Arrependei-vos e crede no Evangelho

É interessante que a Quaresma — o tempo da Misericórdia por excelência — comece com uma solene ameaça: “arrependei-vos e crede no Evangelho!”. É com esta exortação direta, bruta, sem rodeios, sem floreios (poder-se-ia até dizer “intolerante”…) que a Igreja inicia este tempo santo; provavelmente um tempo de graça e de perdão como nenhum outro no ano litúrgico.

Este santo brado quaresmal, perceba-se, vai na contramão daquela espiritualidade amorfa dos dias de hoje. O que a Liturgia das Cinzas procura não é o alívio da consciência dos que pecam, não é encontrar justificativas para os maus comportamentos nem listar causas alheias para desculpar as falhas de caráter. Ao contrário, o dia de hoje existe para excitar o arrependimento, este que é o caminho necessário para o perdão. A perda da noção do pecado tem uma consequência mais grave do que a mera reincidência no pecado. Quando se perde a noção do pecado, perde-se também a possibilidade do perdão.

Há uma diferença muito importante entre o pecado que é perdoado e o pecado que não é cometido (ou, dizendo melhor, o pecado que não se percebe cometido). Quem é perdoado muda de vida; quem não peca, ou não percebe que peca, continua indefinidamente do mesmo jeito. O milagre da elevação sobrenatural da natureza humana só se realiza naqueles que se reconhecem pecadores e, caindo em si, prostram-se, em lágrimas, diante da Fonte da Misericórdia. Sim, a fonte de Água Viva jorra eternamente para todos os que passam, mas somente os que têm sede se beneficiam dela.

Há diversas passagens no Novo Testamento que revelam, das mais várias maneiras, esta verdade fundamental: há mais alegria nos Céus por um só pecador arrependido do que por noventa e nove justos que não precisam de perdão. O Evangelho, em um certo sentido, é antes o reconhecimento do pecado que a exaltação da santidade. O fariseu jejuava e pagava os dízimos, mas foi o publicano quem saiu justificado da presença de Deus.

Não creio que esta passagem se deva interpretar com reducionismos, como se o fariseu fosse simplesmente hipócrita e se apegasse às minudências da Lei em detrimento dos seus mandamentos mais importantes — pagando “o dízimo da hortelã, do endro e do cominho” enquanto desprezava “os preceitos mais importantes da Lei: a justiça, a misericórdia, a fidelidade” (cf. Mt 23, 23). Não, que o fariseu da parábola registrada por São Lucas (cf. Lc 18, 10-14), o que rezava de pé no Templo, é outro. Este não era nem ladrão, nem injusto, nem adúltero; é perfeitamente de se crer que, além de jejuar e pagar o dízimo, ele honrasse os seus pais, dissesse a verdade, amasse o seu próximo. A hipocrisia não é o único pecado do mundo e não há nenhum elemento na perícope que autorize tachar de hipócrita aquele homem. Aquilo que Nosso Senhor censura nele é outra coisa: é o orgulho, a soberba.

E o que é a soberba? Santo Tomás ensina que soberba (superbia) é alguém pretender aquilo que está acima de suas possibilidades (Summa, II-IIae, q. 162, a.1, Resp.). A soberba é um desejo desordenado da própria excelência (id. ibid., a.2., Resp.) — inordinatus appetitus propriae excellentiae. Ou seja, a soberba é, exatamente, o fundamento e o ponto de chegada da espiritualidade contemporânea, a que diz que nada é pecado e que as pessoas devem ficar em paz consigo mesmas. A espiritualidade inimiga das culpas, que tudo releva, que invoca fraquezas humanas para afastar responsabilidades individuais, é uma espiritualidade da soberba no rigor técnico da palavra: é enxergar uma excelência que não existe e, aferrando-se a esta quimera, negar às almas o poder transformador da graça divina, fechando-lhes assim as portas do Reino dos Céus.

É, em suma, uma anti-espiritualidade, o naturalismo mais grosseiro, o conformismo mais estéril. É a ideia medíocre de que as pessoas não são capazes de ser melhores, é a noção blasfema de que o pecador impenitente é o melhor que Deus pode fazer de um filho Seu. Os adeptos de tão estranha religião, naturalmente, voltam-se com furor contra aqueles que pregam a importância e a necessidade do arrependimento dos pecados, do propósito de mudar de vida, da penitência. Odeiam a Quaresma e tudo fazem para esvaziá-la do seu sentido.

Contra eles e contra suas doutrinas ressoam as palavras eternas da Santa Igreja: arrependei-vos e crede no Evangelho! Palavras que são ao mesmo tempo uma ameaça terrível, um bálsamo reconfortante, um convite amoroso, uma doce esperança. Nós somos maus — não adianta negá-lo. Mas Deus nos ama. E é tempo de conversão.

Deus é mais forte

Os temas bélicos são parte integrante do Cristianismo, oferecendo há muitos séculos uma catequese que não pode ser desprezada. Assim, por exemplo, o marchar da História é muitas vezes apresentado nos termos de uma luta entre o bem e o mal, entre Deus que quer salvar as almas e Satanás que as quer levar à perdição. A imagem, obviamente, tem as suas imperfeições, sendo a primeira e mais gritante delas o fato de que Satanás não é um “deus do mal”. Deus e o diabo não estão na mesma categoria: o primeiro é o Criador Onipotente, o segundo é uma criatura — inteligentíssima e poderosíssima, mas ainda assim limitada.

Não existem “dois princípios”, um princípio bom chamado “Deus” e um princípio mau chamado “Satanás”, a disputar os destinos do Universo. Tal seria a concepção gnóstica, errônea, herética, condenada como falsa pela Igreja desde pelo menos o século II. Mas se a Igreja condena o dualismo gnóstico, por que Ela insiste nas imagens de luta entre o bem e o mal?

Ora, porque tal luta é verdadeira. Se é um erro hiperdimensionar Satanás a partir dela, um erro maior ainda seria negar a própria natureza de combate, ainda que analógica, à vida espiritual. Porque, da parte de Deus, Lúcifer não se Lhe opõe como um igual, é evidente; mas, da parte do homem, que precisa escolher — a cada dia, a cada instante — entre o caminho da virtude e o caminho do pecado, é bastante evidente, empírica até, a propriedade do termo “luta” para designar o esforço exigido para se permanecer no caminho do bem, quando Satanás, o mundo e a própria carne porfiam por lhe arrastar à prática do mal.

Sim, a “luta espiritual” é um antropocentrismo, conceda-se; mas não é a homens que estamos falando?

Hoje é 29 de setembro, Dedicação de São Miguel no calendário antigo, festa dos Santos Anjos — S. Miguel, S. Gabriel e S. Rafael — no calendário reformado. Sem menosprezar o auxílio de todas as cortes angélicas, é ao primeiro que dirijo em particular o pensamento neste instante — o príncipe da Milícia Celeste, aquele a quem pedimos que precipite no Inferno a Satanás. A sua representação mais famosa — o anjo de espada em punho, com o demônio derrotado aos pés — dá conta, justamente, de que a Igreja rejeita o gnosticismo: primeiro por ser um anjo, e não Deus mesmo, quem entra em combate com o demônio, e segundo porque o próprio nome de S. Miguel é o seu brado vencedor, é a mais ortodoxa profissão de Fé: quis ut Deus?

Quem como Deus? É uma pergunta retórica, provocativa, cuja resposta, evidente, é: como Deus não há ninguém. Não há dois princípios disputando o domínio do mundo. Há somente Deus, infinito, inalcançável, sem igual, sem nada nem ninguém que Lhe seja sequer semelhante (salvante a semelhança divina que os seres espirituais possuímos, mas que é participação e não natureza). Houvessem os gnósticos sido mais devotos dos Santos Anjos, não teriam caído nos erros em que caíram. São Miguel não apenas derrota Satanás como restabelece o próprio terreno do combate espiritual, que não se trava entre duas potências opostas mas sob a Providência amorosa de um Deus que é Pai. E isso nos deve confortar.

Estátua de São Miguel nos Jardins do Vaticano (Pinterest)

São Miguel Arcanjo é o protetor da Igreja. Nos jardins vaticanos há uma imagem sua, inaugurada pelo Papa Francisco junto com Bento XVI em 2013. Na ocasião, Sua Santidade lembrou que Deus é mais forte, que o demônio tenta ferir a face do homem mas, ao final, o Arcanjo vence e restabelece a justiça divina. Não há portanto razões para temer. Mesmo que os inimigos nos cerquem numerosos, mesmo que avancem sobre nós e pareçam invencíveis, mesmo que sintamos o sangue escorrer pelo rosto fustigado, ainda assim não há ninguém como Deus. E os anjos e santos de Deus olham por nós, olham pela Igreja. Nós, às vezes, nos distraímos; os Céus estão sempre vigilantes.

Calendário Quaresmal 2019

Mais um Carnaval tem seu fim, mais uma Quaresma nos é concedida pela Divina Providência — graças a Deus. Mais uma vez a Misericórdia do Altíssimo nos concede um tempo favorável para a conversão. Mais uma vez, embora o mundo não a mereça, a oportunidade de fazer as pazes com Deus. Mais uma vez Cristo estende ao mundo as mãos ensanguentadas, oferecendo amor e amizade. Será pedir demais as nossas lágrimas…?

Pois as choremos com coragem e valentia! Aproximemo-nos do Senhor enquanto Ele está perto; busquemo-Lo, enquanto Ele Se deixa alcançar. A Quaresma é este tempo de exercícios espirituais no qual a Igreja Militante se prepara para melhor servir a Cristo. Não é simplesmente um tempo de fugir do pecado — todo o tempo, insista-se, todo o ano, todos os dias, independente do tempo litúrgico, é tempo de se fugir do pecado! A Quaresma é mais que isso. Além de resistir ao mal, é tempo de praticar o bem. Além de não cometer novos pecados, é tempo de fazer penitência pelos pecados de outrora.

E, para isso, pode ajudar ter uma rotina de exercícios — um calendário que indique o que pode ser feito em cada um dos dias desta Santa Quaresma. Atenção, que se trata de simples sugestão: pequenos propósitos para ajudar a viver frutuosamente este tempo de graças. Não se trata de regra da Igreja — a regra eclesiástica é a da Paenitemini, “todos os fiéis estão obrigados pela lei divina a fazer penitência” (Chapter III, I. 1), reproduzida no Código de Direito Canônico: “Todos os fiéis, cada qual a seu modo, por lei divina têm obrigação de fazer penitência” (CIC, Cân. 1250).

Em suma, que temos que fazer penitência é certo. Tal decorre tanto da lei eclesiástica quanto da lei divina. Como havemos de fazê-la, excetuados o jejum e a abstinência dos dias prescritos para a Igreja Universal, aí já é coisa que cada fiel deve discernir por si. Dentro da diversidade dos deveres de estado particulares, cada católico deve eleger o modo específico de concretizar o dever comum da penitência, principalmente no tempo quaresmal.

É neste sentido que é apresentado o calendário abaixo. Nas palavras do Regnum Christi Recife, responsável por sua elaboração:

O Calendário traz sugestões diárias de propósitos para nos ajudar a viver uma Quaresma mais comprometida e agradável a Deus. Aliado a ele, recomendamos também as meditações do projeto “One Step Closer”, que serão divulgadas na página nacional do Regnum Christi @regnumchristibrasil. Que sejamos dóceis à graça divina e Nosso Senhor use destas ferramentas para converter e formar nosso coração.

Movimento Regnum Christi no Recife

Acesse-se aqui o calendário, ou clicando sobre a imagem abaixo. A todos, uma santa e profícua Quaresma! Que, ao longo destes dias de roxo, o trigo seja triturado para fazer-se pão branco imolado a Deus na Páscoa da Ressureição.

Calendário Quaresmal 2019

A má formação do clero e a validade dos Sacramentos

Uma leitora me perguntou por email se a falta de Fé dos sacerdotes poderia macular a eficácia dos sacramentos ministrados por eles. Por exemplo, se um sacerdote que não acredita na Transubstanciação poderia celebrar uma Missa válida (ou seja, uma Missa na qual a Hóstia Consagrada se tornasse, real e substancialmente, no Deus Vivo e Verdadeiro), ou se um bispo que descrê na Igreja Hierárquica poderia ordenar verdadeiros sacerdotes (ou seja, homens capazes de “confeccionar” os Sacramentos da Nova Aliança).

A resposta curta e direta para a pergunta é que os ministros celebram validamente os Sacramentos ainda que particularmente não tenham Fé. É o que consta nos manuais de teologia sacramental: “La validez y eficacia de los sacramentos no dependen de la ortodoxia ni del estado de gracia del ministro” (OTT, Manual de Teologia Dogmática, Livro IV, Parte III, Seção I, Cap. IV, §9., 1., b.). Quanto a este ponto não parece haver polêmica digna de nota, estando as posições donatistas já derrotadas há muitos séculos pela Igreja.

Mas há uma outra questão afim. É que todo Sacramento exige matéria, forma e ministro com intenção de fazer o que faz a Igreja. Sabe-se que a intenção suficiente para a validade dos sacramentos é a mera intenção virtual (Summa, IIIa, q.64, a.8, ad.3); no entanto, mesmo esta precisa ser minimamente qualificada. O próprio Aquinate, dois artigos depois, diz que se alguém quiser realizar não um sacramento, mas uma paródia, este anula o sacramento (id. ibid., a.10, Resp.). E o mesmo Ludwig Ott afirma poucos parágrafos depois (id. ibid., 2., b., c’.) o seguinte (tradução livre):

Segundo a opinião hoje quase geral dos teólogos, para a administração válida dos sacramentos requer-se [da parte do ministro] a intenção interna, isto é, uma intenção tal que não apenas tenha por objeto a realização externa da cerimônia sacramental, mas também o seu significado interno. É insuficiente a intenção meramente externa que foi considerada como suficiente por numerosos teólogos da escolástica primitiva (…) e muitos teólogos dos séculos XVII/XVIII.

Esta intenção meramente externa tem por objeto a realização da cerimônia religiosa com seriedade e nas circunstâncias devidas, porém deixando de lado o seu significado religioso interno. Como é natural, essa intenção não responde ao dever de fazer o que faz a Igreja, nem ao papel do ministro como servidor de Cristo, nem à finalidade do signo sacramental que em si é ambíguo e recebe sua determinação da intenção interna; nem tampouco está de acordo com as declarações do Magistério (cf. Dz 424, «fidelis intentio»).

A distinção é relevante. A lhe dar crédito, parece que é preciso matizar a resposta anteriormente dada. Parece, assim, que a mera falta de Fé do ministro não é suficiente para invalidar o Sacramento ministrado; no entanto, é possível cogitar de invalidade por defeito de intenção (não meramente “por falta de Fé”) se o ministro deliberada e conscientemente descrer da realidade sacramental.

Alguns exemplos. Certo padre nutre dúvidas sobre a realidade da transubstanciação; não consegue crer na Presença Real, mas sofre por conta disso, e celebra reta e zelosamente a Santa Missa. O Sacramento é válido; tal é, precisamente, a história do milagre de Lanciano. A intenção, neste caso, era reta, ainda que faltasse ao padre, em certa medida, a fé eucarística.

Outro exemplo. O sujeito rompe formalmente com a Igreja Católica. No entanto, incoerente mas honestamente, continua acreditando em Nosso Senhor Jesus Cristo. Batiza, respeitando a fórmula trinitária. O Sacramento é válido, sem dúvidas: esta é uma das definições doutrinárias mais antigas, da época do Cristianismo Primitivo.

Terceiro exemplo. O indivíduo é um simplório, tem uma profunda limitação intelectual, ou quem sabe pertence a uma cultura estranha (digamos, é um silvícola em seu primeiro contato com o europeu), mas se encantou com a pregação dos missionários, largou tudo o que tinha e se fez ordenar sacerdote. Não entende, absolutamente!, todos os detalhes da teologia sacramental católica, mas decorou os ritos da Santa Missa e, quando a celebra, entende estar praticando o culto dos católicos. Ainda neste caso o Sacramento é válido pela retidão do sacerdote.

Ou seja, o sacramento é válido, ainda que o ministro não acredite nele, se essa descrença for uma mera fraqueza; é válido, ainda que o ministro negue o dogma católico, se a negação do dogma versar sobre um ponto alheio ao Sacramento que se está ministrando; e é válido, ainda que o ministro não compreenda direito o que está fazendo, se essa incompreensão for fruto de uma formação insuficiente e não-culposa. Não há, nestes casos, defeito de intenção capaz de invalidar o Sacramento.

Caso diferente ocorre quando o padre conhece o ensino da Igreja sobre determinado sacramento e, conscientemente, com malícia, quer fazer algo diferente do que a Igreja entende com o sacramento. Por exemplo, se o padre sabe que a Igreja ensina ser a Missa a renovação incruenta do Sacrifício do Calvário, mas acha que a Igreja está errada, e quando ele “preside a Eucaristia” o que ele efetivamente quer celebrar é um banquete simbólico festivo, então neste caso o Sacramento é inválido. Não porque — atenção! — falte-lhe Fé, mas porque lhe falta a intenção de fazer o que faz a Igreja neste caso específico. No mesmo exemplo, se este mesmo padre acredita ter o poder de perdoar os pecados, e se ao ouvir confissão ele quer realmente absolver o penitente de suas faltas, então a sua confissão é válida mesmo que a sua Missa não o seja.

Pelo que vejo, eu acredito que o problema da má-formação dos sacerdotes, no geral, enquadra-se no exemplo da formação insuficiente que referi acima. São pessoas de reta intenção que podem até ter idéias bem equivocadas sobre o dogma católico; mas não o fazem com o animus específico de agir contra o que a Igreja ensina, o que faz toda a diferença. Na pior das hipóteses, têm a intenção de celebrar a cerimônia cristã que (acreditam que) a Igreja celebra, e isso é suficiente para garantir a intenção virtual capaz de conferir validade aos sacramentos. Com esses não é preciso se preocupar.

Ao contrário, é preciso se acautelar dos padres orgulhosos, rebeldes, que negam conscientemente o ensino sacramental da Igreja; e dos que celebram de maneira debochada, ou mecânica. Um e outro podem ministrar sacramentos inválidos por defeito de intenção. Não simplesmente por conta de má formação, mas de uma formação má. Porque para invalidar um sacramento não é suficiente ser ignorante, é preciso saber que está fazendo errado, é preciso querer fazer errado. Por mais que a situação do clero atual seja deplorável, não me parece que haja entre ele tanta perversidade a ponto de transformar a validade dos sacramentos em uma questão exageradamente preocupante.

O Magistério da Igreja e o Direito secular

Um amigo perguntou, dia desses, se o Papa era como o STF da Igreja Católica. A analogia na qual ele estava pensando era a seguinte: assim como é o Supremo Tribunal Federal quem diz definitivamente o que é constitucional e o que não é constitucional dentro da ordem jurídica brasileira, seria, na Igreja Católica, o Papa quem por último diria o que é ortodoxo e o que é herético dentro da Doutrina Católica. Assim como o STF diz o que é que a Constituição diz, o Papa seria aquele que diz o que é que a Revelação diz.

O Direito me parece fortemente tributário da Teologia, sem dúvidas, e é possível — mais até, é fácil — encontrar diversos paralelos entre os juristas e os teólogos. Não obstante, penso que é preciso ressaltar as diferenças entre um acórdão do STF e uma bula papal, a despeito de a metáfora acima parecer sedutora. Ou melhor, é preciso enfatizar, por todas, uma única diferença crucial e insuperável entre as duas esferas: o direito é essencialmente mutável, a doutrina não pode mudar jamais.

Isso porque o direito deve se adaptar às peculiaridades (obviamente, apenas àquelas legítimas) dos diversos tempos e lugares, dos usos e dos costumes dos homens. Com a doutrina acontece exatamente o contrário: são os homens que devem se adaptar a ela, às suas consequências e suas exigências. Daí porque é legítimo (mais até, é perfeitamente razoável, é até esperado) que um Tribunal modifique o seu entendimento a respeito de determinada norma jurídica levando em conta as transformações sociais, ao passo em que a Igreja não pode mudar jamais um jota da lei de Deus mesmo que uma centena de cidades dos homens sejam edificadas sobre os escombros da Cidade de Deus.

Sim, é claro que existe um direito natural imutável do qual o direito positivo deriva — ou ao menos deve derivar. Ainda assim a lei humana pode (e, em muitos casos, até deve) mudar. É o que ensina Santo Tomás (Summa, I-IIae, q. 97, a. 1): conquanto a lei natural não mude nunca, deve a lei positiva mudar por um duplo motivo. Primeiro, porque a razão humana é imperfeita e, portanto, as leis por ela ditadas podem ser sempre aperfeiçoadas a fim de que correspondam melhor aos ditames do direito natural. E, segundo, porque mudam naturalmente as condições dos homens, e a estes «convêm coisas diversas segundo as suas diversas condições» (id. ibid, Resp.).

O Papa (ou, melhor dizendo, o Magistério da Igreja) é infalível em determinadas condições, e aquilo que é verdadeiro não pode simplesmente passar a ser falso depois: o aprofundamento da Revelação no curso da história da Igreja, que existe, só pode ser integrativo e não superativo. Isso quer dizer que coisas distintas podem vir a se acumular no corpo doutrinário e moral da Igreja Católica, mas aquilo que era doutrinariamente certo não pode passar um dia a ser incerto, e aquilo que era moralmente ilícito não pode passar a ser lícito nem vice-versa. Com o direito é diferente, as diversas teses jurídicas podem (e em alguns casos até devem) se superar umas às outras, inclusive eivando de ilicitude aquilo que em outros tempos era perfeitamente jurídico, e isso é completamente natural. Não dá para estabelecer nenhuma comparação entre o ordenamento jurídico e o magistério eclesiástico desconhecendo essas coisas.

Certamente não faltará entre meus interlocutores quem me interpele sobre os juros, ou a tortura ou a escravidão. A isso é preciso responder sucintamente, primeiro, que nenhuma dessas coisas é intrinsecamente má; segundo, que em tempos passados determinadas condições dos homens, distintas das atuais, autorizaram-nas ou as vedaram, legitimamente; terceiro, que a consciência moral da humanidade encontra-se hoje em um patamar superior — quando menos de acúmulo de experiências históricas –, em melhores condições portanto de apreciar o que melhor convém à comunidade humana. Antes do ensino da Igreja, portanto, o que mudaram foram as condições dos homens; outrossim, o rol exíguo, restritíssimo destes exemplos históricos aponta antes para o caráter extraordinário do fenômeno do que para uma superabilidade essencial da moral católica que a pudesse tornar análoga ao direito humano.

Voltando à comparação entre o Magistério e o Judiciário, o maior problema com ela é o pressuposto que ela enseja: assim como o direito deve ser sempre revisto para melhor corresponder às mudanças sociais, então assim também o Magistério católico deveria (ao menos eventualmente) superar o seu ensino em atenção às modificações sofridas pela sociedade. Tal compreensão é falsa e ignora as sensíveis diferenças existentes entre a Igreja e o Direito secular, conforme exposto. E, por conta disso, a fim de evitar nefastas confusões, não convém traçar analogias entre os dois campos sem atentar criteriosamente para aquilo que é próprio de cada um.

Sacrificando para sacrificar

O padre Fábio de Melo, ao que parece, deu recentemente em certo programa de TV uma declaração favorável ao celibato clerical. Consta que o padre se disse confortável com a sua opção; parece que teria alegado que, se tivesse uma família, não seria capaz de levar a vida que leva.

É sem dúvidas uma defesa do celibato; mas não é a sua melhor defesa. Sim, é evidente que há questões de ordem prática que desincentivam aos sacerdotes a constituição de uma família; quem quer que pense no assunto por cinco minutos consegue perceber que há uma espécie de incompatibilidade radical entre o século e o altar. Sabe-se que um pai de família possui uma série de obrigações para com as quais não pode ser negligente: deve, para ficar apenas no exemplo talvez mais óbvio, largar o que quer que esteja fazendo para acompanhar, por exemplo, uma esposa subitamente doente ou um filho acidentado ao hospital.

Ora, um sacerdote cuida das coisas de Deus e da salvação das almas: e isso não são coisas que se possa largar de súbito, à primeira das exigências inesperadas que surja da vida conjugal. Um sacerdote deve dedicar todo o seu ser ao serviço das almas que a Divina Providência lhe confiou; um marido, como São Paulo ensina na Carta aos Efésios, deve sacrificar a própria vida em prol da sua esposa. É notório que um dever pode entrar em conflito com o outro em um sem-número de casos concretos. Percebe-se, assim, ser conveniente que um sacerdote não seja pai de família e que um pai de família não seja sacerdote.

Mas não é somente disso que se trata. Os deveres que decorrem do Sacramento do Matrimônio são de uma natureza diferente da dos que decorrem do Sacramento da Ordem, é lógico. E entre ambos os grupos de deveres pode haver uma como que incompatibilidade natural — isso é verdade, é facilmente perceptível e é possível a qualquer um pensar em mil e um exemplos que o demonstrem. Mas esse tipo de argumentação corre o risco de se tornar por demais materialista. No limite, ela pode se transformar somente em uma versão um pouco mais elaborada daquela estória de que os padres não podiam se casar para que as viúvas e os órfãos não viessem a dilapidar o patrimônio da Igreja.

Porque ditas as coisas desse modo fica parecendo que o laço conjugal é um estorvo que impede o homem de desempenhar aquilo que ele, sozinho, é capaz de fazer muito bem. E isso, além de não ser a melhor defesa do celibato, é uma das piores formas de apresentar o Matrimônio cristão.

É preciso dizer diferente: é preciso defender que o amor conjugal é um dom precioso e, exatamente por ser um dom precioso, convém que seja sacrificado no altar do sacerdócio ministerial. Não é que ter uma família vá de algum modo atrapalhar o padre a desempenhar o seu múnus sacerdotal: poderia ser até mesmo que a mulher e os filhos o ajudassem, e ainda assim o celibato seria uma coisa valiosa e exigível. Porque um sacerdote é um sacrificador e portanto nada mais justo que ele inicie a sua jornada sagrada sacrificando precisamente aquilo que é o ápice da vida humana: o Sagrado Matrimônio. É deste sacrifício primevo e radical que nasce o sacerdote: é sendo ele próprio vítima desta sagrada oblação que ele se purifica e se torna perfeito para oferecer quotidianamente a Vítima Imaculada nos altares do Deus Três-Vezes Santo.

Não é, portanto, que constituir família vá se tornar um empecilho à atuação do sacerdote: isto pode até ser verdade em algum caso concreto, mas não é esse o ponto. O celibato existe porque o sacerdote existe em função do Sacrifício do Altar, da entrega ao qual nascem todos os outros sacrifícios — sendo o celibato o primeiro deles. O celibato é a expressão visível e externa do sacrifício em que consiste a vida consagrada. É o Isaac espiritual que o Senhor dos Exércitos exige para Si. Oferecendo-o generosa e virilmente em Moriá, o sacerdote se torna digno de subir o Calvário a cada Santa Missa. Sacrificando, ele se capacita para sacrificar.

Canonização sem martírio nem heroísmo: os altares ficam mais próximos?

Com o motu proprio Maiorem hac dilectionem, publicado no último dia 11 de julho, o Papa Francisco estabeleceu um novo critério para a canonização dos santos: a oferta da vida (vitae oblatio), que agora passa a ser uma nova causa para o processo de beatificação e canonização. Até então o caminho para os altares era aberto pelas hipóteses do martírio (super martyrio) e do heroísmo das virtudes (super heroicitatem virtutum).

Na prática, o que acontece é que a Congregação para a Causa dos Santos vai passar a admitir processos de canonização baseados na oferta da própria vida, ainda que a morte não se dê in odium Fidei (hipótese tradicional de martírio) e ainda que a pessoa não tenha levado uma vida extraordinária na prática das virtudes cristãs (hipótese tradicional de heroísmo das virtudes). Ou seja, será possível postular a canonização de uma pessoa que, ainda não tendo exercido durante a vida as virtudes em grau heróico, ofereça propter caritatem a própria vida e aceite uma morte prematura mesmo em situações distintas do martírio propriamente dito.

As condições, segundo o documento (Art. 2), são as seguintes:

a) oferta livre e voluntária da vida e aceitação heroica propter caritatem de uma morte certa e a curto prazo;
b) nexo entre a oferta da vida e a morte prematura;
c) exercício, pelo menos em grau ordinário, das virtudes cristãs antes da oferta da vida e, depois, até à morte;
d) existência da fama de santidade e de sinais, pelo menos depois da morte;
e) necessidade do milagre para a beatificação, ocorrido depois da morte do Servo de Deus e por sua intercessão.

A ideia (ventilada, por exemplo, aqui) de que o Papa Francisco esteja querendo canonizar cristãos não-católicos não se sustenta. Se ele quisesse fazê-lo, seria muito mais fácil utilizar-se da hipótese (desde sempre vigente!) do martírio, uma vez que não-católicos são, ainda hoje, perseguidos e mortos mundo afora por conta de sua fé. A perseguição movida contra cristãos, por exemplo, pelos muçulmanos, naturalmente não conhece barreiras denominacionais — para os sarracenos, um herege é tão infiel quanto um católico, e um e outro são igualmente assassinados por não aceitarem se prostrar diante do Allah de Maomé.

Ora, todos sabemos «que aqueles que sofrem de ignorância da verdadeira religião, se aquela é invencível, não são eles ante os olhos do Senhor réus por isso de culpa alguma» (Pio IX, Singulari Quadam, 1854, Denzinger, 1647, apud Montfort) e, a princípio, uma pessoa que prefere morrer a negar suas convicções transmite um atestado bastante credível da própria boa-fé (conquanto matar por aquilo em que se acredita, e eventualmente morrer no processo — caso, por exemplo, dos fautores de todas as revoluções do mundo –, seja coisa banal e bastante condizente com os instintos desordenados humanos, naturalmente não é disso que se trata quando, por exemplo, cristãos coptas morrem em uma Igreja explodida por terroristas islâmicos). Aqui a virtude (mesmo que meramente humana) é inegável e, em muitos aspectos, verdadeiramente admirável.

Se o objetivo fosse canonizar não-católicos, então, não seria necessário alterar os critérios vigentes de canonização. Seria perfeitamente possível lançar mão dos mártires não-católicos que os muçulmanos, inadvertidamente, costumam mandar para o Paraíso.

No entanto, elevar aos altares essas pessoas não é possível. Primeiro porque fora da Igreja nenhuma salvação é certa, nem mesmo a do martírio: o Concílio de Florença atesta que fora da comunhão da Igreja não se pode salvar nem mesmo vertendo o sangue em nome de Cristo, e diante de uma sentença assim peremptória não é possível abrir brecha para nenhuma espécie de irenismo. No mesmo sentido, embora de maneira mais comedida, o Papa Pio IX ensina a mesma coisa: é um erro esperar bem da salvação dos que vivem fora da verdadeira Igreja de Nosso Senhor (Syllabus, erro 17).

Em segundo (e mais importante) lugar porque declarar alguém santo — “santo de altar” — não é meramente ter fundada esperança de que o sujeito se encontra na Bem-Aventurança Eterna, não é apenas encontrar na vida da pessoa aspectos admiráveis: é mais que isso. Canonizar é insculpir uma vida humana no frontispício da Igreja de Cristo, para louvor público de Deus e edificação dos fiéis. É abrir uns rasgos na Eternidade e trazer para as feridas da Igreja Militante uns lampejos da glória da Igreja Triunfante. Qualquer um pode salvar-se mediante um ato de contrição sincero in articulo mortis (e nós esperamos que sejam muitos os que ingressam nas Moradas Eternas por esta via!), mas não é disso que se trata quando estamos falando em eternizar histórias humanas nos altares imorredouros da indefectível Igreja de Nosso Senhor.

A virtude é virtude onde quer que se encontre — e isso não foi jamais negado –, mas a canonização não é um mero atestado de que alguém foi “uma pessoa boa”. Sem dúvidas é justo, em princípio, reconhecer que há um grande valor (talvez até mesmo — permita-o Deus! — sobrenatural) nestas mortes provocadas não por um ódio específico às heresias, mas sim pela imagem de Cristo que, nelas, conquanto deformada, ainda bruxuleia. Isso, no entanto, não autoriza jamais cogitar de apresentar um herege como modelo de santidade à imitação dos fiéis católicos. Evidentemente não é possível ornamentar a face visível da Igreja (Seu culto público) com almas que em vida A rejeitaram externamente — ainda que possam, na glória, fazer enfim parte d’Ela. São duas coisas completamente diferentes.

E se não é possível canonizar indistintamente os que são mortos por ódio a Deus, tampouco se pode conceder altares sem mais critérios aos que entregam a vida por amor ao próximo. Inclusive parece até mais fácil encontrar não-católicos martirizados do que não-católicos dispostos a realizar a oferta da própria vida propter caritatem. A situação atual não é, portanto, mais laxa do que a anterior. E se não era anteriormente possível canonizar entre os não-católicos nem mesmo as almas simples que derramaram o próprio sangue por causa de Nosso Senhor, pela exata mesma razão não é possível, agora, canonizar aquelas que, fora da Igreja, abrem mão de sua vida por amor ao próximo. A mera idéia não faz nem sentido.

O que muda então com o documento? O Padre Z. arriscou alguns comentários, e lembrou alguns santos que facilmente se encaixariam nesta hipótese de vitae oblatio — como S. Maximiliano Kolbe, que se ofereceu em lugar de um prisioneiro em um campo nazista, ou Santa Gianna Beretta Molla, que mesmo diagnosticada com um câncer de útero manteve a gravidez até que sua filha nascesse. São exemplos que revelam uma coisa que convém não esquecer: abrir mão da própria vida em favor de outrem já é uma atitude que apresenta rasgos de heroísmo! Não ficou mais fácil ser canonizado. Os altares não são para os medianos.

O Papa Francisco não está tornando mais fácil chegar ao Céu (afinal de contas, quem em sã consciência diria que é fácil morrer por alguém?): os altares continuam tão altos quanto sempre estiveram. Não é possível ao homem elevar-se aos altares: o que ele pode — e deve! — fazer é se deixar ser elevado até eles por Deus. Porque pode até haver canonização sem milagre, sem martírio, mesmo sem virtudes extraordinárias: o que não pode haver, jamais, é canonização sem santidade. Esta é a que não pode nunca faltar. Esta é a que somente Deus pode conceder.

Onde estudar doutrina católica?

Alguém me perguntou recentemente onde estudar doutrina católica. A pergunta, fazendo-me pensar talvez pela primeira vez em muito tempo sobre o assunto, fez-me perceber que não existem (mais) espaços virtuais de referência em catolicismo, como tais amplamente reconhecidos e capazes de pautar as discussões sobre determinados temas. Hoje tudo é muito pulverizado e, se por um lado há um ganho na amplitude dos assuntos acessíveis, por outro lado uma visão sistemática do todo exige, da parte do leitor, uma disciplina que a própria pulverização da informação torna cada vez mais difícil conseguir.

As coisas eram diferentes há uns dez anos atrás: tudo era muito mais, por assim dizer, concentrado. Os católicos estavam reunidos no canal #catolicos do IRC. Havia duas comunidades “Católicos” no Orkut, uma maior, e mais superficial, e outra, menor, voltada especificamente para dúvidas e debates. Havia dois grandes sites de referência em Catolicismo, o Veritatis Splendor e o da Associação Cultural Montfort. Havia a lista de emails do prof. Carlos Ramalhete, a tradicao-catolica. E praticamente era só.

Se alguém quisesse saber algo sobre um determinado assunto, os sites eram organizados tematicamente, sendo relativamente fácil encontrar o que se procurava. Se alguém tivesse alguma dúvida mais elaborada, a comunidade do Orkut era palco dos mais apaixonados debates — sobre temas não raro inéditos e, às vezes, bem espinhosos. A lista de emails do Yahoo Groups, por sua vez, também já abrigou as polêmicas católicas mais exaltadas que já trafegaram mediante TCP/IP. Em suma, havia uma grande concentração de esforços em um número restrito de espaços, o que tornava cada um deles um centro de excelência.

Hoje não. Primeiro porque, por incrível que pareça, as ferramentas que incentivam construção colaborativa de conhecimento são hoje mais raras do que nos primórdios da Web 2.0: o Facebook, convenhamos, é no máximo arena de propaganda, não comunidade de discussões. Segundo porque os blogs ocuparam o espaço dos grandes portais, e a proposta do blog é diferente daquela de um portal de referência: no próprio Deus lo Vult!, por exemplo, há sem dúvidas muito conteúdo de relativa qualidade, mas eu não posso dizer que, depois de quase uma década, haja suficiente sistematização dos textos aqui publicados. Se alguém chega agora e me pergunta o que já escrevi sobre um dado assunto, eu tenho pouca coisa a fazer além de recomendar o mecanismo de busca do site… Além do mais, os blogs, em regra projetos pessoais, costumam ter o estilo dos seus autores e o ritmo de sua disponibilidade particular, e um site que consegue manter uma boa equipe tende a possuir maiores versatilidade e constância.

Resumindo, a minha sincera impressão é a de que hoje a informação é muito mais completa e mais detalhada do que no início dos anos 2000, mas no entanto está muito mais espalhada — sendo, por isso, de muito mais difícil acesso.

Onde estudar então doutrina católica? Bom, pensando no assunto à luz do que falei acima, o que posso fazer é dar alguns conselhos que mimetizem, o quanto seja possível, a minha experiência particular da década passada. Se isso interessar a alguém, ótimo.

No tocante a dúvidas gerais sobre o Catolicismo envolvendo temas polêmicos, a sempre recomendada revista do saudoso D. Estêvão oferece uma espécie de apologética preambular. Os temas lá tratados, embora raramente sejam exauridos (até por conta dos limites de espaço), são contextualizados de modo bastante satisfatório para quem pretende entender os contornos gerais do problema. Muitas edições da revista estão disponíveis online e podem ser acessadas aqui. Desconheço se há alguma perspectiva de digitalizar os exemplares faltantes [p.s.: conforme informaram nos comentários, todo o acervo digitalizado da P&R está disponível no Scribd].

Para se obter uma visão ampla dos diversos ramos do Catolicismo o caminho mais simples é a leitura dos manuais — em português antigo, quase sempre xerocados ou, pior, em xerox digitalizadas. Para citar os mais facilmente encontráveis: Dogmática, Ludwig Ott; Moral, Del Greco, Royo Marín; Mística, Tanquerey. Também o Boulenger (Instrução Religiosa; Apologética) me foi muito útil nos proêmios do Catolicismo. Alguns sites que possuem obras valiosas disponíveis na íntegra são o Mercabá, o Alexandria Católica e o Obras Raras do Catolicismo: não deixem nunca de visitar, divulgar e colaborar com eles.

Livros clássicos, há-os muitos e é até difícil sistematizá-los aqui. Mais uma vez, com base unicamente na minha experiência particular, sem nenhuma sistematização mais rigorosa, sem pensar muito no assunto, os livros que tiveram maior relevância na minha formação foram: o Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem (São Luís de Montfort), A prática do amor a Jesus Cristo (Santo Afonso de Ligório), Filotéia (São Francisco de Sales), Ortodoxia (Chesterton), A Fé em Crise? (Vittorio Messori / Card. Ratzinger), A Imitação de Cristo (Tomás de Kempis), Confissões (Santo Agostinho), O Diálogo (Santa Catarina de Sena). Ao lado destes há um sem-número de outros cuja não-leitura até hoje perfaz talvez o aspecto mais embaraçoso da minha parca erudição, como a História de uma Alma (Santa Teresinha), o Castelo Interior (Santa Teresa), A alma de todo apostolado (Dom Chautard), As Grandes Heresias (Billoc), a Apologia Pro Vita Sua (Card. Newman), As três idades da vida interior (Garrigou-Lagrange) e tantos, tantos outros. Trata-se de lista que eu não tenho envergadura para elaborar.

Leituras demoradas e silenciosas de coisas antigas: em linhas gerais é isso. Reconheço que é uma receita muito diferente da sistemática atual, onde a Timeline tem uma efemeridade assustadora e onde as pessoas só parecem capazes de ler manchetes ou assimilar memes. Mas eu penso que a apreensão de um conhecimento sólido sobre o que quer que seja não condiz com a forma como se consome informação na internet atualmente. É preciso parar para ler algumas coisas que não fiquem mudando rapidamente na tela do computador ou do celular enquanto você olha para o lado: é preciso ler aquilo que tem suficiente estabilidade ao longo do tempo para valer a pena ser lido. Talvez essa não seja a única forma de se aprender doutrina católica, reconheço; mas serviu para mim e, portanto, talvez sirva para mais alguém.

Clássicos católicos para o Kindle: Lúcio Navarro e Tanquerey

A quem interessar possa, a Amazon está vendendo, em formato Kindle, dois livros excelentes em português. Cliquem nas capas para os obter.

Legítima Interpretação da Bíblia, de Lúcio Navarro. Obra seminal da apologética contra o protestantismo, durante muitos anos esteve fora de edição; lembro-me inclusive de que há alguns anos um grupo de católicos daqui de Recife dividiu entre si as xerox dos capítulos do livro para que ele pudesse ser transcrito e reeditado — um trabalho colaborativo muito tempo antes de existir o crowdfunding. A obra é verdadeiramente clássica e vale muito a pena para conhecer mais a fundo a doutrina católica extraída das Escrituras — e como a interpretação dos protestantes é totalmente insustentável diante da Bíblia que eles próprios têm por sagrada.

Compêndio de Teologia Ascética e Mística, de Tanquerey. Outro clássico da vida espiritual, cuja única tradução comercial para o português, até onde eu conhecia, era a da Permanência que hoje, salvo engano, encontra-se esgotada. Eu costumo ter medo de “novas traduções atualizadas”, mas este compêndio possui uma autoridade multissecular — difícil, quero crer, de ser obscurecida por eventuais problemas de tradução. De qualquer modo o produto está bem avaliado no site da Amazon, e não encontrei críticas ao trabalho do Dalton César Zimmermann. Quem quiser comparar com uma edição tradicional pode baixar a do pe. João Ferreira Fontes aqui.

E se você ainda não tem um Kindle, ele está em promoção na Amazon; considere adquirir. Vale muito a pena.

Curso “Como catequizar seus filhos em casa” — 8ª turma

Não recordo agora quem foi que disse a frase, já clássica, de que não existe nenhum erro moderno que não deite as suas raízes em uma heresia já há muitos séculos condenada pela Igreja. Olhando para o mundo, isto é uma verdade que refulge diante de nossos olhos com uma clareza meridiana, quase ofuscante. O seguimento radical da Doutrina Católica é a solução para todos os problemas que afligem a humanidade e isso é muito fácil de se ver: o desprezo de si próprio até o amor de Deus e do próximo, é evidente, se universalmente praticado, teria o condão de pôr fim a todos os problemas que os seres humanos mutuamente se causam.

Porque — e agora o arrazoado é de Santo Agostinho — não existe Doutrina que propicie melhores pais de família, melhores filhos, melhores empregados, melhores patrões, melhores juízes, melhores reis, melhores cidadãos enfim do que a Doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo. Nenhuma é capaz de fornecer seres humanos tão preparados para a vida em sociedade — porque a sociedade é natural aos seres humanos, e nenhuma Doutrina nos faz tão perfeitamente humanos quanto aquela que nos foi dada pelo próprio Criador dos homens feito Ele próprio Homem também. Conhecer e seguir fielmente a Doutrina Católica, a Sã Doutrina da Salvação, é o meio mais seguro de resolver também os problemas temporais com os quais os homens andam sempre à volta. Isso é uma garantia que nos foi dada pelo próprio Cristo: buscai primeiro o Reino de Deus e a Sua Justiça, que todas as demais coisas vos serão acrescentadas.

Se buscarmos portanto as coisas do Alto, o concerto das coisas da terra seguir-se-lhes-á com facilidade e certeza. E, ao contrário, se nos descuidarmos das coisas celestes, então a própria terra não cessará de se voltar contra nós em castigo cósmico por nossa impiedade. Voltando as costas para Deus sob o pretexto de organizar a vida sobre a terra, não conseguiu o homem senão ver a vida temporal proliferar em abrolhos e em espinhos a perder de vista: este imagem resume o Ocidente nos últimos séculos.

A melhor forma — direi mais até: a única forma — de mudar o mundo é mudar-se a si mesmo, a solução para os grandes problemas sociais passa pela conversão das sociedades a Cristo — e para que as sociedades voltem-se para Deus é preciso que, antes, cada homem imole a própria vida junto à Cruz do nosso Redentor. Ser bom cristão é a mais premente necessidade de nosso século, é a atitude de maior potencial transformador do mundo. E para ser bom cristão é mister ser bem catequizado.

A catequese, a transmissão da Doutrina da Igreja é um dever de todo católico. Pensando em ajudar os outros a desempenhar este papel tão importante o casal Brodbeck oferece já há algum tempo o curso “Como catequizar os seus filhos em casa”, atualmente com as inscrições abertas para a oitava turma. Trata-se de um material recomendadíssimo.

Primeiro porque, como foi falado, conhecer bem a Doutrina Católica é a maior necessidade do nosso tempo e, transmiti-la bem, é um grave dever do qual ninguém se pode eximir.

Segundo porque os responsáveis pelo curso — o Rafael e a Aline Brodbeck — são católicos de solidez doutrinária, de reconhecida competência, de apostolado notável e de comprovada capacidade. A vida deles os credencia a falarem com propriedade sobre este assunto.

Terceiro porque valer-se da experiência alheia é uma das formas mais prudentes de trilhar o próprio caminho. Santa Teresa maravilhava-se com os sábios porque, segundo ela, o que lhes custava muitos anos de leitura solitária e estudos árduos a nós estava ao alcance de uma simples pergunta. Os que desejam aprender algo sobre o modo de catequizar seus filhos, portanto (e não só filhos — afilhados, sobrinhos etc.), podem se valer da experiência desta família (eles próprios já têm quatro filhos!) que tão generosamente se põe à disposição.

Quarto, porque os testemunhos a respeito do curso nos animam a esperar dele os frutos que prometem e a trabalhar por sua divulgação ad majorem Dei gloriam.

A catequese, a boa e sólida catequese, é uma necessidade e um dever, é o meio mais eficaz para a transformação da sociedade. O Deus lo Vult! convida todos a conhecerem o trabalho realizado pelo Rafael e pela Aline, um trabalho sério e digno de confiança, merecedor de todo apoio e incentivo.

Cliquem aqui para saber mais.