ou não em vida inteligente extraterrena, o que interessa é que não há indícios seguros de sua existência. E para além disso, as afirmações das alegadas vítimas de abdução não devem ser liminarmente excluídas, mas sim analisadas criteriosamente: é analisando-as que ele conclui por explicações alternativas.

Não importa tanto que explicações sejam essas, mas sim o raciocínio que ele usa — traçando um paralelo entre as abduções extraterrestres contemporâneas e os assaltos medievais de demônios noturnos: incubi e succubi. Com isso ele conclui que os dois fenômenos são parecidos demais para receberem explicações diferentes. E, como as antigas possessões são falsas, as modernas abduções o são também igualmente.

[É aliás curioso que ele avente a hipótese de que os relatos históricos de demônios sexuais tenham sido, na verdade, a forma que os medievais encontraram para descrever, dentro do seu ambiente cultural, a ação de extraterrestres fazendo experiências com seres humanos. Mas o que é ainda mais curioso é que ele não faça o raciocínio inverso — e sequer lhe passe pela cabeça enxergar influências demoníacas nos que hoje dizem ser importunados por seres de outro planeta.]

Mas o interessante aqui é o que se esconde por trás dos olhos luzidios dos marcianos. Sob a comparação entre demônios e extraterrestres está firmemente estabelecido o pressuposto de que a realidade é uma só e, portanto, deve ser explicável à luz de uma cosmovisão abrangente e coerente. Por um lado, nenhum aspecto da realidade deve ser posto de lado por um pensamento que se pretenda científico; por outro lado, não é razoável multiplicar explicações díspares para fenômenos análogos entre si. Só isso já coloca o Sagan em um patamar superior aos materialistas da ATEA e congêneres com os quais é por vezes tão monótono cruzar espadas. Ele não é um solipsista: é alguém com uma profunda admiração pelo ser.

Através das páginas do livro é possível perceber que Sagan crê firmemente que a realidade existe independente do que pensemos a respeito dela e independente da maneira como gostaríamos que ela fosse. Após ler o livro, fica a sensação de que faltou apenas um passo (um passo pequeno!) para que ele entendesse que a realidade existe e é como é mesmo a despeito de eventuais impropriedades dos instrumentos — como a ciência — mediante os quais nos vem o conhecimento do mundo. Afinal de contas, a ciência cartesiana é um recorte da realidade — mais ou menos como, por exemplo, mutatis mutandis, a visão, conquanto importantíssima, é também um recorte, e simplesmente não faz sentido dizer que a música de Beethoven não existe pelo fato (tecnicamente exato) de que os nossos olhos não a podem ver.

A realidade existe, a realidade é uma só, a realidade é como é independente da nossa vontade: ouso dizer que tudo isso é dado por pressuposto pelo astrofísico americano. Mas parece que ele pensa que a ciência é capaz de açambarcar toda a realidade; ou, pelo menos, que as parcelas da realidade que estejam fora das fronteiras da ciência não mereçam tanta atenção, não sejam capazes de adquirir uma validade intersubjetiva.

Contudo o mesmo Sagan reconhece os limites da ciência quando insiste (e o faz reiteradas vezes ao longo do livro) na necessidade do cultivo do aspecto ético também entre os cientistas, do pensamento crítico como instrumento para investigar também questões éticas. Ora, e o que é ética? Das duas, uma: ou é uma coisa que tem validade para além das preferências subjetivas dos diversos atores sociais, ou é algo que ninguém sabe e nem pode saber o que é. Se fosse este último caso, então a prédica por ética na ciência e em prol do bem da humanidade seria um puro clamor vazio. Por outro lado, se é possível aos seres humanos concordarem a respeito do que é certo e o que é errado, então é possível chegar a consensos que não derivem de experimentos laboratoriais.

Em suma, o livro, em seus aspectos substanciais, poderia perfeitamente ter sido escrito por um cristão convicto: o desejo pela verdade, o deslumbramento diante da ciência (por exemplo, é tocante o capítulo onde ele descreve como Maxwell descobriu que a luz é uma radiação eletromagnética; e Maxwell era abertamente protestante), a preocupação com distinguir o que é certo daquilo que faz as pessoas se sentirem bem. Tudo isso é bom e é justo, e mais: tudo isso é essencialmente cristão e somente no Cristianismo encontra a sua realização plena. Sagan morreu dois anos antes de S. João Paulo II publicar a sua magistral Fides et Ratio, e tenho pouca esperança de que o cientista se convertesse à Religião verdadeira após a leitura da encíclica pontifícia; mas creio que ele seria muito capaz de apreciar, por exemplo, esta passagem, que vai ao encontro de muito o que ele escreveu no seu livro sobre a ciência como vela no escuro:

«Todos os homens desejam saber», e o objecto próprio deste desejo é a verdade. A própria vida quotidiana demonstra o interesse que tem cada um em descobrir, para além do que ouve, a realidade das coisas. Em toda a criação visível, o homem é o único ser que é capaz não só de saber, mas também de saber que sabe, e por isso se interessa pela verdade real daquilo que vê. Ninguém pode sinceramente ficar indiferente quanto à verdade do seu saber. Se descobre que é falso, rejeita-o; se, pelo contrário, consegue certificar-se da sua verdade, sente-se satisfeito. É a lição que nos dá Santo Agostinho, quando escreve: «Encontrei muitos com desejos de enganar outros, mas não encontrei ninguém que quisesse ser enganado». Considera-se, justamente, que uma pessoa alcançou a idade adulta, quando consegue discernir, por seus próprios meios, entre aquilo que é verdadeiro e o que é falso, formando um juízo pessoal sobre a realidade objectiva das coisas. Está aqui o motivo de muitas pesquisas, particularmente no campo das ciências, que levaram, nos últimos séculos, a resultados tão significativos, favorecendo realmente o progresso da humanidade inteira.

Fides et Ratio, 25

Todos os homens desejam saber. Quem o disse foi o Estagirita, séculos antes de S. João Paulo II o repetir em uma encíclica sobre Fé e razão. Mil e quinhentos anos depois, S. Tomás acrescentou que «a natureza, objecto próprio da filosofia, pode contribuir para a compreensão da revelação divina» (FR, 43). A despeito dos fracassos pessoais do Sagan, é possível conciliar a Fé e a Razão: sem isso a vela da ciência tremeluz e bruxuleia, e não é capaz de vencer a escuridão que porfia por engolfá-la.

Somente na harmonia entre a Fé e a Razão é possível conhecer a verdade toda, em todos os seus aspectos — inclusive os éticos — e somente assim é possível alcançar um verdadeiro progresso para os indivíduos e as nações. E isto precisa ser defendido com toda a diligência, e ensinado às nossas crianças e aos nossos crentes e aos nossos ateus. Estou convencido de que esta, sim, é a melhor maneira de fazer frente à escuridão provocada pelos demônios que assombram o mundo onde vivemos — escuridão contra a qual o Sagan obteve apenas uma vitória parcial e incompleta.

Isso é impossível para a natureza humana

Recentemente um amigo me perguntou se a Virgindade Perpétua de Nossa Senhora, na formulação do dogma católico, dizia respeito apenas à pureza da Virgem Maria ou se englobava, também, aspectos físicos e corpóreos. O tema é propício para esta Oitava de Natal em que nos encontramos.

Não há dúvida de que o dogma diz respeito à integridade física de Nossa Senhora. Neste sentido, Ott: «a virgindade de Maria compreende a virginitas mentis, isto é, a virgindade perpétua de seu espírito; a virginitas sensus, quer dizer, a imunidade de todo movimento desordenado do apetite sexual; e a virginitas corporis, ou seja, a integridade corporal. O dogma católico se refere antes de tudo à integridade corporal» (Manual de Teologia Dogmática, Livro Terceiro, Parte Terceira, Capítulo Segundo, §5).

E não podia ser diferente. Ora, a formulação clássica do dogma diz “Virgem antes, durante e depois do parto”; e se a virgindade fosse aqui mera ausência de relações sexuais, a expressão “virgem durante o parto” não faria nenhum sentido.

De Cristo diz-se que não somente a concepção foi milagrosa, mas também que o Seu próprio parto foi miraculoso. Ora, o milagre aqui é, justamente, que Cristo saia das entranhas da Sua Mãe Santíssima sem Lhe corromper minimamente o corpo. A imagem clássica, que mais uma vez nos ajuda aqui, é a da luz atravessando o vitral mantendo-o intacto: Passa o sol pela vidraça, / já passou, sem tocar nela; / assim foi a Virgem Pura, / levou Luz, ficou donzela. Sim, isto é um milagre possível somente a Deus. Por que deveria nos surpreender? Acaso a Noite em que o Verbo respirou pela primeira vez poderia transcorrer sem um portento desta magnitude? Ou o nascimento do Deus-Menino deveria passar em tudo igual ao dos homens, sem nenhum distintivo da Sua divindade?

Alguém poderia questionar o silêncio de São Jerônimo sobre isso no seu conhecido Tratado da Virgindade Perpétua. Helvídio, seu contendedor, dá o perfeito ensejo: «[s]e julgam que há alguma desgraça nisto [= em uma virgem unindo-se a seu esposo legítimo], não deviam coerentemente acreditar que Deus nasceu da Virgem por parto normal» (Cap. 20). O polemista, aqui, não increpa o herege como seria de se esperar; não diz que o parto do Salvador foi miraculoso e não «normal». Ao contrário até: fala que Helvídio bem poderia acrescentar «as outras humilhações da natureza, o útero de nove meses se tornando cada vez maior, a doença, o parto, o sangue, os cueiros» (id. ibid.).

Não sei exatamente o que o padroeiro dos tradutores quis dizer nessa passagem. De qualquer forma, não se pode usar a aparente lacuna no raciocínio de São Jerônimo para inferir que o santo não acreditasse na virgindade da Mãe de Deus durante o parto, nem muito menos para sustentar que a crença no parto virginal fosse inexistente em fins do séc. IV. Até porque o Tratado de São Jerônimo contra Helvídio não é a primeira obra cristã sobre o tema: o testemunho mais antigo de que Maria Santíssima foi Virgem no parto — e que a virgindade diz respeito à integridade física — está nos capítulos XIX e XX do Proto-Evangelho de Tiago, escrito em torno do ano 140 da Era Cristã. Lá, em Belém, quando Cristo acabara de nascer, uma parteira diz a uma sua conhecida (provavelmente outra parteira):

– Preciso contar-lhe uma maravilha jamais vista: uma virgem deu à luz. Como sabes, isso é impossível para a natureza humana.

A outra, cética, redargue:

– Pelo Senhor, meu Deus, não acreditarei enquanto não puder tocar os meus dedos em sua natureza para examinar-lhe.

E Salomé pôs seu dedo na natureza [de Maria] e soltou um grande grito: “Ai de mim! Minha malícia e incredulidade são culpadas! Eis que minha mão foi carbonizada e desprendeu-se do meu corpo por tentar ao Deus vivo!” (Proto-Evangelho de Tiago)

Este testemunho desde então reverbera no mundo, e a Igreja outra coisa não faz que o ecoar.

Há alguns anos causou estupor a revelação de que o card. Müller, então recém-nomeado prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, escrevera certas linhas que pareciam ir de encontro ao dogma católico. A resposta dele foi imediata: interpretaram-no errado. Fez questão de imediatamente professar, junto com a Igreja, a Fé na «virgindade de Maria, Mãe de Jesus, Mãe de Deus, antes, durante e depois do nascimento de Cristo». Diz, portanto, respeito o dogma sim a questões físicas, empíricas, corpóreas — é um dogma sobre um milagre, não meramente sobre as virtudes espirituais da Virgem Mãe de Deus.

Já várias vezes ouvi as pessoas perguntarem por que isso importa. Bom, em primeiríssimo lugar e antes de qualquer outra coisa, importa porque é verdade, porque aconteceu exatamente assim — e as coisas factuais, que aconteceram de determinada maneira, não precisam de um “sentido prático” para serem acreditadas.

Depois, importa porque o corpo humano importa. Somos, os seres humanos, uma unidade substancial de corpo e alma; o nosso corpo não é algo externo a nós mesmos, como se fosse uma máquina que pilotamos. Nós somos o nosso corpo. Ora, danificar o nosso corpo — de qualquer maneira que seja — é causar um dano a nós. Por isso não convinha, de nenhuma maneira, que o Salvador, no ato mesmo de vir ao mundo, causasse alguma espécie de dano Àquela que O deu à luz.

Ainda: importa porque é um milagre, porque é um daqueles sinais distintivos de Deus dos quais a história da Salvação está repleta. Por que importa que Lázaro tenha ressuscitado, que Bartimeu tenha passado a enxergar, que um paralítico tenha saído de uma casa carregando a sua liteira debaixo do braço? São sinais que marcam a passagem de Deus pela terra: é da natureza de Deus fazer milagres. Se os milagres sempre acompanharam a vida de Cristo como um séquito obsequioso, como esperar que eles estivessem ausentes justo na noite do Natal, justo na Gruta de Belém, justo no momento em que Deus nascia por nós?

Importa, por fim, porque é uma reafirmação da importância dos sinais exteriores na vida humana. É claro que a virtude é a pureza e não a integridade física. Mas a integridade corpórea está para a virgindade assim como, por exemplo, beijar um crucifixo está para a meditação da Paixão: é um sinal sensível de uma realidade interior. A Religião Verdadeira não é meramente interior, invisível, espiritual: a nossa religião é a do Verbo Encarnado e, portanto, a nossa prática religiosa é igualmente um exercício exterior. Aprouve a Deus fazer com que, na Virgem Santíssima, as virtudes interiores tivessem inequívoca expressão corporal: assim o nosso agir deve estar em conformidade com a nossa Fé, assim a nossa boca deve transbordar o que conservamos no coração, assim devemos nos mostrar ao mundo em coerência com o que afirmamos ser. Não apenas “interiormente”, mas com tudo o que somos, com a integridade do nosso ser.

Post partum, Virgo, inviolata permansistiDei Genetrix, intercede pro nobis. Que a Bem-Aventurada e sempre Virgem Maria seja em nosso favor, e nos alcance a pureza de mente e de corpo que agrada a Deus.

Se não acreditamos nisso é porque não cremos na justificação

É falsa a oposição — hoje tão disseminada — entre verdade e caridade, ou entre doutrina e pastoral, que no fim das contas não passa de uma reedição da falsa dicotomia entre Fé e obras. O problema já fora resolvido há muito tempo, pelo menos desde o Concílio de Trento; mas o enxame de satanases, demônios e lucíferes do qual o nosso século está particularmente infestado sempre consegue semear a confusão e, por vias tortuosas, lograr que a dúvida espraie suas sombras por sobre o campo outrora plenamente iluminado pelas luzes do sol da verdade. Seria frustrante se não fosse este o lavor cristão quotidiano: repisar a cabeça da velha serpente sempre ávida por se levantar, combater os mesmos combates já vencidos pelos nossos antepassados. É assim que aprouve a Deus que nos santifiquemos, no fim das contas: cada geração precisa exorcizar — de novo e mais uma vez — os mesmos demônios que, no passado, os que nos precederam já precipitaram no Inferno. Satanás quer sempre ganhar o mundo e, nesta intenção, não cessa jamais de fazer as suas investidas: mas são sempre as mesmas, com os mesmos erros e as mesmas tentações, sempre e sem jamais mudar. Somente Nosso Senhor é Aquele que faz novas todas as coisas (Ap 21, 5); o Demônio está condenado a sempre insistir nas mesmas velharias já mil vezes vencidas.

Mas voltemos à verdade e à caridade. Todo o problema está exposto e resolvido na seção VI do Concílio de Trento, de janeiro de 1547: «na justificação é infundido no homem por Jesus Cristo, a quem está unido, ao mesmo tempo, tudo isto: fé, esperança e caridade» E isso é assim porque nem «a fé nem une perfeitamente com Cristo, nem faz membro vivo de seu corpo, se não se lhe ajuntarem a esperança e a caridade».

Não existe portanto «verdade» demais, ou «doutrina» demais, ou «Fé» demais. Não existe nada disso porque uma «verdade» que não conduza à prática da caridade é antes um engodo que uma verdade, e uma «doutrina» que afaste a prática do Cristianismo é no fundo uma falsa doutrina, e uma «Fé» à qual não se lhe sigam as boas obras do homem regenerado não é Fé verdadeira. Não existem essas oposições e elas não podem existir simplesmente porque é um só e o mesmo Deus o autor de ambas, da verdade como da caridade, da Fé como das obras. Não existem essas oposições porque, em suma, como diz o Concílio, a justificação faz infundir no homem «ao mesmo tempo tudo isso: fé, esperança e caridade».

E se não acreditamos nisso é porque não cremos na justificação. E se nela não cremos — se achamos realmente que a verdade pode ser um empecilho à caridade, que a doutrina pode afastar da prática dos ensinamentos de Cristo, que a Fé pode elidir a prática das boas obras –, se não cremos na justificação, eu dizia, então católicos não somos, então não precisamos (e aliás não podemos) nos dizer cristãos. Se nós achamos a sério que a caridade pode ser estimulada em oposição à verdade, ou que a pastoral pode ser vivida sem o supedâneo da doutrina, ou que as boas obras podem ser praticadas prescindindo da Fé Católica e Apostólica, então nós não somos católicos e sim naturalistas que não têm Fé, não guardam a Doutrina e estão distantes da Verdade. Se achamos isso então a nossa caridade não é sobrenatural, a nossa pastoral não é cristã e as nossas obras não são meritórias. E se é assim, então ai de nós.

É evidente que há católicos que não praticam a caridade com todas as suas exigências; mas tal se dá justamente porque eles não estão suficientemente convencidos da verdade de que há um mandamento da caridade a cujo cumprimento os cristãos não se podem furtar. Salta aos olhos que as nossas paróquias apresentam muitas vezes abordagens pastorais inadequadas; isso, contudo, acontece precisamente porque lhes falta a Doutrina de que o Evangelho precisa ser anunciado a toda criatura. Ninguém nega que o mundo esteja carente de boas obras cristãs; isso no entanto só acontece porque a Fé Cristã não é acreditada e vivida em toda a sua radicalidade. Em resumo, há problemas pastorais, há falta de caridade e há escassez de boas obras, claro que os há: mas tudo isso é fruto precisamente da má Doutrina, da falta de Fé e do afastamento da Verdade.

Se cremos na justificação, sabemos que as obras são fruto da Fé Católica, que a caridade constrange mediante a Verdade que é Cristo, que o anúncio do Evangelho é ponto central da Doutrina Cristã. E se é assim não podemos jamais pretender fomentar a caridade escondendo a verdade, multiplicar as obras ocultando a Fé, viver o Cristianismo prescindindo da doutrina — tudo isso é engodo e ilusão. As nossas obras não frutificam como as dos primeiros cristãos porque a nossa Fé já não reluz como a deles; a Igreja não cresce mais como nos tempos áureos da Igreja porque a nossa Doutrina não é mais tão límpida como já foi no passado; e a caridade já não transforma o mundo como antigamente porque, hoje, a Verdade não detém o mesmo lugar de honra que lhe reservavam os que nos precederam. O problema não é excesso senão falta de Fé; não é insistência na Verdade mas sim descaso para com ela; não é Doutrina demais, senão Doutrina de menos!

É preciso, portanto, coroar a Verdade para que a caridade reine no mundo. É preciso aumentar a Fé do povo cristão para que as boas obras espalhem o doce odor de Cristo pelo mundo. E é preciso que a Doutrina seja conhecida e mantida em toda a sua integridade a fim de que a Igreja expanda o Reino de Cristo até os confins da terra. Qualquer estratégia diferente dessa é loucura e desvario; qualquer abordagem que não leve em consideração os liames íntimos entre o que se crê e o que se vive não levará senão ao fracasso do apostolado e ao descrédito do Cristianismo.

Questões sobre o socialismo e a propriedade

Em defesa do socialismo, argumenta-se:

  1. Direitos trabalhistas como salário mínimo, limitação da jornada de trabalho e previdência pública — dentre outros — são conquistas que, historicamente, só foram possíveis graças às lutas dos socialistas. Ora, esses direitos são hoje unanimemente reconhecidos como devidos de fato. Logo, é possível dizer que o socialismo deu certo, ao menos nestes pontos que se incorporaram aos ordenamentos jurídicos ocidentais do pós-Revolução Industrial pra cá. Ainda: se estes pontos eram justos, então a luta por eles era necessária e justa também.
  2. Se «as coisas que possuímos com superabundância são devidas, pelo direito natural, ao sustento dos pobres» (Summa, IIa-IIae, q. 66, a. 7), então por que a lei positiva não poderia estabelecer mecanismos, por confiscatórios que fossem, capazes de coagir os abastados a sustentar os desvalidos? Não estaria ela, nisso, apenas aplicando a lei natural?

Responda-se brevemente.

Quanto ao primeiro, não é absolutamente a questão do salário mínimo (e suas assemelhadas) que define o socialista frente o não-socialista. Esta dicotomia é artificial e tem o único intuito de transformar a posição socialista na única aceitável, por meio da atribuição de um rótulo odioso a todas as outras: a redução do não-socialista ao capitalista explorador é simplesmente falsa.

O Magistério da Igreja trata, por exemplo, sobre o salário justo, entre outros lugares na Rerum Novarum (n. 10) e na Quadragesimo Anno (II. 4). Os economistas dirão que estes documentos só falam sensaborias e trivialidades; ora, não poderia ser diferente. São encíclicas e não tratados econômicos, e devem cuidar para que o seu ensino seja suficientemente geral a ponto de poder ser aplicável à natural diversidade dos tempos e dos lugares de que é composta a história humana. Trata-se de princípios e não de modelos políticos; qualquer sistema político que se pretenda válido deve concretizar aqueles princípios.

É por enunciar princípios universalmente válidos que a Rerum Novarum, publicada no séc. XIX, é atual ainda hoje, ao passo que as análises de conjuntura publicadas pela CNBB já saem com cheiro de mofo e ninguém lhes dá maior atenção.

O que define o socialista em face do não-socialista, como diz Pio IX, é uma determinada forma de concepção da sociedade; de fato, o socialismo afirma «que o consórcio humano foi instituído só pela vantagem material que oferece» e que o fim da sociedade humana deve ser «a abundância dos bens que, produzidos socialmente, serão distribuídos pelos indivíduos, e estes poderão livremente aplicar a uma vida mais cómoda e faustosa» (cf. QA, III., 2). Deste naturalismo e deste individualismo surgem, no atual estágio de degeneração da sociedade, bandeiras como o homossexualismo e o aborto, nas quais com muito mais propriedade se identifica o dito “progressismo social” do que na limitação da jornada de trabalho em 40h semanais.

Em resumo, ninguém é socialista unicamente por querer melhores condições de trabalho, e os bons frutos produzidos pela «questão social» dos quais hoje gozamos devem ser tributados antes aos influxos benéficos da Igreja na História que ao embate materialista entre liberalismo e socialismo.

Quanto ao segundo, o próprio Aquinate responde que «como são muitos os que padecem necessidades e não se pode socorrer a todos com as mesmas coisas, deixa-se ao arbítrio de cada um a distribuição das coisas próprias para socorrer os que passam necessidade» (Summa, ibidem, Resp.) — ou seja, é o particular e não o Estado que deve tomar sobre si o encargo de cuidar dos pobres. Este é um dever moral e não jurídico.

Ainda, se o destino dos bens exteriores é comum, o mesmo não se pode dizer da sua gestão: no que concerne a esta é lícito aos homens possuírem as coisas como próprias, porque os bens se cuidam melhor, mais ordenadamente e de modo mais pacífico se cada um possui o que é seu (Summa, IIa-IIae, q. 66, a. 2, Resp.).

E mais, se é evidentemente lícito que os poderes públicos assumam de alguma maneira e em alguma medida o cuidado dos desvalidos, tal no entanto não se pode dar de modo a impedir ao homem a posse dos bens exteriores, uma vez que esta lhe é natural (cf. Summa, IIa-IIae, q.66, a.1).

Por fim, se se quisesse estabelecer, em determinada sociedade humana, uma comunidade de bens de tal modo que somente a uma pessoa ou a um determinado grupo de pessoas coubesse a distribuição dos seus frutos por todos os membros da sociedade, tal seria legítimo; mas só se poderia fazer voluntariamente e não de modo compulsório, uma vez que a propriedade dos bens exteriores é lícita, como se mostrou, e ninguém pode ser coagido a deixar de fazer o que lhe é lícito.

A misericórdia transforma e muda a vida

Apenas três ligeiros comentários sobre a Misericordia et Misera, carta apostólica hoje publicada e com a qual o Papa Francisco encerra o Ano Santo da Misericórdia.

1. A provisão para que qualquer sacerdote possa suspender a excomunhão do aborto foi estendida por tempo indeterminado. O aborto é um pecado gravíssimo que é punido, no Direito Canônico, com a excomunhão latae sententiae (CIC Cân. 1398). Ocorre que essa excomunhão só podia ser remitida pelo Bispo Diocesano ou por aqueles sacerdotes a quem o Bispo conferisse explicitamente esta permissão; na abertura do Jubileu da Misericórdia, no ano passado, o Papa Francisco concedeu a todos os sacerdotes esta faculdade. Aquilo que valia no decurso do Jubileu passa, desde hoje, a valer indefinidamente, «não obstante qualquer disposição em contrário».

Ou seja, i) continua valendo sobre essa matéria tudo que até ontem valia: por força do Jubileu da Misericórdia todo sacerdote estava autorizado a absolver quem houvesse praticado aborto e, a partir de hoje, encerrado o ano jubilar, todo sacerdote continua autorizado a conferir esta absolvição por força da Misericordia et Misera; não obstante, ii) a pena de excomunhão não foi abolida, i.e., continua plenamente vigente o cânon 1398 do Código de Direito Canônico dizendo que «[q]uem procurar o aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latae sententiae»; por fim — e a isso voltaremos mais à frente –, iii) o arrependimento continua sendo pré-requisito para se aproximar da Confissão Sacramental, como é evidente.

2. Do mesmo modo foi alargada no tempo a faculdade que fora conferida aos sacerdotes da FSSPX para que administrem validamente o Sacramento da Penitência. A Confissão, assim como o Matrimônio, é um sacramento cuja validade — e não apenas a licitude — depende de jurisdição; ora, como os prelados da FSSPX — inobstante a suspensão da excomunhão em 2009 — permanecem bispos de lugar-nenhum, não possuem jurisdição alguma e, portanto, não podem praticar os atos que dela dependam (e.g. ouvir confissões e assistir Matrimônios).

A situação canônica dos padres da FSSPX continua irregular; as suas Missas continuam ilícitas e a validade dos seus Matrimônios permanece precária, condicionada à incidência do §2º do Cân. 144 do CIC. No entanto, esta determinação do Papa Francisco é alvissareira e nos autoriza a entrever, em um futuro que cada vez mais desejamos próximo, a tão esperada reconciliação da Fraternidade com a Igreja de Cristo fora da qual não há salvação.

3. A passagem bíblica da qual o Papa Francisco se vale para estruturar a sua Carta Apostólica é a da mulher adúltera (Jo VIII, 1-11). Trata-se de um trecho do Evangelho bastante caro a tantos quanto se preocupam com a tendência moderna de separar o perdão do arrependimento — como se “caridade” fosse condescendência com o erro, ou como se a “misericórdia” pudesse se manifestar na atitude displicente de manter o pecador em sua vida de pecado. Como se o perdão não fosse por si só um convite — ou, antes, uma exigência — à mudança de vida, ou ao menos à sincera disposição de mudar de vida.

E aquele «vade et amplius jam noli peccare» perpassa todo o documento pontifício, graças a Deus. São diversas as passagens (os grifos são meus):

  • «Depois que se revestiu da misericórdia, embora permaneça a condição de fraqueza por causa do pecado, tal condição é dominada pelo amor que consente de olhar mais além e viver de maneira diferente» (MM 1).
  • «Nada que um pecador arrependido coloque diante da misericórdia de Deus pode ficar sem o abraço do seu perdão» (MM 2).
  • «No sacramento do Perdão, Deus mostra o caminho da conversão a Ele e convida a experimentar de novo a sua proximidade» (MM 8).
  • «A sua ação pastoral [dos Missionários da Misericórdia] pretendeu tornar evidente que Deus não põe qualquer barreira a quantos O procuram de coração arrependido, mas vai ao encontro de todos como um Pai» (MM 9).
  • «Não há lei nem preceito que possa impedir a Deus de reabraçar o filho que regressa a Ele reconhecendo que errou, mas decidido a começar de novo» (MM 11).
  • «O sacramento da Reconciliação precisa de voltar a ter o seu lugar central na vida cristã; para isso requerem-se sacerdotes que ponham a sua vida ao serviço do «ministério da reconciliação» (2 Cor 5, 18), de tal modo que a ninguém sinceramente arrependido seja impedido de aceder ao amor do Pai» (MM 11).
  • «[P]osso e devo afirmar que não existe algum pecado que a misericórdia de Deus não possa alcançar e destruir, quando encontra um coração arrependido que pede para se reconciliar com o Pai» (MM 12).

Em uma palavra, a verdadeira misericórdia é e não pode deixar de ser transformadora: «A misericórdia é esta ação concreta do amor que, perdoando, transforma e muda a vida» (MM 3)! O perdão cura e transforma — e o filho pródigo só retorna à casa paterna porque, antes, «caiu em si» e percebeu haver pecado contra o Céu, e a mulher adúltera só escapa da morte para ouvir de Cristo aquele «vai e não tornes a pecar» que perpassa os séculos e ainda hoje ressoa na Igreja: para continuar comendo a lavagem dos porcos não valia a pena o filho pródigo ter empreendido a jornada de volta pra casa, e se fosse para continuar na prostituição melhor seria à adúltera ter sido apedrejada.

O perdão conduz e não pode não conduzir a uma vida nova. Se não fosse assim seria apenas engano e ilusão; se não fosse assim, de nada valeria ser perdoado.

A morte de um exorcista

O recente falecimento do pe. Gabriele Amorth pegou-me de surpresa. Sim, o velho exorcista já contava com 91 anos e, nesta idade, a morte não é propriamente um acontecimento inesperado; a manchete, no entanto, mostrou-me o quão pouco eu estava acompanhando as notícias a respeito dele. Não sabia que estava doente, aliás nem me lembrava ao certo da idade dele. Na sexta-feira passada, no entanto, ele deixou o campo de batalha terreno para nos ajudar lá do Alto, onde agora pode mais junto a Deus.

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Há um mau hábito — já devo ter falado dele em algum momento por aqui — no Catolicismo contemporâneo de ser muito condescendente para com as imperfeições alheias, principalmente no que diz respeito à tendência de conceder uma imediata ascensão aos Céus às almas daqueles que minimamente admiramos. Todo mundo é santo sùbito, toda morte é entrada gloriosa no Paraíso. Esquecemo-nos do Purgatório — e isso pode até ser falta de caridade de nossa parte, na medida em que nos sentimos desobrigados de rezar pelas almas daqueles que já consideramos salvos. Esquecemos do Purgatório e queremos que todos os nossos mortos estejam, desde já, desde o instante seguinte à morte, gozando da Bem-Aventurança dos eleitos de Deus.

Ainda assim, eu disse acima que o pe. Amorth já agora estava nos ajudando de junto de Deus. Justifico. Em primeiro lugar, o venerável sacerdote chegou a uma avançada idade, e isso significa duas coisas. Primeiro que não foi apanhado de surpresa pela Morte; segundo, que pôde padecer os sofrimentos próprios da velhice em expiação pelas próprias faltas e em preparação para o Dia sem ocaso. Muitas pessoas acham que a melhor morte é aquela que nos chega sem que percebamos; o famoso “ir dormir e acordar morto”. Não vou dizer que este seja uma má morte (até porque a morte ser boa ou má depende essencialmente das disposições interiores em que nos encontramos no instante derradeiro, e não de ela ser mais demorada ou mais lenta, mais consciente ou mais súbita); mas se trata, parece-me, pelo menos de uma morte arriscada. As pessoas perderam o hábito de pensar na morte e, com isso, a morte repentina, de um mal súbito, ou a morte em um acidente, podem chegar sem que a casa esteja devidamente preparada, sem que as disposições interiores estejam suficientemente lapidadas, sem que a alma esteja pronta, em suma, para se encontrar com Deus e com os pecados de toda uma vida.

A morte na velhice, após uma doença mais ou menos longa, é o contrário. A Inimiga das Gentes vem devagar, vem anunciando a própria presença, vem a passos lentos — e, com isso, dá mais tempo para que nos preparemos. Podemos fazer um demorado exame de consciência; podemos suplicar mais demoradamente o perdão e a misericórdia de Deus. Podemos nos confessar, receber a Extrema Unção e o Viático; podemos até mesmo oferecer os inconvenientes da doença, os achaques, o medo, as dores — os sofrimentos todos em suma — em expiação pelas nossas faltas. Li que o pe. Amorth expirou após algumas semanas internados em um hospital; quero crer, portanto, que ele tenha sabido aproveitar todas essas oportunidades de apressar a própria chegada no Céu.

Uma segunda razão pela qual imagino que o pe. Amorth esteja junto de Deus é o ofício ao qual ele dedicou a própria vida. Não foi apenas sacerdote (como se isso fosse pouco), mas sim sacerdote e exorcista. Foi nesta terra inimigo ferrenho de Satanás, lutando corajosamente contra ele exatamente naqueles aspectos em que a presença demoníaca no mundo é mais forte e mais perturbadora: a obsessão, a infestação, a possessão. O mundo moderno vive em uma crise de Fé que, se muito esquece de Deus, muito mais esquece do Diabo; esta figura é muitas vezes relegada à superstição medieval, à ignorância de um passado obscuro, a concepções maniqueístas primitivas que não encontram mais lugar em um mundo onde Deus é Amor.

Ora, mas Deus sempre foi Amor; Deus é Amor desde a criação dos Anjos e a Queda de Lúcifer, e uma coisa não tem nada a ver com a outra. Satanás não é um “deus do mal”, mas isso não significa que não seja uma criatura capaz de fazer muito mal. Há entre os homens ladrões e assassinos, sádicos e estupradores, salteadores e bandidos de todos os naipes; a quantidade de mal que o homem tem provocado ao próprio homem é enorme e capaz de assombrar por toda uma vida aqueles que dela tenham ainda que um pálido vislumbre. Senão vejamos: se os homens podem causar mal uns aos outros sem que isso seja um óbice à existência de um Deus que é Pai Amoroso, por que um anjo não poderia também provocar o mal aos filhos de Deus sem que isso minimamente maculasse a Onibenevolência do Altíssimo? Não há maniqueísmos dentro da Doutrina Cristã e nunca os houve; não há um deus mau ao lado do Deus que é Bom. No entanto, o mistério da liberdade que permite a existência do mal moral dentro do mundo criado não se restringe apenas aos seres humanos. Também os anjos têm inteligência e vontade, também eles são seres livres, também podem fazer o mal. Satanás não é uma hipótese ingênua e contraditória com a noção de um Deus sumamente bom, pelo menos não mais do que um estuprador ou um serial killer. Na verdade é o contrário: ingenuidade é imaginar que, havendo ladrões e assassinos no mundo, não pudessem existir também seres angélicos voltados à prática do mal.

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O pe. Amorth foi inimigo ferrenho de Satanás nesta terra, eu dizia, e venceu-o por incontáveis vezes, e por isso eu também quero acreditar que Deus o tenha levado depressa para os Céus; pode ser sentimentalismo, mas acho que não convém que aquele que foi inimigo aberto do Demônio no mundo tenha a sua entrada no Céu postergada por causa de algum apego de sua alma aos pecados que nada mais são do que as obras do mesmo Satanás que ele dedicou a vida a combater. Mas há ainda uma terceira razão. É que o tempo e a Eternidade relacionam-se de maneira, digamos, curiosa: aqui a história se desenrola de maneira sequencial mas, lá, é tudo já e(vi)terno.

O padre Pio certo dia rezava pelo seu avô. “Mas padre, o senhor não disse que ele já estava no Céu?”, um amigo perguntou; “sim, está, mas as orações que eu fiz por ele até hoje e as que eu ainda farei até o fim da minha vida o ajudaram a chegar lá”. O John McCaffery registrou a história em seu livro de memórias, e compreendê-la ajuda a contemplar melhor o mistério da Comunhão dos Santos. O Céu já está completo enquanto a História se desenrola; e por mais tempo que uma alma justa tenha passado no Purgatório, já agora ela está no Céu, já agora ela pode interceder por nós.

É com este ânimo que olho para o pe. Amorth e quero já vê-lo em esplendor — o velho guerreiro revestido de suas armas gloriosas, impingindo já a Satanás maiores tormentos do que nos mais formidáveis exorcismos que ele exerceu durante a sua vida…! Que assim seja. Que o bom Deus olhe com misericórdia para o seu pobre servo e lhe dê o descanso eterno, a luz e a paz. E que, do alto dos Céus, o padre Gabriele Amorth continue a fazer guerra terrível contra todos os espíritos malignos que andam pelo mundo para perder as almas.

Só existe uma única Religião Verdadeira

A origem das falsas religiões é uma coisa que se pode investigar em diversos planos.

Do ponto de vista do Cristianismo, munidos da Verdade Revelada, lançando os olhos sobre o fenômeno religioso a partir do terreno elevado da Igreja de Cristo que é «coluna e sustentáculo da Verdade», não podemos senão concluir que, no início das falsas religiões — que mais afastam do que aproximam de Deus –, está o Demônio, o Pai da Mentira, aquele cujo papel na história da humanidade é o de roubar, matar e destruir. É neste sentido que S. Pio de Pietrelcina dizia, de maneira jocosa, que o Protestantismo também tivera uma origem sobrenatural, uma vez que fora fundado por Satanás.

Contudo, à luz da história humana auto-referenciada, do ponto de vista do homem desterrado em cujo interior ainda pulsa o anelo pelo Paraíso Perdido, ou mesmo — por que não? — munidos apenas da teologia natural, não podemos ser tão ligeiros na divisão dicotômica do mundo entre as inspirações divinas e o bafo sulfúreo do Demônio. O homem também pode errar, e erra amiúde, por conta própria, sem que a isso precise ser conduzido tendo Lúcifer ao braço. O erro religioso de boa vontade é certamente mais comum do que o satanismo stricto sensu: há decerto mais pessoas tomando demônios por Deus do que trocando o Deus que se sabe verdadeiro pelos diabos sabidamente exsurgidos do Inferno. E isto sem nenhumas considerações de ordem soteriológica, que as condições subjetivas de cada um identificar o demônio que se lhe antolha Deus haverá de julgar. Aqui se cogita tão-somente do motor da adesão à falsa crença, não do seu valor salvífico.

Da mesma forma que não nos podemos esquecer de que só existe uma única Religião Verdadeira, da qual todas as outras são ou sombras ou caricaturas, não nos é dado também olvidar que o fato mesmo de alguém aderir a uma falsa religião significa, ao menos ordinariamente, que o problema de Deus se coloca para esta pessoa e ela o considera em alguma medida relevante. Em resumo: que Satanás espalha, sim, ídolos pelo mundo, mas só se prostra diante dos ídolos quem ao menos deseja se relacionar com o Além.

Construir «uma torre cujo cimo atinja os céus» (cf. Gn XI, 4) é pecado; mas o pecado está no meio de que se serve, não no fim que se almeja. Porque atingir os céus é um anseio natural do ser humano criado para Deus — do homem cujo coração vive inquieto enquanto n’Ele não repousa, para usar a passagem clássica de Sto. Agostinho. E em tempos onde querem sufocar este ditame da consciência, talvez não seja tão imprudente assim valorizá-lo — ainda que apenas o seu reflexo distorcido na fracassada odisséia religiosa do homem distante da Revelação.

A tradução cega-nos à nossa ignorância

Descobri ontem, ouvindo em latim o Evangelho das Bodas de Caná, que o chefe dos serventes — aquele que primeiro provou a água que Nosso Senhor transformara em vinho — se diz, em latim, architriclino. Ainda: que a palavra existe em português, ar·qui·tri·cli·no, Mordomo-mor da Roma Antiga: trata-se de uma função social específica, inserida em um contexto cultural que nos é estranho, e cujos contornos não nos é possível enxergar com clareza. A tradução de um substantivo comum para uma locução substantiva chamou-me a atenção para (mais) esta dificuldade de se traduzir línguas antigas: certas coisas deixam de existir com o passar do tempo, e isso faz com que as palavras que se lhes referiam caiam também em desuso — a ponto de se transformarem em termos técnicos incompreensíveis ao leitor vulgar.

Há não muito tempo eu lia também em algum lugar que, entre os judeus, o grau superlativo se formava pela repetição da palavra: assim “rei dos reis” ou “santo dos santos”, que nos dias de hoje se diriam provavelmente realíssimo e santíssimo. Aqui, ao menos a locução não é desprovida de significado, e o leitor vernacular consegue perceber que o “rei dos reis” está acima dos reis assim como estes estão acima dos que a eles são sujeitos. Mas é só quando se entende a lógica da gramática semítica — duplicar a palavra para significar o seu grau máximo — que é possível perceber a dimensão do que significar dizer, de Deus, que Ele é ἅγιος ἅγιος ἅγιος – Santo, Santo, Santo.

São dois pequenos exemplos apenas para dizer que o recurso aos originais é importante. Mais até: que as traduções constituem-se em um verdadeiro obstáculo ao conhecimento, na medida em que nos impedem de enxergar as nuances do texto antigo que não são perfeitamente reprodutíveis na língua moderna. Em uma palavra, a tradução cega-nos à nossa ignorância, na medida em que, por compreendermos — até perfeitamente — o recorte linguístico, simplesmente não percebemos os sentidos possíveis do texto original. Isso significa que há provavelmente uma infinidade de coisas que não sabemos por detrás de cada perícope bíblica, independente do quanto estejamos familiarizados com ela. É preciso muito cuidado ao se aproximar das Escrituras Sagradas: as mais das vezes, não somos capazes senão de arranhar-Lhes a superfície.