Se não acreditamos nisso é porque não cremos na justificação

É falsa a oposição — hoje tão disseminada — entre verdade e caridade, ou entre doutrina e pastoral, que no fim das contas não passa de uma reedição da falsa dicotomia entre Fé e obras. O problema já fora resolvido há muito tempo, pelo menos desde o Concílio de Trento; mas o enxame de satanases, demônios e lucíferes do qual o nosso século está particularmente infestado sempre consegue semear a confusão e, por vias tortuosas, lograr que a dúvida espraie suas sombras por sobre o campo outrora plenamente iluminado pelas luzes do sol da verdade. Seria frustrante se não fosse este o lavor cristão quotidiano: repisar a cabeça da velha serpente sempre ávida por se levantar, combater os mesmos combates já vencidos pelos nossos antepassados. É assim que aprouve a Deus que nos santifiquemos, no fim das contas: cada geração precisa exorcizar — de novo e mais uma vez — os mesmos demônios que, no passado, os que nos precederam já precipitaram no Inferno. Satanás quer sempre ganhar o mundo e, nesta intenção, não cessa jamais de fazer as suas investidas: mas são sempre as mesmas, com os mesmos erros e as mesmas tentações, sempre e sem jamais mudar. Somente Nosso Senhor é Aquele que faz novas todas as coisas (Ap 21, 5); o Demônio está condenado a sempre insistir nas mesmas velharias já mil vezes vencidas.

Mas voltemos à verdade e à caridade. Todo o problema está exposto e resolvido na seção VI do Concílio de Trento, de janeiro de 1547: «na justificação é infundido no homem por Jesus Cristo, a quem está unido, ao mesmo tempo, tudo isto: fé, esperança e caridade» E isso é assim porque nem «a fé nem une perfeitamente com Cristo, nem faz membro vivo de seu corpo, se não se lhe ajuntarem a esperança e a caridade».

Não existe portanto «verdade» demais, ou «doutrina» demais, ou «Fé» demais. Não existe nada disso porque uma «verdade» que não conduza à prática da caridade é antes um engodo que uma verdade, e uma «doutrina» que afaste a prática do Cristianismo é no fundo uma falsa doutrina, e uma «Fé» à qual não se lhe sigam as boas obras do homem regenerado não é Fé verdadeira. Não existem essas oposições e elas não podem existir simplesmente porque é um só e o mesmo Deus o autor de ambas, da verdade como da caridade, da Fé como das obras. Não existem essas oposições porque, em suma, como diz o Concílio, a justificação faz infundir no homem «ao mesmo tempo tudo isso: fé, esperança e caridade».

E se não acreditamos nisso é porque não cremos na justificação. E se nela não cremos — se achamos realmente que a verdade pode ser um empecilho à caridade, que a doutrina pode afastar da prática dos ensinamentos de Cristo, que a Fé pode elidir a prática das boas obras –, se não cremos na justificação, eu dizia, então católicos não somos, então não precisamos (e aliás não podemos) nos dizer cristãos. Se nós achamos a sério que a caridade pode ser estimulada em oposição à verdade, ou que a pastoral pode ser vivida sem o supedâneo da doutrina, ou que as boas obras podem ser praticadas prescindindo da Fé Católica e Apostólica, então nós não somos católicos e sim naturalistas que não têm Fé, não guardam a Doutrina e estão distantes da Verdade. Se achamos isso então a nossa caridade não é sobrenatural, a nossa pastoral não é cristã e as nossas obras não são meritórias. E se é assim, então ai de nós.

É evidente que há católicos que não praticam a caridade com todas as suas exigências; mas tal se dá justamente porque eles não estão suficientemente convencidos da verdade de que há um mandamento da caridade a cujo cumprimento os cristãos não se podem furtar. Salta aos olhos que as nossas paróquias apresentam muitas vezes abordagens pastorais inadequadas; isso, contudo, acontece precisamente porque lhes falta a Doutrina de que o Evangelho precisa ser anunciado a toda criatura. Ninguém nega que o mundo esteja carente de boas obras cristãs; isso no entanto só acontece porque a Fé Cristã não é acreditada e vivida em toda a sua radicalidade. Em resumo, há problemas pastorais, há falta de caridade e há escassez de boas obras, claro que os há: mas tudo isso é fruto precisamente da má Doutrina, da falta de Fé e do afastamento da Verdade.

Se cremos na justificação, sabemos que as obras são fruto da Fé Católica, que a caridade constrange mediante a Verdade que é Cristo, que o anúncio do Evangelho é ponto central da Doutrina Cristã. E se é assim não podemos jamais pretender fomentar a caridade escondendo a verdade, multiplicar as obras ocultando a Fé, viver o Cristianismo prescindindo da doutrina — tudo isso é engodo e ilusão. As nossas obras não frutificam como as dos primeiros cristãos porque a nossa Fé já não reluz como a deles; a Igreja não cresce mais como nos tempos áureos da Igreja porque a nossa Doutrina não é mais tão límpida como já foi no passado; e a caridade já não transforma o mundo como antigamente porque, hoje, a Verdade não detém o mesmo lugar de honra que lhe reservavam os que nos precederam. O problema não é excesso senão falta de Fé; não é insistência na Verdade mas sim descaso para com ela; não é Doutrina demais, senão Doutrina de menos!

É preciso, portanto, coroar a Verdade para que a caridade reine no mundo. É preciso aumentar a Fé do povo cristão para que as boas obras espalhem o doce odor de Cristo pelo mundo. E é preciso que a Doutrina seja conhecida e mantida em toda a sua integridade a fim de que a Igreja expanda o Reino de Cristo até os confins da terra. Qualquer estratégia diferente dessa é loucura e desvario; qualquer abordagem que não leve em consideração os liames íntimos entre o que se crê e o que se vive não levará senão ao fracasso do apostolado e ao descrédito do Cristianismo.

Papa Francisco: “Confessar a Fé! Toda, não uma parte!”

A fé é confessar Deus, mas o Deus que se nos revelou, desde o tempo dos nossos pais até hoje; o Deus da história. E isto é aquilo que nós todos os dias recitamos no Credo. E uma coisa é recitar o Credo com o coração, outra é fazê-lo como os papagaios, não é? Creio, creio em Deus, creio em Jesus Cristo, creio… Eu creio naquilo que digo? Esta profissão de fé é verdadeira ou digo-a de memória, porque se tem que dizer? Ou creio pela metade? Confessar a fé! Toda, não uma parte! Toda! E esta fé, guarda-la toda, como chegou até nós, pelo caminho da tradição: toda a fé!

Papa Francisco,
Homilia na Domus Sanctae Marthae,
10 de janeiro de 2014

Papa Francisco: sem caridade, as boas obras não salvam

Contra os que ainda insistem em acusar o Papa de naturalismo por conta de sua afirmação sobre o valor das boas obras praticadas mesmo pelos que não têm Fé, o Vigário de Cristo dirigiu palavras muito claras na manhã de hoje (segunda-feira, 14 de outubro) em sua homilia proferida na Casa Santa Marta (grifos meus).

O sinal de Jonas, o verdadeiro, é aquele que nos dá a confiança de ser salvos pelo sangue de Cristo. Quantos cristãos, quantos há, pensam que serão salvos somente pelo que fazem, pelas suas obras. As obras são necessárias, mas são uma consequência, uma resposta ao amor misericordioso que nos salva. Mas as obras, sem este amor misericordioso, não servem.

Portanto, as pessoas são salvas «pelo sangue de Cristo». As obras são «conseqüência» deste «amor misericordioso», da caridade, que é virtude sobrenatural infundida por Deus em nossas almas e pela qual amamos a Ele e ao nosso próximo por causa d’Ele.

E as boas obras naturais são boas e valiosas, predispõem o homem a acolher a Graça, mas não têm valor sobrenatural em si mesmas e, portanto, não servem para a salvação eterna.

Eis a Doutrina Católica de vinte séculos nos lábios do Vigário de Cristo.

Papa Francisco: «a melhor herança que possamos dar a alguém: a fé!»

[A] catequese constitui uma coluna para a educação da fé, e são precisos bons catequistas! Obrigado por este serviço à Igreja e na Igreja. Embora possa às vezes ser difícil – trabalha-se tanto, empenha-se e não se vêem os resultados desejados –, mas educar na fé é maravilhoso! É talvez a melhor herança que possamos dar a alguém: a fé! Educar na fé, para que essa pessoa cresça.

[…]

Quando pensamos que temos de ir para longe, para uma periferia extrema, talvez nos assalte um pouco de medo; mas, na realidade, Ele já está lá: Jesus espera-nos no coração daquele irmão, na sua carne ferida, na sua vida oprimida, na sua alma sem fé. Vós sabeis uma das periferias que me faz tão mal, tão mal que me faz doer (senti-o na diocese que tinha antes)? É a das crianças que não sabem fazer o Sinal da Cruz. Em Buenos Aires, há muitas crianças que não sabem fazer o Sinal da Cruz. Esta é uma periferia! É preciso ir lá! E Jesus está lá, espera por ti para ajudares aquela criança a fazer o Sinal da Cruz. Ele sempre nos precede.

– Papa Francisco
Discurso aos catequistas
27 de setembro de 2013

Sobre a Reforma Litúrgica e perda de Fé dos católicos

A respeito de alguns textos (aqui) trazidos pelo Felipe Coelho nos comentários de um outro post do Deus lo Vult! sobre a Reforma Litúrgica, vale a pena tecer algumas considerações. Considero inegável que multidões de católicos perderam a Fé nas últimas décadas, muitas vezes sem sequer o perceber. No entanto, que tal se possa creditar ao «Novus Ordo» simpliciter, é um ponto francamente insustentável, como passaremos a demonstrar:

1. Os dois principais pontos apresentados nos textos acima linkados são i) que o «mysterium Fidei» foi deslocado das palavras da Consagração para imediatamente em seqüência a elas; e ii) que a «dimensão oblativa do Sacrifício da Missa», «significada pelo ofertório» tradicional, deixou de ser explicitada pelo do Novus Ordo. Estes constituem, aliás, em essência, o cerne das críticas que se costuma dirigir à Reforma: o “obscurecimento” de certas verdades distintivas do culto católico nos textos do Missal Reformado, mormente no Offertorium e no Canon Missae.

2. Ora, essas mudanças não poderiam jamais ter o condão de diminuir a Fé dos católicos medianos, por uma única e simples razão: na Missa Tradicional, todas essas orações eram proferidas em voz submissa pelo sacerdote somente, ou seja, o católico médio não tinha contato com elas no contexto da celebração da Santa Missa segundo as rubricas vigentes até 1969!

2.1. Tanto os católicos não tinham conhecimento do que o sacerdote falava ou deixava de falar no cânon que, p.ex., os católicos alemães da época da Reforma não perceberam quando os protestantes deixaram de o rezar, invalidando assim as Missas que eles assistiam! Isto é o que é contado pelo Mons. Klaus Gamber no seu livro sobre «A Reforma da Liturgia Romana»: «Quando por exemplo o reformador [Lutero] e seus partidários começaram a suprimir o cânon, ninguém se deu conta, pois, como se sabe, o cânon se dizia sempre em voz baixa» (op. cit., p. 24). O mesmo diz Sta. Catarina de Siena numa passagem d’O Diálogo que eu cito de memória, quando Deus diz à santa que muitos sacerdotes, por estarem em pecado e temerem comer a própria condenação caso comungassem o Santíssimo Corpo de Cristo, simplesmente deixavam de pronunciar as palavras da Consagração quando celebravam Missa. Como ninguém o percebia, o Altíssimo diz ainda à santa que ela poderia se precaver de adorar um simples pedaço de pão quando assistia Missa por meio de uma fórmula de adoração condicional: “adoro-Vos, Senhor, presente nesta Hóstia Consagrada, se este sacerdote pronunciou as palavras que deveria pronunciar”.

2.2. Os católicos medianos não tinham e não têm consciência do que o sacerdote rezava ou reza durante o Offertorium, pois ele, na Missa Antiga e na esmagadora maioria das Missas Novas, é rezado igualmente em voz baixa. Isso tanto é verdade que um sacerdote pode perfeitamente, p.ex., durante a celebração do Novus Ordo, trocar o Ofertório novo pelo tradicional, sem que os fiéis presentes sejam minimamente capazes de perceber a troca. Com semelhante mudança, aliás, a percepção da «dimensão oblativa» da Missa pelos fiéis presentes seria rigorosamente a mesma, sem tirar nem pôr, e uma vez que o acréscimo do Offertorium tradicional à celebração da Missa não é capaz de aumentar nos fiéis o sentido do seu caráter sacrifical, pela mesmíssima razão a sua retirada não pode ter sido capaz de lhes o diminuir.

2.3. É portanto totalmente contrário à realidade pretender que os católicos medianos tenham sido impactados por estas alterações nos livros litúrgicos, uma vez que eles não foram sequer capazes de percebê-las. Neste sentido “catequético”, aliás, a situação da Liturgia Reformada é até melhor, porque antes os fiéis não ouviam nada nem no Offertorium e nem no Canon, e agora continuam sem ouvir nada durante o Ofertório mas ao menos escutam em alto e bom som o Cânon da Missa, especialmente as palavras da Consagração.

2.4. Como todo efeito pede uma causa proporcionada, foge a toda razoabilidade pretender que a supressão de certas orações explicitamente sacrificais que constavam no Rito Tradicional possa ter minimamente afetado a Fé dos católicos comuns, uma vez que estes não as ouviam serem proferidas no Rito Antigo e, portanto, não podem, por óbvio, sentir a falta delas no Rito Moderno. Estas mudanças específicas foram completamente imperceptíveis para o grosso dos fiéis; logo, não podem ter feito jamais com que estes perdessem a Fé.

3. Deve portanto ser procurada em outro lugar a «causa» da perda da Fé dos fiéis médios. Na parte que cabe à crise da Liturgia, penso que esta deve forçosamente ser buscada naquilo que é perceptível aos fiéis, ou seja, não nas mudanças do Ofertório ou do Cânon, mas na sacralidade com a qual o Rito – qualquer que seja ele – é celebrado. Esta é aliás a opinião do então Card. Ratzinger:

“(…) Era de se esperar que os fiéis interpretem a liturgia a partir das formas concretas visíveis, e que sejam determinados espiritualmente por aquelas formas: os fiéis não penetram facilmente na profundidade da liturgia. As contradições e os contrastes que mencionamos não têm origem nem no espírito do Concílio, nem nos documentos conciliares. A ‘Constituição sobre a Sagrada Liturgia’ [do Concílio Vaticano II] não especifica nada sobre celebração virada para o altar ou para o povo; em tema de idioma, a Constituição recomenda que o latim seja mantido, mesmo dando um espaço maior para o vernáculo, ‘especialmente nas leituras e nas admonições, em algumas orações e nos cantos’ (Sacrosanctum Concilium, n. 36,2)”. Portanto, “a diferença entre velhos e novos livros litúrgicos é responsável somente em mínima parte pela crise da liturgia e a crise da Igreja, na qual se encontra há bastante tempo”. O verdadeiro ponto da questão é que houve uma mudança radical de mentalidade sobre a própria natureza da liturgia e até, em última análise, da Igreja. O Cardeal a sintetiza de forma peremptória: “O mistério sagrado foi substituído por uma criatividade selvagem”.

Dag Tessore,
“Bento XVI – Questões de Fé, ética e pensamento na obra de Joseph Ratzinger”,
pág. 85

4. Deste modo, à pergunta sobre «[q]ual foi, concretamente, o efeito da mudança [do texto] nas crenças do povo, na medida em que se pode avaliá-lo?», pode-se responder com bastante segurança: praticamente nulo. O fiel comum tinha pouquíssimo contato com os textos que foram mudados pela Reforma de Paulo VI. Os elementos da Liturgia que ele percebia e percebe mais diretamente sempre foram outros que não o texto: a dignidade dos paramentos, a posição do sacerdote, a língua, o canto. Nenhum desses últimos foi tocado pela Reforma Litúrgica. Não é, portanto, à «diferença entre velhos e novos livros litúrgicos» que se deve creditar a responsabilidade pela perda de Fé do comum dos fiéis.

5. Embora seja possível e útil analisar pormenorizadamente as questões levantadas sobre mudanças nas palavras da Consagração ou supressão dos elementos sacrificais do Offertorium – coisa que poderemos fazer oportunamente -, de antemão é possível dizer já duas coisas que, para o fim a que nos propusemos neste artigo, são mais do que suficientes:

5.1. que não há nenhuma dúvida séria entre os teólogos de que as palavras da Consagração da forma como se encontram hoje no Novus Ordo sejam suficientes para a confecção da Eucaristia e, portanto, as Missas celebradas com estas fórmulas são válidas, e igualmente que o caráter sacrifical da Missa Nova, ainda que ausente do Ofertório, está decerto presente em partes outras da Missa suficientes para lhe caracterizar enquanto culto católico; e principalmente

5.2. que nenhuma dessas mudanças pode ter jamais feito com que os fiéis comuns perdessem a Fé, uma vez que não foram sequer percebidas por eles; e portanto as causas da (inegável) crise de Fé hoje existente devem ser buscadas em outros lugares que não na simples mudança dos «textos» com os quais era celebrada a Santa Missa.

Possam estas considerações demonstrar como são infundadas certas acusações lançadas ao Missal de Paulo VI, como se ele fosse em si mesmo responsável por coisas que – como explicamos acima – não poderia absolutamente atingir nem mesmo que o intentasse explicitamente. Com isso, espera-se que as discussões sobre a [Reforma da] Reforma Litúrgica possam se voltar para os problemas reais e existentes, sem que sejam creditados a ela problemas que absolutamente não lhe cabem – coisa que nada contribui para a apreciação do assunto com a seriedade que ele exige e merece.

As impressões do Boff sobre a Lumen Fidei

O Leonardo Boff não gostou da primeira encíclica do Papa Francisco. Claro que ele não poderia gostar, uma vez que é bem conhecido o orgulhoso desprezo do ex-frade por tudo aquilo que é católico. O seu texto, contudo, é espantoso: analisando-o, parece que o “teólogo” sequer leu a Lumen Fidei que desde o primeiro parágrafo se propõe a desqualificar. Vejamos:

A Encíclia (sic) não traz nenhuma novidade espetacular que chamasse a atenção da comunidade teológica

Certamente é bem difícil conceber algum tipo de “novidade espetacular” que pudesse ser possível em um texto sobre a Fé da Igreja, que é a mesma ontem, hoje e sempre! No entanto, «[a] fé como escuta e visão» (LF 29-31) é um dos pontos mais ricos do texto pontifício, que aborda o assunto sob um prisma que eu não me recordo de ter encontrado em documentos eclesiásticos. O Papa diz que a Fé é simultaneamente ouvir e ver, o que transcende a Revelação vetero-testamentária (cuja expressão máxima se encontra no Sh’ma Yisrael – «ouve, ó Israel») e só encontra a sua plenitude na Encarnação de Cristo, que é a Palavra do Pai, que pode ser vista e ouvida e até mesmo tocada: «Por meio da sua encarnação, com a sua vinda entre nós, Jesus tocou-nos e, através dos sacramentos, ainda hoje nos toca; desta forma, transformando o nosso coração, permitiu-nos — e permite-nos — reconhecê-Lo e confessá-Lo como Filho de Deus» (LF 31). A beleza da imagem escapa completamente aos olhos remelentos do caquético ex-franciscano.

É um texto dirigido para dentro da Igreja. Fala da luz da fé para quem já se encontra dentro no mundo iluminado pela fé.

Aqui o absurdo chega às raias da falsificação intelectual pura e simples. A introdução da Encíclica coloca a questão em termos absolutamente não-crentes: começa analisando justamente «a objecção que se levanta de muitos dos nossos contemporâneos, quando se lhes fala desta luz da fé» (LF 2) e diz que «urge recuperar o carácter de luz que é próprio da fé, pois, quando a sua chama se apaga, todas as outras luzes acabam também por perder o seu vigor» (LF 4). E ainda: «a fé enriquece a existência humana em todas as suas dimensões» (LF 6). Não há sombra de «reflexão intrasistêmica» aqui, como se fosse um texto auto-referenciado e que só servisse para sedimentar católicos hermeticamente isolados de um mundo sem Fé.

E mais: os capítulos II e IV têm um evidente apelo para os que não crêem. Aquele por colocar a Fé como uma modalidade de conhecimento; este, por advogar com veemência os influxos benéficos da Fé para a vida em sociedade. Leiam-se os seguintes excertos – trago só dois – e digam honestamente se é possível dizer que esta Encíclica não tem nada a dizer para os que não têm Fé:

  • A fé ilumina também a matéria, confia na sua ordem, sabe que nela se abre um caminho cada vez mais amplo de harmonia e compreensão. Deste modo, o olhar da ciência tira benefício da fé: esta convida o cientista a permanecer aberto à realidade, em toda a sua riqueza inesgotável. A fé desperta o sentido crítico, enquanto impede a pesquisa de se deter, satisfeita, nas suas fórmulas e ajuda-a a compreender que a natureza sempre as ultrapassa. Convidando a maravilhar-se diante do mistério da criação, a fé alarga os horizontes da razão para iluminar melhor o mundo que se abre aos estudos da ciência [LF 34].
  • Assimilada e aprofundada em família, a fé torna-se luz para iluminar todas as relações sociais. Como experiência da paternidade e da misericórdia de Deus, dilata-se depois em caminho fraterno. Na Idade Moderna, procurou-se construir a fraternidade universal entre os homens, baseando-se na sua igualdade; mas, pouco a pouco, fomos compreendendo que esta fraternidade, privada do referimento a um Pai comum como seu fundamento último, não consegue subsistir; por isso, é necessário voltar à verdadeira raiz da fraternidade [LF 54].

Ainda, o número 35 da Encíclica fala sobre «A fé e a busca de Deus» e tenciona explicitamente «oferece[r] a contribuição própria do cristianismo para o diálogo com os seguidores das diferentes religiões» (id. ibid.).

E ainda vem o Boff me dizer que se trata de um texto que somente fala da Fé Católica para os que já são católicos! Ele tem certeza de que está falando da Lumen Fidei?

[O texto t]em dificuldade em aceitar um dos temas mais caros do pensamento moderno: a autonomia do sujeito e o uso que faz da luz da razão.

Evidentemente nenhum sujeito tem “autonomia” alguma frente à realidade das coisas: se minha conta bancária está negativa, é claro que eu não posso evocar a minha “autonomia intelectual” para afirmá-la cheia de dinheiro e com isso saldar os meus credores. Mas o «uso que [o indivíduo] faz da luz da razão» perpassa todo o documento, e é exatamente isto que o Papa em diversos pontos evoca em favor da Fé. Por exemplo, citando Sto. Agostinho, afirma que «a busca da razão, com o seu desejo de verdade e clareza, aparece integrada no horizonte da fé, do qual recebeu uma nova compreensão» [LF 33]. E ainda: «a busca da verdade é uma questão de memória, de memória profunda, porque visa algo que nos precede e, desta forma, pode conseguir unir-nos para além do nosso « eu » pequeno e limitado» [LF 25].

Esta afirmação [«“sem a verdade a fé não salva” (n.24)»] é problemática em termos teológicos

Em termos teológicos, o Boff é que é problemático. Aliás, problemático é eufemismo: ele é errado mesmo.

pois toda a Tradição, especialmente, os Concílios tem afirmado que somente salva “aquela verdade, informada pela caridade” (fides caritate informata).

Sim, e isso é repetido pela própria Lumen Fidei logo no seu início: «Fé, esperança e caridade constituem, numa interligação admirável, o dinamismo da vida cristã rumo à plena comunhão com Deus» (LF 7). De onde raios o Boff tirou que a Encíclica defenderia uma Fé separada da Caridade?

Mas se constata na Encíclia uma dolorosa lacuna que lhe subtrae (sic) grande parte da relevância: não aborda as crises da fé do homem de hoje, suas dúvidas, suas perguntas que nem a fé pode responder: Onde estava Deus no tsunami que dizimou milhares de vida ou em Fukushima? Como crer depois dos massacres de milhares de indígenas feitos por cristãos ao longo de nossa história, dos milhares de torturados e assassinados pelas ditaduras militares dos anos 70-80? Como ainda ter fé depois dos milhões de mortos nos campos nazistas de extermínio? A encíclica não oferece nenhum elemento para respondermos a estas angústias.

Custa acreditar que este parágrafo possa ter sido escrito, pois a Lumen Fidei reserva, sim, e explicitamente, um trecho para falar do sofrimento do mundo:

A luz da fé não nos faz esquecer os sofrimentos do mundo. Os que sofrem foram mediadores de luz para tantos homens e mulheres de fé; tal foi o leproso para São Francisco de Assis, ou os pobres para a Beata Teresa de Calcutá. Compreenderam o mistério que há neles; aproximando-se deles, certamente não cancelaram todos os seus sofrimentos, nem puderam explicar todo o mal. A fé não é luz que dissipa todas as nossas trevas, mas lâmpada que guia os nossos passos na noite, e isto basta para o caminho. Ao homem que sofre, Deus não dá um raciocínio que explique tudo, mas oferece a sua resposta sob a forma duma presença que o acompanha, duma história de bem que se une a cada história de sofrimento para nela abrir uma brecha de luz. [LF 57]

E este eu tenho certeza de que o Boff o leu, porque dois parágrafos antes ele citou a «lâmpada que guia os nossos passos na noite». Parece que, para o ex-franciscano, a resposta do Papa Francisco não é suficiente. Gostaria, então, de conhecer a relevante contribuição teológica que o Leonardo Boff tem a dar para o problema do mal no mundo, que seja melhor do que os textos magisteriais sobre o assunto resumidos nas linhas acima da Lumen Fidei.

Na verdade, o grande problema do Boff é com as partes «fortemente doutrinárias» do documento do Papa Francisco. O que provoca calafrios no velho boffento é ler a Doutrina Católica explícita com desconcertante clareza em vários pontos da Encíclica, como p.ex. quando o Papa diz com todas as letras que «[s]em verdade, a fé não salva» (LF 24); ou que «a teologia é impossível sem a fé» (LF 36), que ela «partilha a forma eclesial da fé» (id. ibid) e que «não considera o magistério do Papa e dos Bispos em comunhão com ele como algo de extrínseco, um limite à sua liberdade, mas, pelo contrário, como um dos seus momentos internos constitutivos» (id. ibid.); ou ainda que a Fé «é uma só» e por isso deve ser confessada «em toda a sua pureza e integridade» (LF 48), e isso de tal modo que «danificar a fé significa danificar a comunhão com o Senhor» (id. ibid.). É isso que o Boff não suporta. O que, para nós católicos, tem um quê de positivo: afinal, se o Boff não gostou da Encíclica, isso significa que ela é realmente boa. E que portanto deve ser bem lida, meditada e posta em prática.

A Fé deve ser confessada em toda a sua pureza e integridade – Papa Francisco, Lumen Fidei

Dado que a fé é uma só, deve-se confessar em toda a sua pureza e integridade. Precisamente porque todos os artigos da fé estão unitariamente ligados, negar um deles — mesmo dos que possam parecer menos importantes — equivale a danificar o todo. Cada época pode encontrar pontos da fé mais fáceis ou mais difíceis de aceitar; por isso, é importante vigiar para que se transmita todo o depósito da fé (cf. 1 Tm 6, 20) e para que se insista oportunamente sobre todos os aspectos da confissão de fé. De facto, visto que a unidade da fé é a unidade da Igreja, tirar algo à fé é fazê-lo à verdade da comunhão. Os Padres descreveram a fé como um corpo, o corpo da verdade, com diversos membros, analogamente ao que se passa no corpo de Cristo com o seu prolongamento na Igreja. A integridade da fé foi associada também com a imagem da Igreja virgem, com o seu amor esponsal fiel a Cristo: danificar a fé significa danificar a comunhão com o Senhor. A unidade da fé é, por conseguinte, a de um organismo vivo, como bem evidenciou o Beato John Henry Newman, quando enumera, entre as notas características para distinguir a continuidade da doutrina no tempo, o seu poder de assimilar em si tudo o que encontra, nos diversos âmbitos em que se torna presente, nas diversas culturas que encontra, tudo purificando e levando à sua melhor expressão. É assim que a fé se mostra universal, católica, porque a sua luz cresce para iluminar todo o universo, toda a história.

Papa Francisco
Lumen Fidei, 48

 

“Essa é a tentação de que mais padece hoje a Igreja” – pe. António Vieira

[Hoje é o Domingo da Sexagésima, e foi exatamente no dia de hoje que pe. António Vieira proferiu o seu célebre sermão. No último Domingo antes do de Carnaval. Ao reler as palavras do ilustre orador, como não reconhecer que as censuras então proferidas se aplicam com perturbadora adequação aos tempos de hoje? A Igreja de Deus colhe tormenta, e não pode ser por conta da palavra de Deus – muito pelo contrário até. Falta palavra de Deus nas nossas igrejas, infelizmente com bastante freqüência. É urgente rezar pelos nossos pregadores, a fim de que a palavra divina possa dar o fruto que está destinada a dar.]

Sabeis, Cristãos, a causa por que se faz hoje tão pouco fruto com tantas pregações? É porque as palavras dos pregadores são palavras, mas não são palavras de Deus. Falo do que ordinariamente se ouve. A palavra de Deus (como diria) é tão poderosa e tão eficaz, que não só na boa terra faz fruto, mas até nas pedras e nos espinhos nasce. Mas se as palavras dos pregadores não são palavras de Deus, que muito que não tenham a eficácia e os efeitos da palavra de Deus? Ventum seminabunt, et turbinem colligent, diz o Espírito Santo: «Quem semeia ventos, colhe tempestades». Se os pregadores semeiam vento, se o que se prega é vaidade, se não se prega a palavra de Deus, como não há a Igreja de Deus de correr tormenta, em vez de colher fruto?

Mas dir-me-eis: Padre, os pregadores de hoje não pregam do Evangelho, não pregam das Sagradas Escrituras? Pois como não pregam a palavra de Deus? Esse é o mal. Pregam palavras de Deus, mas não pregam a palavra de Deus: Qui habet sermonem meum, loquatur sermonem meum vere, disse Deus por Jeremias. As palavras de Deus, pregadas no sentido em que Deus as disse, são palavras de Deus; mas pregadas no sentido que nós queremos, não são palavras de Deus, antes podem ser palavras do Demónio. (…) O Diabo tentou a Cristo no deserto, tentou-o no monte, tentou-o no templo: no deserto, tentou-o com a gula; no monte, tentou-o com a ambição; no templo, tentou-o com as Escrituras mal interpretadas, e essa é a tentação de que mais padece hoje a Igreja, e que em muitas partes tem derrubado dela, senão a Cristo, a sua fé.

Pe. António Vieira
Sermão da Sexagésima

Ano da Fé

Porta Fidei é o nome do motu proprio de Sua Santidade que proclama um Ano da Fé de outubro de 2012 a novembro de 2013. A razão é simples e urgente: «Não podemos aceitar que o sal se torne insípido e a luz fique escondida» (PF 3).

Vivemos em uma terrível crise de Fé, é fato. E o Papa sabe disto perfeitamente, tanto que o coloca em pratos limpos: «Sucede não poucas vezes que os cristãos sintam maior preocupação com as consequências sociais, culturais e políticas da fé do que com a própria fé, considerando esta como um pressuposto óbvio da sua vida diária. Ora um tal pressuposto não só deixou de existir, mas frequentemente acaba até negado» (PF 2).

Que clareza assombrante, que honestidade assustadora! Não podemos mais considerar a Fé como um “pressuposto óbvio”. E o Papa não está falando somente “do mundo”, de todas as pessoas dos diversos credos (para estas, de fato, a Fé não deveria ser um pressuposto); o Papa está falando dos cristãos. São estes nos quais nós, obviamente, esperaríamos encontrar a Fé. E Bento XVI, com serenidade, diz que isso simplesmente não é verdade. Os cristãos não têm mais Fé.

E, isto, nós não podemos aceitar. Não podemos aceitar – parafraseando o Papa – que o sal se torne insípido e a luz fique escondida. Porque se Nosso Senhor veio para trazer a Fé ao mundo, é porque esta Fé é importante e deve ser propagada. Se o próprio Deus veio entregar-nos algo, não nos é lícito lançar fora este divino presente. Ora, quem seria louco de, estando diante do rei, lançar fora o presente que recebeu deste próprio monarca? Se isto nós não fazemos diante das autoridades do mundo, como poderíamos deitar por terra a Fé que Deus nos entregou – e fazê-lo diante dos olhos do Todo-Poderoso, que tudo vê? Sim, não podemos aceitar que a Fé seja perdida, que a semente fique sem fruto. Qualquer pessoa que tenha uma mínima consciência do que significa “Fé” haverá de entender isto com clareza.

Unamo-nos, pois, ao Vigário de Cristo. Testemunhemos a nossa Fé! E rezemos (desde já!) pelos frutos deste Ano da Fé. Quando o Papa escreveu a sua primeira encíclica sobre a Caridade e, pouco depois, chegou-nos a informação de que a próxima seria sobre a Esperança, eu fiquei imediatamente ansioso por ler a da terceira virtude teologal. E este anúncio de um Ano da Fé me parece um prelúdio dela. Que venham bons frutos, e que venham em abundância! Para que as almas sejam salvas. Ad Majorem Dei gloriam.

Lutero e o Papa alemão

Fui surpreendido, durante o final de semana, com a afirmação de que o Papa havia elogiado Lutero. Não dei muita atenção à notícia que, imediatamente, rechacei como estapafúrdia. Afinal de contas, Lutero fora um monge sem vocação, perturbado, entregue escancaradamente aos prazeres da carne e que (talvez numa tentativa de tranqüilizar a própria consciência) inventou uma teologia satânica onde pudesse salvar-se sem precisar abandonar os seus pecados – arrastando assim para o Inferno uma multidão incomensurável de almas.

Só depois eu li as matérias da mídia e (principalmente) as fontes primárias. Divertiu-me principalmente esta notícia, onde o jornalista não faz a menor idéia do que está falando. Misturando gafes históricas imperdoáveis (diz que «[o] papa Leão 9 expulsou Lutero da Igreja Católica Romana em 1521», quando Leão IX morreu em 1054 e o Papa que excomungou Lutero foi na verdade Leão X) com uma interpretação louca do discurso do Papa no convento de Lutero, o texto termina sem dizer nada com nada. Isto aqui, p. ex., é de um nonsense cômico:

Os protestantes gostariam que os católicos dissessem que Lutero não era um herege, mas um grande teólogo cristão. “Seria bom se eles pudessem declará-lo um doutor da Igreja”, disse à Reuters a bispa luterana de Erfurt, Ilse Junkermann.

É óbvio que os católicos não podem dizer que monge apóstata alemão é “um grande teólogo cristão” (!), e nem muitíssimo menos pode a Igreja declarar “doutor da Igreja” (!!) um heresiarca. A idéia é francamente tão absurda que, por si só, revela o vergonhoso desconhecimento da Igreja Católica do responsável pela matéria. E, ao final, ainda sou obrigado a ler que «[n]ão está claro se o Vaticano, que não gosta de oficialmente desfazer iniciativas de papas anteriores, pode ou deseja ir tão longe como a reabilitação de fato de Lutero» – cáspita, isto só não está claro para o retardado que escreveu esta reportagem! Pois qualquer pessoa normal e que conheça um mínimo de Doutrina Católica sabe que a Igreja não retrocede em questões doutrinárias e – mais que isso! – que Ela não pode retroceder, sob pena de perder a própria identidade. E, sim, isto está claro como o sol ao meio-dia para qualquer pessoa que não seja cega.

Depois da diversão, fui às fontes primárias. Está aqui o pronunciamento de Sua Santidade no Augustinerkloster de Erfurt – o convento onde Lutero viveu como monge agostiniano antes de romper com a Igreja. E descobri que o Papa “elogia” sim, Lutero, naquilo que ele é elogiável; para, imediatamente depois, criticá-lo acidamente no que ele precisa ser criticado.

O discurso do Papa é obra de um gênio. Ele está falando a luteranos e, portanto, precisa encarar a ingrata tarefa de dizer coisas pouco honrosas sobre o pai espiritual de seus ouvintes. O que faz o Papa? Ora, sabe-se que Lutero era uma mente doentia atormentada pelo pecado, que não confiava na graça de Deus e pôs na própria cabeça que era incapaz de deixar de pecar: então o Papa fala sobre a importância de nos preocuparmos a respeito do juízo de Deus em um mundo onde «a maioria das pessoas, mesmo cristãs, dá por suposto que Deus, em última análise, não se interessa dos nossos pecados e das nossas virtudes». Mas não deixa de criticar: esta luta perturbada de Lutero, «no fim de contas, era uma luta a propósito de Deus e com Deus».

O que o Papa faz? Ora, sabe-se que Lutero levou uma vida imoral e dissoluta, não obstante a sua doutrina possua elementos de verdade capaz de seduzir os incautos (como de fato tem seduzido nos últimos séculos); então o Papa fala que a espiritualidade de Lutero era cristocêntrica, mas que isso não é suficiente: «Mas isto pressupõe que Cristo seja o centro da nossa espiritualidade e que o amor por Ele, o viver juntamente com Ele, oriente a nossa vida». Coisa que todos sabem que Lutero não fez. Dizer que é necessário que o viver juntamente com Cristo – i.e., o viver em estado de Graça, o viver praticando a virtude e evitando o pecado – oriente a nossa vida… eu não consigo pensar em uma forma mais elegante de contrariar os seguidores do Sola Fide, aqueles cuja doutrina tem por princípio fundamental justamente que o que importa é no quê se crê, e não como se vive. Bento XVI só “elogia” Lutero para, imediatamente em seguida, demonstrar a falsidade do luteranismo.

E assim caminha o Papa, construindo com maestria a ponte entre ele e os luteranos ao aludir aos problemas do luteranismo sem bater (muito…) de frente com a figura de Lutero; permitindo-se até mesmo apontar os pontos problemáticos do protestantismo a partir de algum aspecto mais aceitável do monge alemão. Para, no final, pedir o óbvio: que os protestantes se convertam. E de um modo tão gentil que se torna quase impossível negar, digno de um diplomata experiente tratando de um assunto espinhoso: «E por isso Lhe pedimos a graça de aprender de novo [a] viver a fé, para assim nos podermos tornar um só».

É com este pedido que termina o discurso do Papa: pedindo a Deus para que católicos e protestantes possam se “tornar um só”. E como tal é possível? Obviamente não é possível condescender com a Fé legada pelos Apóstolos, com a Fé Católica que a Igreja guarda. Isto o próprio Papa disse com todas as letras, na celebração ecumênica feita pouco depois no mesmo convento de Erfurt:

Nas vésperas da vinda do Papa, falou-se diversas vezes de um dom ecuménico do hóspede que se esperava desta visita. Não é preciso especificar os dons mencionados em tal contexto. A propósito, quero dizer que isto constitui um equívoco político da fé e do ecumenismo. Quando um Chefe de Estado visita um país amigo, geralmente a sua vinda é antecedida por contactos das devidas instâncias que preparam a estipulação de um ou mesmo vários acordos entre os dois Estados: ponderando vantagens e desvantagens chega-se a um compromisso que, em última análise, aparece vantajoso para ambas as partes, de tal modo que depois o tratado pode ser assinado. Mas a fé dos cristãos não se baseia numa ponderação das nossas vantagens e desvantagens. Uma fé construída por nós próprios não tem valor. A fé não é algo que nós esquadrinhamos ou concordamos. É o fundamento sobre o qual vivemos. A unidade não cresce através da ponderação de vantagens e desvantagens, mas só graças a uma penetração cada vez mais profunda na fé mediante o pensamento e a vida.

E, se não é possível transigir com a Fé, então a unidade na Fé só é possível com a conversão dos transviados. Sim, que os filhos de Lutero possam abjurar os seus erros e receber de novo a Fé Católica, a Fé Verdadeira, a Fé sem a qual é impossível agradar a Deus. Que sejam profícuos os esforços ecumênicos de Sua Santidade! Que o filho pródigo caia em si e, cansando-se de comer a lavagem dos porcos, volte depressa à Casa Paterna – onde Deus o espera com festa.